terça-feira, 24 de junho de 2014

Cambismo – um outro olhar e algumas reflexões


Durante o período da Copa do Mundo, algumas coisas ficam mais em evidência do que outras. Uma delas é a prática do cambismo, ou a cambistagem, que sempre está presente em todos os eventos de grande porte (grandes shows, apresentações circenses ou teatrais, torneios esportivos, etc.). O cambismo nada mais é do que o ato de comprar ingresso antecipadamente e revende-los a preços mais altos que os da bilheteria, porque lá, provavelmente, os mesmos já estão esgotados e/ou indisponíveis. Essa venda é geralmente realizada no dia do próprio evento.

Ainda que eu devesse saber se tal prática é criminosa ou não para elaborar esse texto com mais propriedade, confesso que não o sei. O que sei, contudo, é que há muita gente no Facebook se manifestando com veemência contra a cambistagem (e muitos alegam mesmo tratar-se de um crime). Muita gente indignada, revoltada, achando que é um absurdo alguém no mundo apresentar esse tipo de comportamento. Pois bem.

A maioria de nós, desde que nasceu, é bombardeada pelos ideais de mercado, a famigerada lógica capitalista. Segundo essa lógica, é preciso ser um vencedor na vida: é preciso se esforçar, ser sempre o melhor, trabalhar duro, consumir muito, eventualmente abrir o seu próprio negócio e investir o seu dinheiro.

Esta orientação de mercado é o que nos move, durante o curso das nossas vidas, a querer fazer um bom negócio (e não é à toa que 'bom negócio' é um nome que pega).

Dentre as possibilidades de se 'fazer um bom negócio', é possível citar alguns exemplos: abrir uma padaria, investir em ações, comprar imóveis.

Vamos falar de cada um deles, então. Abrir uma padaria: provavelmente, o local escolhido será longe de outras padarias, e terá que ter uma razoável clientela. Terá que manter boas relações com seus fornecedores e clientes. Mas, na verdade, tudo isso é secundário. O importante mesmo, para qualquer empresa, é gerar lucro, ou seja, fazer com que o investimento valha a pena. Para quem estudou um pouco de finanças na vida, é garantir que o Valor Presente Líquido seja maior do que zero, considerando todas as entradas e saídas de capital; em outras palavras, ganhar mais do que se gastou.

Investir em ações não é para qualquer um. O mercado é arriscado, e os riscos de perda são grandes. No entanto, existem algumas estratégias: investir em fundos de investimentos já consolidados e de boa reputação, investir em ações que são boas pagadoras de dividendos e, ainda, a estratégia perseguida por muita gente que é a de comprar na baixa para revender na alta. Em todas essas estratégias de investimento no mercado de capitais (e nas zilhões de outras estratégias possíveis), o objetivo é o mesmo: ganhar mais do que se gastou.

A compra de imóveis é o investimento dos sonhos dos nossos pais. O dinheiro vira uma casa em que você pode morar. Havendo mais dinheiro, compram-se outras casas, para alugar a terceiros. Os aluguéis funcionam como os dividendos das ações. Paga-se o usufruto àquele que detém o bem. Obter rendas através de aluguéis era a forma mais comum de investir em imóveis. No entanto, especialmente de uns cinco anos para cá, em que o valor dos imóveis cresceu assombrosamente em todo o país,  a lógica especulativa invadiu o mercado imobiliário, e se propagaram por aí os classificados de imóveis oferecendo um "excelente investimento". "Compra agora porque vai valorizar." "Tô vendendo o meu para comprar outro e ter um retorno." Essa é a lógica de comprar na baixa para vender na alta. Em outras palavras, novamente, ganhar mais do que se gastou.

Essas são práticas legais (no sentido de 'bacana' e também 'de acordo com a lei'), feitas por gente de bem, honesta, trabalhadora, que paga seus impostos em dia. Mas o cambismo, que, em última instância, é comprar na baixa e revender na alta seguindo a mesma lógica do 'ganhar mais do que se gastou', o cambismo não. Esses cambistas são, sim, são uns sem-vergonha, aproveitadores, oportunistas; são um bando de filhos-da-puta, isso sim.

Sempre existe uma diferença de vocabulário para separar o 'nós' dos 'eles' quando se trata de uma mesma coisa, e nesse caso não seria diferente: nós enxergamos a 'oportunidade'. Eles exercem o 'oportunismo'. É a mesma coisa. Mesmíssima. Nós temos transtorno mental, eles são malucos. Nós somos cleptomaníacos, eles roubam. Nós apenas ajustamos a declaração do Imposto de Renda, eles sonegam.

Existe, contudo, uma diferença relevante entre os três exemplos apresentados e a prática do cambismo: a legalidade. Acabo de conferir no Google e confirmar: o cambismo é mesmo ilegal! Mas como podem ser ilegais coisas sob a mesma lógica de funcionamento que é, basicamente, 'ganhar mais do que gastou'? Ora, o Brasil é mestre nesse tipo de artimanha jurídica, ou seja, fazemos isso o tempo inteiro. Qual a diferença entre o cara que bebe cerveja, o que bebe cachaça, o que fuma maconha e o que curte ecstasy? Essencialmente, nenhuma. Todos eles são movidos pela mesma lógica de 'se drogar'. Todos estão ali em busca de algum nível de alteração da consciência. Mas uns são permitidos, outros não.

Mais ou menos como nos casos das drogas, a legalidade é nada mais do que uma construção social. E que se retroalimenta. E não dá para dizer aonde o ciclo começa. A maconha é ilegal. Não paga imposto. Para que seja consumida, precisa ser através do tráfico. O tráfico de drogas gera violência. Se gera violência, então precisa ser ilegal. [etc...] A única forma de frear esse ciclo é legalizar as drogas. Mas, enfim, esse é um assunto secundário nesse momento.

Utilizei-o apenas para demonstrar que com o cambismo ocorre uma coisa semelhante. Quanto mais marginalizada ela vai se tornando, mais aparecerão motivos para que essa se perpetue como uma prática ilegal.

Mas voltando à diferença entre 'oportunidade' e 'oportunismo', é importante tentarmos entender porque especular com imóveis é socialmente aceitável e especular com ingressos de jogos não é. Existe 'oportunidade' em abrir uma loja de guarda-chuvas em um local de alta pluviosidade, e existe 'oportunismo' quando o camelô aumenta o preço do guarda-chuva de 10 reais para 15 reais quando começa a chover. Podemos tentar pensar novamente em cada um dos três exemplos já citados anteriormente: o que é preciso para abrir uma padaria? Em primeiro lugar, um capital inicial, que podemos supor da ordem de 200 mil reais, por hipótese. Em segundo lugar, crédito, Para ter acesso a crédito, é preciso que você tenha fiador, avalista, comprovante de residência e imóveis no seu nome, carro como garantia, e comprovante de renda mínima. Para investir em ações, é preciso acesso ao mercado de capitais, que está longe de ser democrático hoje em dia. É preciso também de um comprovante de renda, um computador com acesso á internet para as transações, uma conta bancária e, especialmente, know-how. Para investir em imóveis, é preciso ter know-how do mercado imobiliário, eventualmente um despachante, e muito capital inicial (tanto para viver de renda quanto para revendê-los a posteriori). Supondo um cenário menor de investimentos, ou seja, alguém que queira investir em imóveis de até 1 quarto, numa cidade de porte médio, podemos estimar o capital inicial mínimo em 500 mil reais.

E para 'investir' em ingressos, o que é preciso? Supondo um jogo no valor de 100 reais, o cambista médio que dispõe de 5 ingressos, precisou de um capital inicial de 500 reais Se falarmos de 'grandes cambistas', o cara que (uau!) dispõe de 20 ingressos para revender, necessita de um capital inicial de 2000 reais. E mais o quê? Mais nada! Esse cara não precisa de crédito, não precisa de avalista, fiador, comprovante de residência, nada. Ele precisa basicamente de 500 reais. E de uma outra coisa que é também muito importante: ACORDAR CEDO.

Esse último é também um fator importante para entendermos o problema. Vê-se por aí muita gente propalar a meritocracia como o suprassumo do capitalismo. Gente que acredita que as cotas não são necessárias porque se todo mundo se esforçar, todo mundo é capaz de passar no vestibular. Gente que acredita que se você trabalhar duro e com afinco, um dia você poderá ser dono da sua própria multinacional. Gente que acredita que o mundo é de quem nasceu para conquistá-lo e de que, para isso, é preciso apenas de força de vontade, porque afinal de contas, o sol nasce para todos.

Pois, ora, assim é a venda de ingressos. A bilheteria (ou o site, enfim), disponibiliza os ingressos para TODAS AS PESSOAS na mesma hora. Todas as pessoas têm acesso. Basta querer, e acordar cedo. É meritocrático. Se você acordasse cedo, ora, também poderia ter o seu ingresso. Aliás, ingresso para dar e vender!

Mas, ah, é que eu não tenho tempo para poder acompanhar a abertura da bilheteria. Eu trabalho, tenho duas reuniões por dia e uma filha para criar. Bom, aí já é um problema seu! Não vamos organizar melhor a venda de ingressos apenas porque você não quer levantar o seu rabo da cadeira para comprar ingresso na hora em que ele começa a ser vendido. Todo mundo dá o seu jeito. Não tem que ter ingresso para vagabundo que não quer acordar cedo! Pegar na enxada que é bom ninguém quer!

Da mesma forma que as vagas de vestibular, os ingressos estão disponíveis para todos, mas não são para todos. Vencem aqueles que melhor se esforçarem, os mais rápidos. Os outros sobram. Aí fica para uma próxima vez.

Só que o cara que utilizou a oportunidade de comprar o ingresso mais cedo (oportunidade que, ressalte-se, estava lá para todos) vai revender o ingresso ao cidadão de bem que pre-ci-sa assistir ao jogo. Ele irá revende-lo com algum ágio, ágio que o supracitado cidadão de bem é capaz de pagar; caso contrário, o negócio não seria fechado. (nas vagas de vestibular não; os que sobram, sobram mesmo. não têm como negociar a vaga, não podem alegar que acordaram um pouco mais tarde para o trem da vida)

A cultura da oportunidade e a especulação em todas as suas formas são o esteio do sistema capitalista. Todo mundo quer fazer um bom negócio. A maior parte das pessoas não tem como abrir uma padaria, investir em ações ou em imóveis. Mas estão todos, ricos e pobres, ávidos para transformar dinheiro em mais dinheiro. O cambismo é apenas uma das poucas formas que os mais pobres encontram para fazer isso (assim como se envolver com o tráfico de drogas ou revender tupperware). Sim, vou usar a palavra, o cambismo é uma forma de investimento mais DEMOCRÁTICA.

Talvez por isso o cambismo seja criminalizado: é foda ver gente pobre com poder de barganha!



Obs: Esse é um texto que tenta entender e contextualizar socialmente a prática do cambismo, e extrair daí algumas reflexões. Se você acha que estou defendendo a prática do cambismo, você não entendeu nada.

Obs 2: Ao escrever esse texto, acabei encontrando um breve texto jurídico (em linguagem acessível), que aborda a questão de um ponto de vista muito parecido com este, enveredando por uma abordagem que trata da criminalização da pobreza. O link da postagem está aqui.