quinta-feira, 24 de abril de 2008

A Gaivota


Obrigado, não há de quê, e assim começa. Poderia ter sido de propósito, poderia ter sido complexo, mas foi assim, simples, sem tramas, sem ardis. Obrigado, não há de quê. Um agradecimento que eu joguei, você retribuiu, e a gente se olhou e se viu, apesar da calçada cheia de lixo e do cheiro podre que insistia em se fazer notar. Nesse momento, a gente olhou pro céu, não sei se com o intuito de disfarçar qualquer coisa, qualquer precipitação que poderia ser mal-interpretada. Acho que, no fundo, a gente buscou não se olhar, porque se a gente se olhasse (e a gente já tinha se olhado), teria a obrigação de progredir, de ir além, mas quem ousaria transpor o muito-obrigado-não-há-de-quê? E quem de nós quebraria o gelo invisível, quem de nós pronunciaria qualquer palavra tola e estúpida pra quebrar aquilo que ainda não tinha nome? Mas bem, a rua fedia, fedia mesmo, e o céu estava nublado e a gente olhava pro céu. E ao mesmo tempo em que não podíamos quebrar o gelo, não podíamos deixar que derretesse, que ficasse assim, se desmanchando pouco a pouco e fosse escorrendo pro ralo da via pública, se misturando ao chorume do lixo que fedia cada vez mais.

Então, olhávamos por céu. E o céu era cinza. E passou uma gaivota no céu. E aí, aí, eu olhei pra você e sorri. Perguntei se você tinha visto a gaivota e, olha só que coisa estúpida, isso não é lá coisa que se pergunte, mas bem, o gelo não tinha se derretido ainda, fiz o melhor que pude antes que você pudesse pensar em me virar as costas pra ir embora sem que eu soubesse nem o seu nome. Foi um recurso, a gaivota que passou, uma função fática bem empregada, isso, função fática, essa função lingüística que só serve pra manter contato e a gente aprende na oitava série, um oi, um alô, uma gaivota, poderia ter sido o táxi que passou quase nos atropelando enquanto olhávamos para cima, uma bicicleta, o bêbado que cambaleava no pé-sujo do outro lado da rua. Mas foi a gaivota.

Você baixou os olhos no momento em que eu falei com você, talvez um pouco antes porque você sorriu um sorriso sem graça e disse que não tinha visto e ficou parecendo naquilo tudo que eu te interrompi, que interrompi o que quer que você fosse fazer com os olhos longe do céu, acho que me olhar. Sim, você ia baixar os olhos e ia olhar de volta pra mim, talvez fosse embora, talvez olhasse pros meus pés pra ver se eu calçava uns All Stars que nem os seus, talvez, talvez. Mas nunca soube. Soube que baixou os olhos e me fitou, longa, profunda, num riso sem graça que se dissipava e te deixava com um aspecto de inexpressão crônica, assim, a fitar-me, a medir-me, de dentro dos seus olhinhos pretos.

Eu lembro do seu aspecto, inquisitiva, quase soturna. Mas, de repente, e muito de repente, você perguntou se eu tinha visto o bêbado, no outro lado da rua. E quando você me perguntou isso, você abriu um sorriso tão largo que, putz, pude contar todos os seus vinte e oito dentes, é, você não tinha sisos. Eu juro, diria que não, não pelo fato de que eu realmente não tivesse mesmo visto o bêbado do lado de lá, mas é que eu também fiquei com uma certa raiva incontida de você porque você não tinha visto a maldita gaivota que agora ninguém nunca mais verá, mas ok, decidi dar um crédito, um voto de confiança a você, ao mesmo tempo pelo seu sorriso e pela sua atitude de jogar uma contra-função fática para mim, porque, analisando as coisas sob outra óptica, você poderia muito bem ter girado nos calcanhares e ter me virado as costas sem que as coisas evoluíssem além desse passo e eu ficaria aqui, terno, com uma cara de bobo, um toco seco no meio da calçada que fedia. E decidi, por fim, olhar pro bêbado do outro lado da rua, não pelo bêbado, mas só pra poder dizer que o tinha visto e dar um sorriso tão largo quanto o seu. E, para que a partir daí, talvez, quem sabe, pudéssemos avançar para um outro tipo de assunto, adotar outros estratagemas que permitissem uma aproximação mais real e mais franca, sem que tivéssemos necessariamente que ficar ali naquela rua que fedia mais que qualquer coisa.

Então, eu olhei pro bêbado. Eu vi o bêbado que cambaleava trôpego, apoiando uma das mãos no pequeno poste de metal que indicava que ali era um ponto de ônibus e carregando um terço na outra mão. E eu ri, ri um riso meu, mas o meu riso é feio. Feio sem motivo aparente, feio por ter sido assim sempre, sem que me precisassem faltar os dentes ou ter a boca torta. Feio porque não harmonizava com o meu rosto e a boca, não sei, meio que não abria espaço pros dentes aparecerem e os dentes, grandes, exigindo espaço para se mostrar ao mundo, brancos e incólumes, mas essa boca que se retesava, esse riso preso, aparentemente preso apesar de sincero e muito sincero, essa guerra visível entre a boca e os dentes, isso, era isso que se externalizava pro mundo fazendo com que o meu sorriso ficasse muito feio, desarmonioso, sem que ninguém conseguisse achar uma causa à primeira olhadela descompromissada. Você deve ter achado o meu riso bonito, ou ao menos, não tão feio, porque você, e só aí, só dessa vez, sorriu pra mim de verdade, e eu soube que o seu riso era pra mim e só pra mim, não pra situação, como fora o seu riso largo anterior sem sisos.

Então, eu fiz menção de dizer alguma coisa, possivelmente o bêbado, sim, deveria ser sobre o bêbado, o nosso cupido cristão, deveria pegar um gancho para falar do bêbado, da sua aparência malcuidada, dos seus hábitos condenáveis, sim, bebo, mas socialmente, jamais chego a esse estado, se bem que sim, enfim, uma vez, quando eu ainda era adolescente, mas quem nunca, e enfim, e a partir daí estaríamos todos já bem-resolvidos, já teríamos entrado em contato, já teríamos despidos nossas armaduras e nossos elmos, deixaríamos que nossas espadas descansassem sem que precisássemos tê-las sempre à mão para o caso de qualquer emergência.

Mas antes que eu pudesse falar sobre o bêbado e divagar sobre o seu torpe cristianismo, antes disso, no incomensurável instante antes que as cordas vocais vibrassem para que eu começasse a minha fala que daria margem a toda essa gama de possibilidades onde poderíamos ser nós e só nós, com a boca já entreaberta, você fala alguma coisa e eu quase atropelo a sua fala porque, bem, eu estava tão preocupado e tão concentrado em falar, a começar o assunto que certamente mudaria o curso das nossas vidas dali pra diante, mas bom, talvez você tivesse tido a mesma idéia, no mesmo instante, e tenha ganhado de mim só por uma questão de reflexo e de velocidade, mas, bom, é preciso não só que eu admita a perda e o ter que calar a um instante do som, mas que eu admita que também não consegui mesmo entender o que você disse. Sou forçado, portanto a lançar mão de um oi, como, repete, não entendi, ou de outras artimanhas que certamente demonstrariam um grau, ainda que pequeno, de surdez ou de déficit de atenção. Você repetiu, um pouco mais alto e pausadamente, sinceramente em dúvida se o meu problema era de surdez ou de retardo, que ali fedia.

Achei na hora, confesso, um disparate você ter dito aquilo assim, sem preparo, na lata, um “aqui fede” que soa quase como um “você fede” depois de um obrigado e de uma gaivota e de um bêbado. Contemporizei e, tentando levar pelo lado positivo da coisa, talvez você estivesse querendo dizer não que fosse eu quem estivesse fedendo ou que o assunto fedia, não, nada disso. Talvez você estivesse querendo apenas dizer que o lugar fedia, e fedia mesmo. E que poderia ser interpretado como um convite de vamos-sair-daqui, porque bem, fede.

O problema dessa hora é que você olhou pra mim com uns olhos interrogativos, sem sorriso nem muxoxo. Olhou como quem mais do que interrogar, alfineta, propõe um desafio, algo como “e agora, o que você vai dizer, o que você fazer?”. Confesso que a primeira coisa que me veio naquela hora foi dizer um “fede mesmo” e te devolver esses olhos de charada, certo de que te colocaria em uma sinuca de bico e você ficaria desesperada, atônita, aflita, sem saber o que fazer. Sim, passar a bola pra você, igual a gente faz quando está conversando na internet e diz alguma coisa só pra dizer que disse, só pra dizer “agora é com você, seja capaz de puxar um assunto mais interessante”. Mas pensando um pouco melhor, descobri que não seria o melhor caminho, porque veja, você ali, donzelinha, com um cara estranho que agradecia e falava de gaivotas, estaria no pleno direito de virar as costas sem dizer palavra se se sentisse amedrontada, como um coelho em fuga. E, novamente, eu, pretenso vitorioso dessa guerrinha estúpida e sem sentido mesmo antes de nos conhecermos, ali, a olhar pra paisagem fétida enquanto você ia embora.

Não, definitivamente não. Eu tinha que dizer alguma coisa, rápido. Alguma coisa que, ao mesmo tempo que não te encurralasse, deixasse transparecer que eu tinha entendido o seu truque, o seu jogo sujo, e que, por mais que não fosse a tão fatídica e previsível sinuca de bico, fosse uma outra jogada, nova, que abrisse o jogo do tabuleiro de xadrez para que pudéssemos jogar com classe e com liberdade de movimentos, sendo cada um de nós responsável por cada jogada, por cada palavra, cada lance, cada passo em falso.

Saí com meus cavalos e parti pro jogo, não sem antes vestir uma deslavada carapuça de perdedor. Lancei o “fede mesmo”. E fingi que deixaria nisso, fiz questão de deixar aqueles três segundos no ar, aquele silêncio no qual as pessoas matutam suas dúvidas, aquele instante no qual você se questionaria resoluta, mas então, será que é só isso? Mas não poderia deixar o fede mesmo solto. Emendei logo depois dessa pequenina pausa estratégica um “você aceita uma carona?”. E a partir daí, a situação fiou quase cômica porque era muito surpreendente pra você que eu puxasse a carona como uma carta na manga e você retrucou um “oi?”, assim, como pra ver se era realmente isso que tinha sido dito e não alguma coisa como fanchona, bobona, acetona.

Mas sim, era uma carona, exatamente uma carona aquilo que eu te oferecia naquele instante. Você se valeria dos seus artifícios, certamente pra ganhar tempo, mas bem, eu deixei as suas aritméticas sem variáveis, seus orçamentos sem margens, você não tinha com o que jogar.

Você não sabia pra onde eu ia, não sabia quem eu era, não sabia nada de mim. E, agora numa perspectiva mais material, você não sabia qual era o meu carro, se tinha ar-condicionado, som stereo, quatro portas, conforto, air-bag, e não me venha com o papo de que as mulheres não pensam nisso porque pensam sim: as mulheres, os homens e as crianças. Não sabia a quantos metros o meu carro estaria estacionado. Não sabia se era uma demonstração singela e descompromissada de educação ou se era uma tentativa de fazer a côrte, de dar início a qualquer desses joguinhos de demonstração de poder, de abrir a cauda como um pavão, de mostrar-me desde aquele instante um macho alfa.

E teria que negociar com os pensamentos que lhe rondavam, você, naquela hora, porque teria que decidir-se se me respondia ou se me retrucava e se me retrucasse, se tentaria me colocar numa sinuca ou se me faria uma pergunta honesta e ainda, qual pergunta. Mas era preciso que a ação se desenrolasse e você não tinha todo o tempo do mundo. Depois de pensar tanto a ponto de fazer nascer uma ruga sutilíssima logo em cima da sobrancelha esquerda, você disse que aceitava. Pronto, era o que faltava. Você aceitou. Você não soube jogar o maldito jogo, disse que aceitava. Você também fugiu a toda e qualquer previsibilidade, você tinha que ter tentando me ludibriar, tinha que ter querido saber mais: de mim, do carro.

Naquele momento, eu percebi que você entregou os pontos, ao mesmo tempo em que jogava o jogo com uma pretensa habilidade. Ali, você, entregando os pontos, olha só, virava o jogo sem querer. Porque agora, nesse momento em que já não havia mais gaivotas, nem bêbados, nem sorrisos, eu jamais deixaria você desconfiar que não havia também carro. E eu tive que fazer uma manobra, mas uma manobra mal-feita, uma barbeiragem, dessas de quem acaba de tirar a carteira de motorista e quer ficar se achando o tal.

Eu perguntei, sem tempo para devaneios, num átimo, pra onde você ia. E você apontou pra rua, no sentido do fluxo dos carros. E eu fiz uma cara descarada de não-vai-dar-mesmo, porque veja só, eu estou indo para lá, olha, no contrafluxo, justamente no sentido contrário ao seu.

Você olhou fundo pra mim. Fundo, muito fundo, profundo dos meus olhos. Você olhou, eu contra-olhei. No meu contra-olhar, você descobriu que eu mentia, você soube, ligeira, fácil, que não era verdade. E aí você aproveitou as delícias da regra do jogo e jogou. Fluida, meio descompassada e atarantada “Puxa, inda bem, lembrei mesmo que eu preciso resolver umas coisas no banco e ele fica logo ali”, e apontou para o sentido do contrafluxo. Eu poderia tentar insistir para que fôssemos a pé, que meu carro estava estacionado longe, que o trânsito está ruim e que a gente pode ir de trem, metrô, barco, avião.

Mas não havia meio de escapar. Eu me enredei nesse novelo insalubre, caí na própria trama, pisei no ardil. E era preciso que eu falasse alguma coisa porque você me olhava muito dura e não tínhamos tempo e não tínhamos nada. E por não termos nada, pensei que poderia fugir ao pseudo-compromisso de ter que dar satisfações, poderia virar as costas derradeiro, resoluto, olha só que simples, e nunca mais nos veríamos e a situação estaria feita. Mas havia alguma coisa ainda dentro de mim que se compadecia, uma mistura de ética e vontade e eu sabia que não seria capaz de dar-lhe as costas.

E o que quer que eu dissesse era preciso que fosse rápido, porque bem, era sempre possível e provável que o outro de nós estivesse tão cheio com os seus afazeres que não poderia ficar perdendo tempo ali com um desconhecido, numa conversa extravagante, muito embora esse não fosse o motivo principal porque qualquer coisa parecia secundária e menor ante o fedor que se fazia.

E aí, lembro como se fosse hoje, baixei os olhos. Fiquei assim uns trinta segundos, como uma criança que sabe da própria culpa. E depois, depois levantei os olhos até os seus e te encarei. E eu falei que menti. Mal nos conhecíamos e eu já lhe presenteva com uma mentira deslavada, suja, da pior espécie. Esperei os seus olhos me encararem cheios de rancor, de raiva, de mágoa condensada. Mas você me olhou plácida. Depois me olhou pura. Depois compreensiva. Depois complacente. E riu um riso que não era largo, mas que também não era estreito. Riu um riso que não sei descrever, um riso bonito, o riso mais bonito que já vi, mas sem exageros, sem glamour, um riso sincero, belo de dentro pra fora. E rindo, você me disse quase num sussurro que também mentira, que tinha visto a gaivota.

7 comentários:

raquel medeiros disse...

difícil um texto desse tamanho me prender (assim, no monitor). mas admito que não desgrudei os olhos até acabar. não sei se foi a gaivota, o bêbado, o fedor (que quase senti daqui), o carro imaginário ou tudojunto (assim mesmo).
tão cheio de sutilezas... e muito imagético! pensa em fazer um curta com ele, acho que ficaria muito bom!
e adorei o desfecho =D

beijos!

Bárbara Jovem disse...

Nossa ! Sei nem o que falar, só sei que depois da última frase, eu fiquei com um sorriso (imagino eu) igual ao da garota. Um sorriso sincero de quem diz: Sinceramente... ADOREI !!!

Parabens Igor, independente do tamanho do texto, depois de começar a ler eu não consegui mais desgrudar até saber o final da história. História essa que apesar de ter durado, na verdade, alguns poucos minutos, conseguiu se desdobrar num espetáculo de sentimentos e pensamentos !

Adorei ! De verdade !

Beijão da amiga que te admira sempre ;)

Igor disse...

Juro... aqui não fede! rs
Muito legal a história. Descreve muito bem os devaneios e pensamentos idiotas que nós temos em frações de segundos antes de executar qualquer ação. Engraçado como nós mantemos diálogos infindáveis com nós mesmos, nos nossos pensamentos, e mesmo assim é difícil dizer um "oi" pra outra pessoa.

Me chamam a atenção alguns trechos, incluindo este:

"E eu falei que menti. Mal nos conhecíamos e eu já lhe presenteva com uma mentira deslavada, suja, da pior espécie. Esperei os seus olhos me encararem cheios de rancor, de raiva, de mágoa condensada. Mas você me olhou plácida. Depois me olhou pura. Depois compreensiva. Depois complacente." - Apesar de nós querermos normatizar as reações de acordo com as situações, nem sempre a reação do outro é como se espera. :D

Concordo com as meninas que comentaram que é sempre difícil prender a atenção de alguém com textos deste tamanho aqui na Web - devido a velocidade de troca de informações que acontece no mundo virtual. Mas muito bom... prendeu a minha e isso que importa. rs
Parabéns, xará!

Rebeca disse...

congratz, you woke a life otta minutes. ;)

Thiago Borges disse...

Meu irmão...
genial cara!!!
Sua descrição foi maravilhosa!
Você descreveu uma cena que não duraria 3 minutos em um texto enorme e muito bem feito!
Parabéns!

Beatrix Kiddo! disse...

Eu posso dizer que fiquei emocionada com o texto?(aproveita que eu não me emociono fácil não.)e cara, o texto valeu pela última frase.
Sério, lindo!
e eu só li agora,porque admito q estava com preguiça, mas finalmente me bateu aquela votade e realmente valeu a pena.

B. Pina disse...

Belo relato, ritmo deliciossísimo.
e eu também terminei o texto com um sorriso imenso no rosto, dificil é achar quem não termine de lê-lo, assim.
Parabéns!