terça-feira, 16 de março de 2021

Um defeito de arado, torta cor


A ideia desse texto é tentar traçar paralelos entre dois romances recentes da literatura brasileira: “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves (2006), e “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior (2019). Não há uma preocupação em esconder ou escamotear elementos importantes de ambas as narrativas, o que significa que esse texto conterá ‘spoilers’. Portanto, recomenda-se a leitura apenas para quem já tenha lido os dois livros.

O primeiro elemento que chama a atenção de quem termina a leitura de um livro após já ter lido o outro (no meu caso, terminei de ler ‘Torto Arado’, já tendo lido ‘Um defeito de cor’) é a tensão entre o singular e o genérico. Ambas as narrativas se concentram na história de personagens negros, e embora foquem suas lentes em um ou dois protagonistas (Kehinde e Bibiana/Belonísia), é possível perceber também uma perspectiva mais generalista, no sentido de dar conta de um panorama da população negra em determinado contexto sociohistórico, a partir de seus personagens secundários. Tem-se a história contada no tempo de vida dos protagonistas, da infância à vida adulta, e, se essa perspectiva permite uma leitura particular e subjetiva daquelas vidas em específico, no que têm de singular, por outro lado a vida das personagens secundárias nos indica, a partir de uma mirada menos subjetiva, quais são as trajetórias de vidas possíveis naquele cenário. Cada um dos personagens é, de certa maneira, um arquétipo: “o que estudou e foi tentar a vida na cidade”, “o que se conformou com as condições”, “a mãe batalhadora”, “o que reproduz em terceiros as condições de opressão e violência que sofre”, etc.

Essa dupla mirada (específica e genérica, subjetiva e social) permite a construção de narrativas que são a um só tempo densas e fluidas. Enquanto se acompanha como uma novela o desenrolar da vida dos protagonistas, a história que ocorre nas franjas (re)cria um mundo para o qual o leitor é transportado. Essa criação, ainda que demande um trabalho acurado dos autores, é de certa maneira uma recriação, pois se cria a partir de algo que já está lá. Trata-se de uma criação menos livre, posto que embasada mais fortemente no contexto social e histórico vinculados ao cenário/panorama no qual a vida dos protagonistas se desenrolam. Nessa recriação é que também reside parte importante da potência dos dois livros. É nela que recende o árduo trabalho de pesquisa dos autores, que envolve aspectos sociais, históricos, políticos, etc. E é através dela que esses livros podem exercer um papel que vai além do entretenimento / diversão. A recriação do panorama histórico nos dois romances, portanto, os dota de um potencial didático. E, a partir das histórias dos protagonistas, esse aspecto didático chega, por assim dizer, ‘com menos didatismo’, com menos aspecto de enciclopédia. Esse círculo virtuoso entre o genérico e o específico, permite que a História (com H maiúsculo) seja apreendida através da história (com h minúsculo), de tal maneira que essa apreensão se dê por um canal que não seja apenas o da racionalidade, mas também o dos afetos.

Por sinal, o caminho da racionalidade é questionado frontalmente em ambas as narrativas. No que soa como uma resposta ao modo de vida iluminista, que apregoou um modelo de igualdade entre as pessoas brancas enquanto tolerava / incentivava a escravidão de pessoas negras, e que também apartou o corpo da alma promovendo um mundo desencantado, as duas narrativas refutam esse modelo e retomam o encantamento do mundo. Ana Maria Gonçalves apresenta, em seu romance, uma espiritualidade de matriz mais marcadamente africana, através dos orixás do candomblé, e também dos eguns maranhenses. Itamar Vieira Junior, por outro lado, traz em sua narrativa uma espiritualidade que, apesar de sua matriz africana, é mais marcadamente brasileira: os encantados. Aqui, os orixás do candomblé se misturam a outras entidades como os caboclos, os espíritos, enfim, os encantados.

Cabe ressaltar que esse movimento de retomada da espiritualidade nos romances não é algo particular dessas duas obras. Pelo contrário, a produção literária brasileira negra parece enfatizar a presença da religiosidade. Na verdade, as religiões de matriz africana são relevantes para os negros brasileiros (tomados como um coletivo, e não de maneira individual) porque recupera a sua ancestralidade, cujas linhas de origem foram apagadas e silenciadas por processos violentos de escravidão e aculturamento, e são colocadas como um elemento de resistência. Dessa maneira, a inserção do elemento religioso / espiritual na produção literária negra é um elemento estético que se vincula a uma determinada ética (modo de vida), e que tem intenção de produzir efeitos políticos.

De maneira particular, ainda em relação à espiritualidade, é notável como cada um dos romances se estrutura a partir de um desses elementos em particular, que dá ‘o tom do romance’. Em ‘Um defeito de cor’, é Oxum que controla o fluxo narrativo. É à imagem de Oxum, esculpida em cerâmica, que a protagonista se apega, e quando essa imagem se revela como uma fonte de dinheiro, a história encontra um de seus pontos de inflexão. Em ‘Torto Arado’, por outro lado, a história tem em Santa Bárbara / Iansã um elemento narrativo muito importante. É quando Zeca Chapéu Grande se veste de Santa Bárbara numa das festas de jarê que o prefeito constrói uma escola no povoado. Além disso, toda a narrativa é fortemente marcada pelos fenômenos climáticos: os tempos de semeadura, de colheita, as estiagens e as enchentes. Isso ressoa na cosmovisão que se tem de Iansã como “rainha dos raios”, aquela que rege as ventanias e as tempestades, “tempo bom, tempo ruim”. É curioso notar que essa espécie de ‘regência’ de cada um dos orixás em suas respectivas narrativas se deixa também transparecer nas capas das obras. ‘Um defeito de cor’ é um livro dourado, a cor de Oxum. Na capa de ‘Torto Arado’, aparecem duas mulheres que seguram folhas de uma espécie vegetal conhecida como espada-de-santa-bárbara, que corresponde a Iansã no catolicismo.

Ainda sobre a espiritualidade, mas não só, é importante pensarmos também a presença das irmãs gêmeas. Cultuadas nas religiões de matriz africana sob o nome de ibêjis, ambas as obras apresentam personagens gêmeas. Em ‘Um defeito de cor’, temos Kehinde e Taiwo; já em ‘Torto Arado’, temos Crispina e Crispiniana e, ainda que não sejam exatamente gêmeas, temos também Bibiana e Belonísia, cuja performance durante a narrativa, dado o grau de proximidade entre elas, pode fazer com que sejam assim percebidas. Portanto, em uma obra, um par de gêmeas; noutra, duas. E ambos os romances se utilizam dessa característica para projetar sobre cada uma das gêmeas a fortuna e o infortúnio. Entre Taiwo e Kehinde, a morte precoce e a longevidade; entre Crispina e Crispiniana, o casamento que se estabeleceu e o que não, a gravidez que vingou e a que não; e entre Bibiana e Belonísia: a língua existente e a inexistente, o casamento feliz e o infeliz. Na verdade, a forma de contar histórias usando irmãos gêmeos como um artifício narrativo é nada mais do que explorar a figura do ‘duplo’. O duplo, que pode ser entendido sob as lentes da psicanálise ou da própria literatura, funciona como uma projeção de si em outro corpo e/ou outro contexto. Resumidamente, pode ser definido como “uma instância onde algo pode ser familiar e também estrangeiro, e essa estranheza e familiaridade a um só tempo produzem desconforto”. Alternativamente, temos também a versão mais complexa para explicar o duplo, que é “uma representação do ego que pode assumir várias formas (sombra, reflexo, retrato, duplo, gêmeo) e que é encontrado no animismo primitivo como uma extensão narcisística e garantia de imortalidade mas que, na ausência do narcisismo, pode prenunciar a morte ou se tornar fonte de perseguição.”. Ambas as definições foram retiradas dessa postagem aqui. Trata-se, portanto, de um recurso muito bem explorado pelos dois romances.

Além das gêmeas, outro elemento que aparece nas duas obras é a faca. Em ambas, a faca aparece como arma, porque é utilizada antes de tudo para mutilar (‘Torto Arado’) ou matar uma pessoa (‘Um defeito de cor’), em vez de seus propósitos culinários, de caça ou de abrir picadas na mata. A faca aparece como um símbolo de força física dentro da narrativa, pois age de maneira incisiva sobre as pessoas, mas também como um elemento de força simbólica para o próprio romance, porque em ambas as vezes em que ela aparece, marca-se uma ruptura com o mundo anterior, e surge, então, um novo mundo. Nesse novo mundo, uma das filhas de Zeca Chapéu Grande fica sem a língua, e Banjokô, primogênito de Kehinde, morre. Cabe notar também que em ambas as situações as facas agem sobre os corpos de crianças, explorando ao limite a tensão entre a vontade mal discernida das crianças e a irresponsabilidade dos adultos que não as supervisionaram.

É importante ressaltar que até aqui vemos alguns paralelismos entre as obras, mas é interessante pensá-las também a partir de um senso de continuidade. Se ‘Um defeito de cor’ explora o universo do século XIX, com suas relações de escravização ativas e vigentes, ‘Torto Arado’ se passa todo no século XX, mostrando como essas relações de escravização permaneceram ativas nos usos da terra, ainda que formalmente não mais vigentes como força de lei. Se no primeiro, vemos o que poderia ocorrer aos negros escravizados, no segundo, somos conduzidos a um mundo pós-escravagista, no qual podemos ver as opressões (outras e as mesmas) a que são submetidos os negros que a letra da lei tornou livres no século seguinte.

Esteja formalizada ou não a relação de subordinação de uma raça à outra, os dois romances, contudo, frisam as narrativas de resistência a essa opressão. Ou seja, os protagonistas (e eventualmente também os coadjuvantes), partindo das condições muitíssimo adversas em que se encontram, são capazes de mobilizar seus recursos (retóricos, intelectuais, corporais, financeiros e espirituais) para se opor ao regime que os oprime. É claro que esses enfrentamentos à ordem não vêm sem conflitos, e é justamente neles que se organizam os romances. É essa tensão entre a ordem das coisas tal como é e a possibilidade de um mundo menos hostil e mais justo que norteia as principais tramas de ambas as histórias.

Por fim, o que se depreende desta breve análise, é que os mundos apresentados em ‘Um defeito de cor’ e em ‘Torto Arado’ são narrativas importantes para que se pensem as formas de resistir às opressões hoje. Permeados por similaridades e por contiguidades que aqui foram discutidas, os romances guardam entre si, também, uma grande carga de diferenças (que são muitas, mas que deixaremos para que os leitores as desbravem).

As semelhanças e as contiguidades entre os romances de Ana Maria Gonçalves e Itamar Vieira Junior, contudo, têm a ver com o que éramos, com o que somos, e com o que queremos vir a ser, não apenas como homens e mulheres negros, mas, de maneira mais ampla, como sociedade mesmo. Que mundo queremos deixar ao futuro? Como iremos construi-lo, desde já, para que os romances do futuro distante possam se referir ao futuro próximo sem ter de apresentar relações raciais que sejam permeadas por tanta violência?