segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Pobre Criaturas – uma saga epistemológica

 


(essa análise é cheia de spoilers, é só para quem já viu o filme)

 

Terminei de assistir a “Pobres Criaturas” com estupefação. Yorgos Lanthimos parece ter atingido o ápice da sua carreira com esse filme que invoca o realismo mágico e traz à cena, com naturalidade, criaturas como o cão-galinha, Godwin, e Bella Baxter.

À primeira vista, o filme parece uma crítica tanto ao patriarcado quanto à sociedade ocidental. Há críticas explícitas ao modo de funcionamento da monogamia, à posse dos homens sobre as mulheres, ao uso do dinheiro, à dissimulação dos desconfortos (“por que devo manter na boca essa comida de que não gostei?”) e a uma miríade de códigos e de normas que regem a vida social que, por mais lógico que fosse refutá-los, nós permanecemos reproduzindo.

Isso por si só já seria uma bom trabalho. Mas até aí não teríamos grande novidade. A pauta feminista aparece com força nas telas (é só vermos o estrondoso sucesso de “Barbie” nos cinemas) e a crítica de costumes não é em si mesmo uma novidade (de “O Pequeno Príncipe” a “Os Simpsons” há uma vasta gama de arte produzida que visa a mostrar o quão ridículo é o mundo e o quanto compactuamos com esse ridículo em nossos gestos e atos).

Contudo, num filme longo como “Pobres criaturas”, ficamos tentando imaginar ali outras coisas: outros discursos, narrativas, possibilidades. Questionamos o óbvio, o dado, e partimos para a alegoria: o que está sendo dito de verdade por detrás de tudo o que vemos?

Saí do filme com duas frases na cabeça. A primeira delas, a que me levou a sentir que havia mais do que o inicialmente fornecido, foi a frase de Bella Baxter no navio, para seu companheiro de aventuras (o amante trágico Duncan Wedderburn), quando ela tentava ler um livro no convés: “You’re in my sun.”

“Você está no meu sol.” Essa não é uma frase original. Trata-se da célebre frase dita por Diógenes, o filósofo grego que morava em um barril, e que foi o maior representante do pensamento conhecido como cinismo. O cinismo é uma corrente de pensamento que engloba um certo descaso pelo poder e pelos luxos da vida humana. Junto a esse despojamento, vêm os ideais de liberdade, autossuficiência, não-sujeição, e denúncia. Diógenes ficou tão famoso por suas ideias que Alexandre, o Grande, ao saber de sua genialidade (e também de sua pobreza) foi procurá-lo. Colocando-se em frente ao barril onde Diógenes morava, Alexandre lhe pergunta: “O que é que eu posso fazer por você?”, ao que o filósofo de pronto lhe responde: “Você poderia sair da minha frente? Está tapando o meu sol.”

Esta citação de Bella Baxter não é acidental. Antes de tudo, temos de lembrar que Yorgos Lanthimos é grego. A filosofia, a mitologia e a cultura do povo helênico estão muito à mão para o diretor: são algo cuja evocação e manejo parecem se dar com naturalidade. Além disso, no mesmo contexto, Bella Baxter entabula um diálogo com Harry Astley, que, entre outras coisas diz: “Eu sou um cínico. Deixe de lado toda a filosofia, e não se apegue a verdades que já estão colocadas. Refute o comunismo, o socialismo, o capitalismo.”. Ou seja, a referência ao cinismo, com Harry Astley, que se conecta com a frase “You’re in my sun”, é explícita.

Ora, se a verdade, para os cínicos, não está em nenhuma dessas coisas, onde então ela poderá estar? Bella Baxter vive a vida produzindo suas próprias verdades através das vivências. Ela se dá a todo tipo de experiência, não recusa a vida em nenhum momento. É livre, quer viver. O mundo pelos olhos de Bella começa em preto-e-branco e com a câmera olho-de-peixe, que é mais ou menos como o bebê enxerga. À medida que a protagonista cresce na trama, se liberta, descobre o corpo, e vive a vida, as imagens se preenchem de cor, inicialmente com normalidade, mas chegando ao ponto de haver cores saturadas em determinados momentos.

Esse mundo de cores de Bella Baxter acontece quando cabeça e corpo passam a convergir. Na verdade, penso que é aqui, nesta divisão corpo-cabeça, que está a chave geral para a compreensão da obra.

A personagem de Bella Baxter realiza desejos individuais e coletivos. Individualmente, ela tem a cabeça de uma criança e o corpo de um adulto. Então, Bella Baxter se encanta como uma criança, ao mesmo tempo que goza como um adulto. Se no curso de nossas vidas, trocamos ao longo do tempo a capacidade de se encantar pela capacidade de gozar, nós nos realizamos na tela com essa pessoa que, a um só tempo, se encanta e goza.

Além disso, no plano coletivo, a existência de Bella Baxter realiza o desejo mais profundo da sociedade ocidental cartesiana de base iluminista: a separação do corpo e da mente.

Essa separação do corpo e da mente vivida pela personagem principal faz com que ela encarne em si esses ideais do projeto cartesiano: o conhecimento científico, o progresso e a verdade.

Antes da crítica mais forte (que apresentarei mais à frente), dois elementos sutis já começam a desmoronar o edifício da aventura cientificista. O primeiro deles é a forma sentimental com que tanto Godwin Baxter quanto Max McCandles – ambos doutos homens de ciência – se relacionam com Bella. Querem prendê-la. Têm por ela (o conhecimento) uma relação de posse e de domínio, mas antes de tudo a amam (não foram capazes de não amar, como se supunha num domínio da objetividade).

O segundo, ainda mais sutil, é o olhar aterrorizante (único em todo o filme), com que Bella olha para os bebês mortos ou famintos em Alexandria. Ela tem uma empatia e uma compaixão pelos bebês como não tem por mais nada. O sofrimento deles a mobiliza de maneira atroz. Parte disso pode ser explicado pelo cérebro de bebê/criança que ela possui: portanto, agiria de maneira empática com o que sua mente acredita ser. Mas serei um pouco mais ousado e formularei outra hipótese: o corpo também guarda uma memória, que não está em nenhum lugar localizável no cérebro. Dessa memória do corpo (retomada quando a protagonista acaricia sua própria cicatriz de gravidez), advém esse horror instantâneo aos bebês em sofrimento. Essa memória do corpo é também uma crítica sutil ao projeto cartesiano, que entende a cabeça como o lugar de pensar/sentir, e o corpo, por consequência, como uma parte menos nobre cuja principal função seria a de sustentar a cabeça que pensa e sente.

Entretanto, à parte essas duas críticas sutis, penso que é na estrutura mesmo do filme que o diretor coloca toda a sua zombaria em relação a esse projeto de construção da verdade em bases iluministas.

Nessa estrutura, Bella Baxter passeia por quatro cidades, além de uma navio. Ainda que pareçam uma aleatoriedade, são cidades que estão conectadas. Todas elas se colocaram em algum momento da história como um pólo difusor do conhecimento e da verdade.

Lisboa, a primeira delas, ainda aparece sob o prisma da câmera olho-de-peixe, mostrando a infância que é a o mesmo tempo a de Bella e a do projeto iluminista. Nessa cidade, há passeios, algum viço de juventude, mas paira no ar certa modorra. A protagonista resume, então, em uma única frase (a segunda frase mais impactante de todo o filme, depois de “You’re in my sun.”) todo o projeto da expansão colonial portuguesa nos séculos XV e XVI: “Em toda essa aventura, só encontrei açúcar e violência.”

É a partir de Lisboa, que ela entra no navio. A embarcação, com uma parada prevista em Atenas, não para na Grécia (o que pode ser interpretado como se o Ocidente não desse os devidos louros ao mundo helênico; lembrando sempre que o diretor é grego). Para, contudo, em Alexandria, onde, em vez de sua famosa biblioteca, encontra apenas bebês mortos. Ela desce as escadas até onde é possível, mas não chega a desembarcar. Volta, empobrecida, para o navio.

Depois, ela segue para Paris. Este é o local de onde emanam as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. E ela até encontra, mas a essa verdade se agrega a contraface da prostituição, do abuso corporal e até de alguma melancolia. Paris vibra o sonho, mas entrega a realidade.

Por fim, a viagem se acaba em Londres. Na terra do liberalismo econômico, o que se mostra à protagonista é exatamente a violência do projeto colonial inglês: uma violência, só que sem açúcar. Aqui ela vai encontrar o sadismo puro e simples, aliado a uma obsessão pelo território e pelo controle e domínio dos corpos. O liberalismo amargo da Inglaterra mostra sua face no trato servil que se dá aos empregados da mansão.

O filme acaba com a icônica tomada em que o marido daquela que esteve antes no corpo de Bella, Alfie Blessington, é transformado em cabra pela protagonista. Bella Baxter, por sua vez, se forma médica. Segue os passos de seu pai criador, Godwin Baxter, sem cair nem um milímetro longe da árvore.

O final sombrio de “Pobres Criaturas” nos faz ver que, a despeito de toda experiência vivida, mental e corporalmente, todo aprendizado, todo desmontar do teatro de costumes sobre o qual se erige a sociedade, e mesmo toda a sabedoria sobre suas origens, Bella Baxter perpetua a mesma lógica perversa que a produziu.

Casada, ou irmanada, àquela que lhe apresentou o socialismo (escolhendo por fim, uma corrente de pensamento, em oposição ao cinismo de Harry Astley), Bella Baxter nos mostra que mesmo todo o potencial crítico não foi capaz de transformá-la.

A força que move o mundo pelas correntes do pensamento científico ocidental é tão forte, que mesmo a crítica que se faça sobre ele é uma demonstração de sua força. O oprimido, mesmo aquele que viveu muitas experiências e que as tenha processado mentalmente e corporalmente, mesmo esse, continua querendo ser o opressor: desconta em outros as frustrações de sua própria vida.

Por isso é que este final nos é tão impactante. O maior produto da ciência de então – alguém que se encanta e goza e cujo corpo é separado da mente, se transmuta então em um produtor de ciência. De produto a produtor, todos os sinais também se invertem.

Feita a fusão do corpo e da mente – Bella Baxter se entendendo inteira nisto que é, a um só tempo não mais goza e também não mais se encanta. Sua face mais cruel e amarga, a que vimos no fim do filme, é um caminho melancólico percorrido em direção ao lado mais feral de nossa humanidade.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Caminhos para lidar com a inteligência artificial

Imagem criada por mim, com auxílio dos dispositivos tecnológicos - copyleft


Estivesse vivo, Walter Benjamin teria escrito um livro chamado “A linguagem na era de sua reprodutibilidade técnica”.

Já é um clichê dizer que a inteligência artificial chegou de roldão, e que vai mudar inequivocamente a forma como pensamos, trabalhamos e nos divertimos. Isto posto, a pergunta que urge fazermos, e que devemos tentar responder é: o que fazer?

Não é a primeira vez que o ser humano é superado, e olhar paras as experiências pregressas talvez nos ajude a pensar um pouco melhor na questão.

Na Revolução Industrial, vieram as máquinas, que conseguiam fazer muito mais do que um ser humano em termos de movimento, pensando em um processo produtivo. De certa forma, as máquinas chegam para substituir o braço humano, e a escala humana de produção foi superada. Uma coisa que era feita em dias, passou a ser feita em minutos. Uma máquina de fiar passou a coser uma camisa rapidamente, de forma que para produzir uma roupa, hoje, o parâmetro não é o quanto de tempo uma pessoa leva tecendo ou bordando, mas em quanto tempo uma máquina consegue fazê-lo.

É importante colocar aqui que as máquinas não substituíram de todo o trabalho do braço humano, que continuaram a ocupar os galpões das fábricas com sua força de trabalho. Na engenharia de produção, é comum que se fale sobre “o sistema homem-máquina”, que é a operação conjunta desses dois entes, em um mesmo processo ou atividade, que atuam de forma integrada no processo produtivo.

Como diria Marx, o trabalhador ficou alienado de seu processo produtivo, mas não parou de trabalhar; ao menos não na Revolução Industrial. Com o tempo, o desemprego estrutural começou a afetar a população, que foi tendo seu emprego substituído pela máquinas e pelas tecnologias, em um processo que segue em curso até hoje nos processos de desmaterialização da economia e do avanço da indústria 4.0.

Diferente da Revolução Industrial, que propôs a superação do braço humano, nas artes, o que vimos foi a busca por uma superação do olho e, de certa maneira, das mãos.

Durante muito tempo, a pintura foi uma forma de apreensão da realidade. O artista olhava para algo (uma pessoa, uma paisagem) e o reproduzia na tela em branco. Seu valor era tão maior quanto mais fidedignamente ele conseguia reproduzir, na tela, a imagem observada.

Quando chega a fotografia (e também o cinema, que reproduz, na tela, os movimentos que a vida é capaz de gerar), as artes plásticas não morrem. E isso acontece por vários motivos.

O primeiro é que a fotografia da pintura não é uma pintura: ela segue sendo uma fotografia. E, este é o ponto que eu gostaria de chegar: a arte segue por outros caminhos.

Se até a era de sua reprodutibilidade técnica (eu não li o livro do Benjamin, ok? talvez eu devesse :P), o papel da pintura era muitas vezes o de representar a realidade, como se vê na grande quantidade de retratos e de paisagens pré-fotografia, ou, o de representar o belo, como nas pinturas religiosas do Renascimento, que se preocupavam com a forma humana, com as proporções adequadas na construção das cenas, com a simetria etc, etc, rapidamente as artes visuais encontram um outro código para si.

Agora que a realidade pode ser facilmente capturada com as lentes fotográficas, e, se nessas fotografias, somos capazes também de buscar e de construir o belo, são justamente essa beleza e essa realidade que entram em questão. Essa foi uma das razões pelas quais o século XX viu movimentos fortes de ruptura com a realidade (abstracionismo, surrealismo) e com a noção de beleza (minimalismo, pop art e, de certa forma, toda a arte contemporânea pós-Duchamps).

Essas foram as saídas que encontramos para continuarmos com a existência da arte. Falo aqui das artes visuais, mas a arte toda apresentou esta ruptura. Deixou de ter valor a reprodução fidedigna da realidade: o código que passa a vigorar é outro.

Na produção industrial, o que vemos é um processo de natureza semelhante, mas com suas especificidades próprias. Se a industrialização tornou tudo fácil de obter e produzir, o que fizemos foi mudar nossos parâmetros para querer e desejar outras coisas. Por isso, nunca esteve tão em alta entre nós o handcrafted, o artesanal, o feito à mão.

Somos capazes de produzir fermentos que fazem o pão crescer em meia hora, mas estamos dispostos a pagar mais pelo pão de fermentação lenta, que fica 48h ou mais curtindo suas leveduras. Temos uma miríade de insumos químicos agrícolas para produzir alimentos de forma rápida e com frutos mais “bonitos”, mas estamos dispostos a pagar mais caro pela alimentação orgânica, etc, etc.

Esses dois exemplos estão aí para mostrar que a humanidade, em vez de competir com a tecnologia, é capaz de promover uma espécie de retorno à escala humana caso queira, estando disposta a pagar por isso.

Trazendo essa discussão para o caso da Inteligência artificial, que possui uma série de interfaces mas que se materializa mais efetivamente através do chatGPT, o que penso é que encontraremos um caminho.

Esse caminho não passará pela competição com a máquina, nos critérios de eficácia e precisão que ela apresenta, porque certamente perderemos.

Ao contrário, acho que o nosso modo de lidar com a inteligência artificial passa pela valorização do desvio.

Ainda que o Chat GPT seja capaz de fazer corpo mole e de mentir deliberadamente caso não saiba responder a algum questionamento, penso que é mesmo na dimensão mais humana do desvio que nos sobrepujaremos à inteligência artificial, com destaque para duas de suas faces: o erro e o fracasso.

O erro é a marca humana na trama da técnica. Só o ser humano é capaz de produzir o erro (tomado aqui como aquele que ocorre de maneira não-intencional). Na numismática, cada moeda corrente vale exatamente o seu preço de face. As que possuem erros de cunhagem, contudo, alcançam valores muito mais altos.

O futuro humano será um grande catálogo de produtos com pequenos defeitos: a avaria como garantidora da mão e do pensamento humano, as imperfeições textuais, a pontuação, desordenada, com, pequenos erros, letras em dupplicidade, e o que mais o ser humano for capaz de não atingir.

Nesse sentido, o acúmulo de erros se traduz como fracasso, e este vem a ser outra característica humana, demasiado humana.

Se a máquina não fracassará, é o sucesso do fracasso que será responsável por nos reconectar à nossa própria natureza, ao nosso próprio tamanho, à dimensão humana que já se perdeu há mais de um século com os arranha-céus e que agora se afunda ainda mais com a possibilidade de que as máquinas falem como nós.

O fracasso como paradigma só faz sentido porque as máquinas não perdem e não fracassam (e, convenhamos, também não obtêm sucesso, uma vez que sucesso e fracasso são medidas subjetivas de adequação da realidade em função das expectativas que as máquinas, apesar de inteligentes, não são capazes de ter).

Essa dimensão do fracasso retoma um pouco a discussão que tivemos acima sobre a arte porque, da mesma forma que os parâmetros de pensamento e avaliação sobre as artes mudaram em função de sua reprodutibilidade técnica, também será necessário que mudemos a perspectiva sobre as funções positivas ou negativas do sucesso e do fracasso para colocar o ser humano novamente na vanguarda de si.

Dessa forma, o que faço aqui nesse texto é recuperar a noção de experiência do sujeito que parece ter se perdido na vida prática, mas sobre a qual há bastante tempo já se fala. Retomo, portanto, o belo ensaio de Jorge Larrosa Bondía, intitulado “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, no qual ele nos diz: “o que quero apontar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a experiência é impossível.”. No mesmo texto, Bondía também define o conceito de experiência: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.”

Curioso como o ensaio de Larrosa Bondía evoca um texto de Benjamin, que é o autor com o qual começamos esse nosso texto aqui. Quando digo que não li “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, penso que deveria tê-lo feito.

A um só tempo a experiência de não ter querido / podido / conseguido fazer essa leitura traz a mim algum grau de fracasso, e o fracasso é a argamassa com a qual construiremos o futuro. Isso pode ter me levado a erros conceituais também nessa construção textual, mas o erro é o que nos humaniza.

Por fim, o ChatGPT acirra em muita medida essa perda de experiência no mundo contemporâneo (que é o que nos faz, a um só tempo, valorizar o artesanal e reinventar a arte) ao ponto de nos questionarmos se se trata mesmo de uma diferença de grau ou de natureza em relação ao que já acontecia antes.

Entretanto, ainda que ele possa escrever por nós, ele jamais será capaz de ler por nós. O que devemos fazer, então, talvez seja isso: ler.

Vamos começar por Walter Benjamin, com “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Como devemos fazer isso? Ora, da maneira mais humana possível: de forma errática, desprogramada, intermitente, interrompida e inconclusiva.

Com sorte, fracassaremos.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Tár – Uma história sobre o século XX e o apocalipse do Ocidente


Antes de começarmos, é importante deixar claro: esse texto contém spoilers. Portanto, é só para quem já viu o filme.


Tár é uma obra audiovisual belíssima: um filme longo, estrelado de forma magistral pela experiente Cate Blanchett, e que por quase três horas prende o espectador à poltrona sem lançar mão de pirotecnias e efeitos especiais. O enredo é trivial, e aqueles que escrevem sinopses podem ter dificuldades em fazer crer que o filme seja interessante: trata-se da história de vida e de uma aparente crise de meia-idade de uma maestrina que rege uma das orquestras sinfônicas mais importantes da Europa. Até aí, nada demais. Mas Tár é uma obra aberta, e, como tudo aquilo que é bem produzido, possibilita chaves interpretativas que vão muito além do que parece estar sendo contado.

Dessa maneira, assim que saí do cinema, a leitura imediata que fiz (e que foi se apurando em conversas com amigos e amores num barzinho logo depois), é a de que Tár é um filme geopolítico, e seu principal mote é o declínio e o apocalipse do Ocidente, com foco no século XX.

O primeiro elemento que nos traz a essa leitura é a profusão de nacionalidades e de espaços que o filme abrange: China, floresta amazônica, Nova Iorque e Berlim são habitados e frequentados por personagens alemães, norte-americanos, palestinos e russos. Isto não só não é um detalhe, como é um dos principais elementos constitutivos do filme. Isto é especialmente importante se pensarmos na forma com a qual essas pessoas e esses lugares se relacionam.

A trama, portanto, faz com que cada um dos personagens (e também cada um dos lugares mencionados) evoque sua nacionalidade e atue de modo a performar as lutas geopolíticas que o século XX engendrou. O que temos então é uma espécie de teatro do mundo, onde cada um representa um papel cujo significado vai muito além da própria vida.

Lydia Tár é uma maestrina norte-americana e representa, no filme, os EUA. Ela tem uma origem da qual inicialmente pouco se sabe, e da qual ela aparenta ter vergonha. Posteriormente, ao final do filme, vemos que ela vem de uma família pobre, sem posses, tendo inclusive trocado de nome. Os EUA, assim como Lydia, encobertam o seu passado colonial.

A orquestra é o mundo. Formada por membros de diferentes países, cada um dos músicos toca um instrumento. O objetivo é criar uma sinfonia: ou seja, todos os instrumentos devem ser ouvidos sem que um tome o lugar do outro, e a obra final deve ser coesa e harmônica. A esta orquestra/mundo coube a regência de Tár/EUA. Cabe notar que apesar dos inúmeros ensaios, o público não assiste à orquestra quando o filme acaba. A leitura é a de que a regência dos EUA tentou e tentou, durante todo o século XX, mas não foi capaz de, a partir de sua batuta, fazer acontecer o grande “concerto das nações”.

Olga representa a Rússia. Ela chega à orquestra de maneira inesperada e, de maneira muito rápida, consegue arregimentar posições em meio aos músicos. Não mais que de repente, ela, em uma aliança com Tár (que remete à aliança Rússia-EUA na Segunda Guerra Mundial), consegue se estabelecer como a solista do espetáculo, e se torna a segunda pessoa mais poderosa da orquestra (como a Rússia, no contexto do século XX). Logo após essa divisão de poder entre Tár e Olga, a relação se deteriora também de maneira rápida, e essa aliança deixa de existir. Elas então brigam, mas não como qualquer briga: elas deixam de se falar. Em dado momento, as duas estão no mesmo carro, e sequer se encaram, em uma cena que nos remete de maneira muito imediata à Guerra Fria.

Berlim é o lugar onde tudo acontece. Espécie de epicentro do mundo ocidental no século XX, é lá que o “grande concerto das nações” se desenrola. A cidade de Berlim foi murada e dividida, após ter sido palco de duas grandes guerras na Europa no século XX. É lá que se dão os conflitos, as alianças, é ali que o tal “mundo ocidental” está o tempo inteiro em jogo. Não parece ser uma coincidência que Berlim tenha sido escolhida para ser o cenário do filme. É ali que se dá a aliança e o conflito entre Tár e Olga, e é lá que a orquestra/mundo deve mostrar o seu funcionamento coeso e harmônico, do qual só vimos ensaios.

Quem apresenta também esse “desconcerto do mundo” é a filha adotiva de Tár e Sharon, Petra, que é palestina. Ela encarna essa tensão entre Israel e Palestina, assumindo ora uma posição, ora outra. Assumindo o papel israelense, podemos observar que Petra é a única pessoa por quem Tár tem um amor incondicional. Inclusive Tár se desloca até a escola para proteger a menina e ameaçar quem bulir com ela. Essa relação de proteção incondicional é similar à relação que os EUA tem ao amar e proteger o estado de Israel. Por outro lado, a menina sofre esse bullying porque de fato é diferente de suas colegas de escola, que são brancas. Aqui ela assume realmente esse papel palestino, de alguém que não tem paz no seu próprio entorno. Por fim, a briga entre Sharon e Tár (quando Tár é impedida de ver a filha) está ali para nos mostrar que se trata mesmo de um território dividido e em conflito, e de que a tensão Israel/Palestina está longe de acabar.

Por falar em conflito, cabe recuperar a história do conservatório dirigido pela própria Lydia Tár. Ali, naquela cena hipercomplexa em que a maestrina dialoga com Max, um rapaz negro e LGBT, estão representadas as relações dos EUA com o seu próprio povo. Essa cena nos indica que Tár/EUA, ainda que superpoderosos no mundo externo, têm muita dificuldade de lidar com as próprias bases. Max rejeita e confronta o poder da maestrina, lançando mão de uma argumentação decolonial e se recusando a tocar uma peça de um compositor branco. O conflito dentro do conservatório é então isto: um país que não sabe lidar com o momento atual de seu povo, que possui demandas outras, diferentes daquelas nas quais o país foi forjado. Há então uma parte desse povo que se levanta e desafia o poder branco de Tár/EUA.

Portanto, o que temos é que Tár não consegue dar conta de sua orquestra nem de seu conservatório. Daí advém uma crise. Esta é a crise norte-americana, que não foi capaz de, no século XX, resolver suas questões internas nem de reger o mundo, o que acaba por colocar em xeque toda a concepção de mundo ocidental. Esta crise é potencializada pela morte de Krista, um crime do qual Tár é acusada e da qual efetivamente tem culpa, embora insista em negar sua participação. Os EUA participaram de inúmeras guerras ao longo do século XX (Vietnã, Afeganistão, Golfo). O tempo de hoje não permite mais escamotear certas coisas, de maneira que quem tem sangue nas mãos, mais dia menos dia, será julgado.

Nesse sentido, é curioso perceber a surdez e o zumbido de Tár. Inicialmente, não é algo que a assuste, mas essa sensação passa a se tornar mais frequente no curso do filme, inclusive atrapalhando os ensaios. Na verdade, simbolicamente, Tár está surda ao mundo: não consegue entender que Olga se desenvolveu como musicista com base no Youtube, não consegue ouvir as demandas de Max no conservatório, não dá ouvidos mesmo ao silêncio gritante de sua companheira. Perdida em sua fantasia de poder, Tár (assim como os EUA) não consegue ouvir que o mundo à sua volta está em constante transformação, e que demanda coisas que talvez ela já não seja capaz de prover.

Essa fantasia de poder vai sendo paulatinamente desconstruída até que Tár chega à China. Ali, a cena da maestrina no barco é emblemática: enquanto ela pergunta em um tom de chiste e de maneira bem colonizadora sobre o perigo dos jacarés dentro do rio no qual eles singram, o barqueiro responde, sério e com altivez, algo como: “Aqui há apenas os jacarés que Marlon Brando não matou.” Nesta cena, a mensagem passada para Tár é: “aqui você não é especial; nem você, nem o seu povo, e nem a sua cultura.”

Este desprestígio se aprofunda nas cenas finais. O que vemos é mais que o declínio, é mesmo o apocalipse dos EUA e da cultura ocidental. O século XXI emerge, e a China assume o protagonismo do mundo. Há um interesse ali por algo da cultura ocidental, mas este interesse está associado à reapropriação daqueles símbolos em outros termos.

As cenas finais, em que o palco do teatro do mundo é a China, e não mais Berlim, tem inclusive outra temporalidade. Todo o filme se passa num ritmo mais lento, mas as cenas finais são ultra rápidas, o que indica que o eixo do mundo muda não só em sua geografia, mas também em sua velocidade: é num outro ritmo que as coisas acontecem. Para alguém que inicia o filme dizendo que “controla o tempo”, certamente essa mudança de ritmo tem um significado e tanto.

Tár evidentemente não está preparada, de forma que o modo como a cultura ocidental passa a ser retratada naquele contexto é entendida por ela como um grande deboche. É então que, ali, na última cena, em que o público vestido de cosplay aplaude o espetáculo, temos verdadeiramente um gran finale.

O grande concerto das nações, regidos pelos EUA, jamais aconteceu. São as pessoas que passam a protagonizar a cena, a partir de suas próprias subjetividades, para performarem através do cosplay o que de fato elas querem ser. A utopia do poder é desconstruída, e o foco no público, em vez de nos artistas, mostra que a cultura é vista não mais como uma herança do que a humanidade foi capaz de produzir, mas apenas como mais uma ferramenta a ser utilizada na construção e na performance de si.

Este final, apocalíptico mas também apoteótico, nos pega a todos de surpresa. Ao ler essa resenha e nos depararmos com todos os aspectos geopolíticos envolvidos na trama, somos levados a pensar: “Que papel os EUA, e o Ocidente de maneira geral, estarão designados a desempenhar à medida que o século XXI avança?” Mas cabe aqui retomar a impressão imediata que, antes de qualquer análise, nos toma ao sair da sala de cinema, neste final que se nos apresenta como uma catástrofe: “De que serviu aquilo tudo? Toda essa história para, no final, isto?”

Esta impressão inicial, agora matizada pela leitura geopolítica, retorna ainda com mais força. Este retorno vem com uma sutil, mas necessária, variação: “De que serviu aquilo tudo? Toda essa História para, no final, isto?”

terça-feira, 25 de maio de 2021

Desigualdade vacinal


Tenho me sentido estranho e triste. A desigualdade vacinal tem me pegado de um jeito que nem sei bem onde. Tenho 34 anos e não tenho comorbidades. Costumo ser o mais jovem dos grupos que frequento, desde sempre acostumado a andar com os mais velhos. No meu convívio, sou rodeado por profissionais de saúde: médicas, psicólogas, fisioterapeutas. E também por profissionais da educação. Recentemente, tenho descoberto também que muitos dos que me cercam possuem comorbidades as quais, por razões óbvias associadas à privacidade e à discrição, quase sempre desconheço.

Gozo de muitos privilégios na vida, e penso que, de forma geral, tenho razoável consciência deles. Além de um emprego que me permite trabalhar em home office (ao menos por ora), dois deles são esses que já mencionei: ser jovem e sem comorbidades.

Sei também que a ordem de vacinação segue uma lógica: primeiro os mais vulneráveis, e também aqueles que cuidam. Não discordo dessa lógica: na verdade, acho bastante razoável que a ordem de vacinação siga esses princípios.

Tudo isto posto, retomo o início mesmo deste texto, e não tenho como negar que me sinto muito incomodado com esta desigualdade vacinal.

Sinto que estou em um mundo antigo. Vivo ainda em um mundo permeado pelo medo do contágio e da morte, enquanto vejo que ao meu lado as pessoas pouco a pouco recobram a esperança.

Já fui a encontros em que a maior parte das pessoas está vacinada, e vejo que elas fazem parte de um outro tempo histórico. Elas não têm medo do toque nem do ar que respiram. Eventualmente, elas se reúnem em lugares fechados e, quando surge vontade, se abraçam.

No mundo em que vivo, as pessoas ainda se encostam com muito medo, falam à distância, cumprimentam-se com os cotovelos, e têm muito medo de morrer.

Há algo de interessante e potente em ver que esse novo mundo já se desenha para muitas pessoas. Mas há também uma inveja dos que já não precisam lidar com os medos que lido, e que, de alguma forma, já conseguiram superar essa fase.

O sentimento da inveja é legítimo (como qualquer sentimento). Mas não gosto de ter de lidar com ele. Sinto que ele aprofunda minhas tristezas em um mundo já tão triste. Todos os dias acordo querendo tomar minha vacina, e sei que ainda vai demorar. Que, somadas às previsões iniciais já tardias, somar-se-ão ainda os atrasos e problemas logísticos derivados da incompetência e da má-fé. Espero a vacina como quem espera um favor de um país que parece não querer me fornecê-la. Espero a vacina, contra e apesar.

É bom ver a esperança, contudo. Mais gente vacinada é um terreno menos arriscado, sempre. Mas todos os dias as redes sociais me inundam de pessoas ostentando orgulhosas e sorridentes suas carteiras de vacinação. Fico feliz por elas, claro. E dou um aceno do lado de cá, desse mundo que ainda é cheio de medo e de raiva.

Que bom que elas cruzaram a fronteira: então é possível. Mas do lado de cá, nesse mundo em que estou, os dias se passam arrastados, lentos e, porque não, tristes. É preciso aprender a ficar submerso, já sabemos. Porém, mais do que isso, é preciso aprender a ficar submerso sozinho, vendo emergir com vida aqueles que amamos enquanto vivemos ainda o turbilhão, o risco, o medo, e fazendo não apenas o esforço de esperar, mas o de esperar pacientemente a nossa vez de emergir com vida para o novo mundo que virá.

terça-feira, 16 de março de 2021

Um defeito de arado, torta cor


A ideia desse texto é tentar traçar paralelos entre dois romances recentes da literatura brasileira: “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves (2006), e “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior (2019). Não há uma preocupação em esconder ou escamotear elementos importantes de ambas as narrativas, o que significa que esse texto conterá ‘spoilers’. Portanto, recomenda-se a leitura apenas para quem já tenha lido os dois livros.

O primeiro elemento que chama a atenção de quem termina a leitura de um livro após já ter lido o outro (no meu caso, terminei de ler ‘Torto Arado’, já tendo lido ‘Um defeito de cor’) é a tensão entre o singular e o genérico. Ambas as narrativas se concentram na história de personagens negros, e embora foquem suas lentes em um ou dois protagonistas (Kehinde e Bibiana/Belonísia), é possível perceber também uma perspectiva mais generalista, no sentido de dar conta de um panorama da população negra em determinado contexto sociohistórico, a partir de seus personagens secundários. Tem-se a história contada no tempo de vida dos protagonistas, da infância à vida adulta, e, se essa perspectiva permite uma leitura particular e subjetiva daquelas vidas em específico, no que têm de singular, por outro lado a vida das personagens secundárias nos indica, a partir de uma mirada menos subjetiva, quais são as trajetórias de vidas possíveis naquele cenário. Cada um dos personagens é, de certa maneira, um arquétipo: “o que estudou e foi tentar a vida na cidade”, “o que se conformou com as condições”, “a mãe batalhadora”, “o que reproduz em terceiros as condições de opressão e violência que sofre”, etc.

Essa dupla mirada (específica e genérica, subjetiva e social) permite a construção de narrativas que são a um só tempo densas e fluidas. Enquanto se acompanha como uma novela o desenrolar da vida dos protagonistas, a história que ocorre nas franjas (re)cria um mundo para o qual o leitor é transportado. Essa criação, ainda que demande um trabalho acurado dos autores, é de certa maneira uma recriação, pois se cria a partir de algo que já está lá. Trata-se de uma criação menos livre, posto que embasada mais fortemente no contexto social e histórico vinculados ao cenário/panorama no qual a vida dos protagonistas se desenrolam. Nessa recriação é que também reside parte importante da potência dos dois livros. É nela que recende o árduo trabalho de pesquisa dos autores, que envolve aspectos sociais, históricos, políticos, etc. E é através dela que esses livros podem exercer um papel que vai além do entretenimento / diversão. A recriação do panorama histórico nos dois romances, portanto, os dota de um potencial didático. E, a partir das histórias dos protagonistas, esse aspecto didático chega, por assim dizer, ‘com menos didatismo’, com menos aspecto de enciclopédia. Esse círculo virtuoso entre o genérico e o específico, permite que a História (com H maiúsculo) seja apreendida através da história (com h minúsculo), de tal maneira que essa apreensão se dê por um canal que não seja apenas o da racionalidade, mas também o dos afetos.

Por sinal, o caminho da racionalidade é questionado frontalmente em ambas as narrativas. No que soa como uma resposta ao modo de vida iluminista, que apregoou um modelo de igualdade entre as pessoas brancas enquanto tolerava / incentivava a escravidão de pessoas negras, e que também apartou o corpo da alma promovendo um mundo desencantado, as duas narrativas refutam esse modelo e retomam o encantamento do mundo. Ana Maria Gonçalves apresenta, em seu romance, uma espiritualidade de matriz mais marcadamente africana, através dos orixás do candomblé, e também dos eguns maranhenses. Itamar Vieira Junior, por outro lado, traz em sua narrativa uma espiritualidade que, apesar de sua matriz africana, é mais marcadamente brasileira: os encantados. Aqui, os orixás do candomblé se misturam a outras entidades como os caboclos, os espíritos, enfim, os encantados.

Cabe ressaltar que esse movimento de retomada da espiritualidade nos romances não é algo particular dessas duas obras. Pelo contrário, a produção literária brasileira negra parece enfatizar a presença da religiosidade. Na verdade, as religiões de matriz africana são relevantes para os negros brasileiros (tomados como um coletivo, e não de maneira individual) porque recupera a sua ancestralidade, cujas linhas de origem foram apagadas e silenciadas por processos violentos de escravidão e aculturamento, e são colocadas como um elemento de resistência. Dessa maneira, a inserção do elemento religioso / espiritual na produção literária negra é um elemento estético que se vincula a uma determinada ética (modo de vida), e que tem intenção de produzir efeitos políticos.

De maneira particular, ainda em relação à espiritualidade, é notável como cada um dos romances se estrutura a partir de um desses elementos em particular, que dá ‘o tom do romance’. Em ‘Um defeito de cor’, é Oxum que controla o fluxo narrativo. É à imagem de Oxum, esculpida em cerâmica, que a protagonista se apega, e quando essa imagem se revela como uma fonte de dinheiro, a história encontra um de seus pontos de inflexão. Em ‘Torto Arado’, por outro lado, a história tem em Santa Bárbara / Iansã um elemento narrativo muito importante. É quando Zeca Chapéu Grande se veste de Santa Bárbara numa das festas de jarê que o prefeito constrói uma escola no povoado. Além disso, toda a narrativa é fortemente marcada pelos fenômenos climáticos: os tempos de semeadura, de colheita, as estiagens e as enchentes. Isso ressoa na cosmovisão que se tem de Iansã como “rainha dos raios”, aquela que rege as ventanias e as tempestades, “tempo bom, tempo ruim”. É curioso notar que essa espécie de ‘regência’ de cada um dos orixás em suas respectivas narrativas se deixa também transparecer nas capas das obras. ‘Um defeito de cor’ é um livro dourado, a cor de Oxum. Na capa de ‘Torto Arado’, aparecem duas mulheres que seguram folhas de uma espécie vegetal conhecida como espada-de-santa-bárbara, que corresponde a Iansã no catolicismo.

Ainda sobre a espiritualidade, mas não só, é importante pensarmos também a presença das irmãs gêmeas. Cultuadas nas religiões de matriz africana sob o nome de ibêjis, ambas as obras apresentam personagens gêmeas. Em ‘Um defeito de cor’, temos Kehinde e Taiwo; já em ‘Torto Arado’, temos Crispina e Crispiniana e, ainda que não sejam exatamente gêmeas, temos também Bibiana e Belonísia, cuja performance durante a narrativa, dado o grau de proximidade entre elas, pode fazer com que sejam assim percebidas. Portanto, em uma obra, um par de gêmeas; noutra, duas. E ambos os romances se utilizam dessa característica para projetar sobre cada uma das gêmeas a fortuna e o infortúnio. Entre Taiwo e Kehinde, a morte precoce e a longevidade; entre Crispina e Crispiniana, o casamento que se estabeleceu e o que não, a gravidez que vingou e a que não; e entre Bibiana e Belonísia: a língua existente e a inexistente, o casamento feliz e o infeliz. Na verdade, a forma de contar histórias usando irmãos gêmeos como um artifício narrativo é nada mais do que explorar a figura do ‘duplo’. O duplo, que pode ser entendido sob as lentes da psicanálise ou da própria literatura, funciona como uma projeção de si em outro corpo e/ou outro contexto. Resumidamente, pode ser definido como “uma instância onde algo pode ser familiar e também estrangeiro, e essa estranheza e familiaridade a um só tempo produzem desconforto”. Alternativamente, temos também a versão mais complexa para explicar o duplo, que é “uma representação do ego que pode assumir várias formas (sombra, reflexo, retrato, duplo, gêmeo) e que é encontrado no animismo primitivo como uma extensão narcisística e garantia de imortalidade mas que, na ausência do narcisismo, pode prenunciar a morte ou se tornar fonte de perseguição.”. Ambas as definições foram retiradas dessa postagem aqui. Trata-se, portanto, de um recurso muito bem explorado pelos dois romances.

Além das gêmeas, outro elemento que aparece nas duas obras é a faca. Em ambas, a faca aparece como arma, porque é utilizada antes de tudo para mutilar (‘Torto Arado’) ou matar uma pessoa (‘Um defeito de cor’), em vez de seus propósitos culinários, de caça ou de abrir picadas na mata. A faca aparece como um símbolo de força física dentro da narrativa, pois age de maneira incisiva sobre as pessoas, mas também como um elemento de força simbólica para o próprio romance, porque em ambas as vezes em que ela aparece, marca-se uma ruptura com o mundo anterior, e surge, então, um novo mundo. Nesse novo mundo, uma das filhas de Zeca Chapéu Grande fica sem a língua, e Banjokô, primogênito de Kehinde, morre. Cabe notar também que em ambas as situações as facas agem sobre os corpos de crianças, explorando ao limite a tensão entre a vontade mal discernida das crianças e a irresponsabilidade dos adultos que não as supervisionaram.

É importante ressaltar que até aqui vemos alguns paralelismos entre as obras, mas é interessante pensá-las também a partir de um senso de continuidade. Se ‘Um defeito de cor’ explora o universo do século XIX, com suas relações de escravização ativas e vigentes, ‘Torto Arado’ se passa todo no século XX, mostrando como essas relações de escravização permaneceram ativas nos usos da terra, ainda que formalmente não mais vigentes como força de lei. Se no primeiro, vemos o que poderia ocorrer aos negros escravizados, no segundo, somos conduzidos a um mundo pós-escravagista, no qual podemos ver as opressões (outras e as mesmas) a que são submetidos os negros que a letra da lei tornou livres no século seguinte.

Esteja formalizada ou não a relação de subordinação de uma raça à outra, os dois romances, contudo, frisam as narrativas de resistência a essa opressão. Ou seja, os protagonistas (e eventualmente também os coadjuvantes), partindo das condições muitíssimo adversas em que se encontram, são capazes de mobilizar seus recursos (retóricos, intelectuais, corporais, financeiros e espirituais) para se opor ao regime que os oprime. É claro que esses enfrentamentos à ordem não vêm sem conflitos, e é justamente neles que se organizam os romances. É essa tensão entre a ordem das coisas tal como é e a possibilidade de um mundo menos hostil e mais justo que norteia as principais tramas de ambas as histórias.

Por fim, o que se depreende desta breve análise, é que os mundos apresentados em ‘Um defeito de cor’ e em ‘Torto Arado’ são narrativas importantes para que se pensem as formas de resistir às opressões hoje. Permeados por similaridades e por contiguidades que aqui foram discutidas, os romances guardam entre si, também, uma grande carga de diferenças (que são muitas, mas que deixaremos para que os leitores as desbravem).

As semelhanças e as contiguidades entre os romances de Ana Maria Gonçalves e Itamar Vieira Junior, contudo, têm a ver com o que éramos, com o que somos, e com o que queremos vir a ser, não apenas como homens e mulheres negros, mas, de maneira mais ampla, como sociedade mesmo. Que mundo queremos deixar ao futuro? Como iremos construi-lo, desde já, para que os romances do futuro distante possam se referir ao futuro próximo sem ter de apresentar relações raciais que sejam permeadas por tanta violência?

sábado, 23 de novembro de 2019

Destinos livres




‘O Atlântico Negro’, de Paul Gilroy é o livro que me fez me sentir mais verdadeiramente negro. Ora, poderiam dizer, mas a identidade não é algo que se sente, se sabe e se é? Por que um livro poderia ter, então, essa força de reafirmar uma posição identitária? Precisamente porque ele as discute.

‘O Atlântico Negro’, publicado em 1993, é um livro que pensa a identidade negra e a discute, entendendo suas nuances, desvios, singularidades e percursos. Este livro é um marco nos estudos sobre identidade racial porque contrapõe a ideia de afrocentricidade à ideia de diáspora, optando por esta última como uma via interpretativa de se pensar a negritude.

Para Gilroy, o Oceano Atlântico é muito mais relevante para a compreensão das identidades negras do que a África. Somos mais rotas e percursos do que raízes. A compreensão de ser negro no mundo tem, portanto, mais a ver com esses fluxos oceânicos, desde os navios negreiros às trocas culturais transatlânticas contemporâneas entre Europa, África e as Américas, do que com uma vinculação ao território africano.

O livro de Gilroy é riquíssimo porque discute a experiência de ser negro na filosofia, na música e na literatura, considerando esses fluxos e as trocas, tanto entre os negros de todos os continentes, quanto também entre negros e brancos. Não há e não haverá um mundo só de negros e, se um dia as trocas entre negros e brancos foram brutalmente desiguais (e ainda são), considerando em particular a experiência da escravidão, urge brigar por um novo mundo.

‘O  Atlântico Negro’ é um estudo denso e bem escrito. Meu exemplar do livro está todo marcado com pontos de exclamação sobre itens de destaque, mas acho que não conseguiria fazer um texto esmiuçando todos eles em detalhes. Vou tentar falar, então, mais de sentimentos do que de ideias.

O que senti após ler Gilroy foi uma liberdade imensa, e vou explicar porquê. Sou fruto de uma família muito racializada (mãe, irmão e irmã; meu pai, pouco). Muitos de meus almoços em família acabam sempre em discussões étnico-raciais. Apesar de ser o mais fenotipicamente negro dentre todos eles (pele mais escura, boca mais grossa), sou o menos racializado Isso significa que não faço parte de nenhuma religião afro-brasileira, não uso palavras do yorubá no meu dia-a-dia, não estudo questões étnico-raciais de maneira sistematizada, não frequento grupos em que se discute a negritude, não me visto com roupas coloridas que remetem a uma suposta ancestralidade africana e a maior parte de meus amigos são brancos.

Tenho um interesse pela discussão étnico-racial e identitária porque sou negro, e também porque gosto das discussões que as ciências humanas trazem para a forma de ver (e ser visto n’) o mundo. Entretanto, sei que todos me olham de soslaio porque esperam o dia em que eu finalmente ‘me descubra negro’.

A questão é que, até aqui, esse ‘descobrir-se negro’, que paranoicamente penso ser o que esperam de mim, tem muito a ver com o que chega para mim sobre os rolês raciais (especialmente através da minha família, dado que não os frequento muito): reverenciar uma certa África mítica, que pouco tem a ver com a África de hoje, e de se pensar na ancestralidade e nas religiões e nos modos de ser-e-viver africanos.

Essa afrocentricidade me cansa, essa é que é a verdade. Eu sou um ocidental. Sou um homem ateu, gay e negro. Mas caramba, Igor, quando você se diz um ocidental você está dizendo que adotou um modo de ser-e-viver que é originalmente branco, patriarcal, eurocêntrico, colonizador e que quer destruir a tradição de matriz africana através da expansão de uma política de dominação racista sobre os corpos negros no mundo? Não. A resposta é não, e precisamente, porque sou negro. Quero reivindicar aqui a minha identidade de negro e ocidental.

Sou negro no Brasil, um país que, talvez mais do que qualquer outro, tenha sido o destino atlântico de tanta gente. Como a população original do nosso território brasileiro foi dizimada ao longo de séculos de colonização, e como nossas fronteiras terrestres também não foram particularmente ocupadas através do estrangeiro, quase tudo o que somos veio do mar. O Atlântico é a origem negra (e também branca) do Brasil.

Ser negro no Brasil me leva a um entendimento de que sou negro, e como disse, também ocidental. Mas não me faz africano. E, resgatando o argumento inicial, acho que é por isso que a afrocentricidade me cansa. Não me sinto particularmente vinculado à África. Esse africanismo a mim soa falso. Entendo que faça sentido a muita gente, mas a mim, não é algo que me vincule, que me toque de maneira peculiar.

E é por isso que Gilroy me traz essa grande sensação de liberdade. Porque descobri que não preciso reivindicar a África para me sentir negro. Que a experiência de ser negro na diáspora tem a ver com uma espécie de descentramento, de desterritorialização. É evidente que esse processo foi bastante violento, e entendo que hoje parte dos movimentos negros busque esse reconexão, essa busca de raízes.

Mas também não podemos negar a força e a potência de se pensar fora de um centro. A experiência diaspórica colonial castrou essa força e essa potência através da escravidão e das práticas racistas que ainda hoje permanecem em atos e discursos. Mas penso ser possível retomar essa força e essa potência através de um entendimento decolonial da diáspora.

Acho que a gente tem é que aproveitar o descentramento e a desterritorialização para poder pensar que nosso território é o todo, que somos o hoje: engendrar essa potência na criação de novas formas de ser-e-viver, imiscuir-se no mundo.

É verdade que o racismo irmana a todos nós, e a luta antirracista é urgente. É bem mais urgente que a criação de um novo mundo ou do aproveitamento de potencialidades desterritorializadas. O racismo nos une a todos aqui e agora, e constitui parte importante da experiência de ser negro.

Ele está indissociavelmente ligado ao dever de se pensar o que é feito da população negra hoje, em particular no Brasil. Quais são os mecanismos de silenciamento das vozes negras? Como funciona a política que se orienta para a morte de pessoas negras e o que devemos fazer para combatê-la? Como se colocar frontalmente contra o racismo e como orientar as pessoas brancas e de todas as cores a apoiarem a luta antirracista?

Talvez, no Brasil, a experiência do racismo seja o fiel da balança na construção das identidades negras, aqui nesta terra onde houve miscigenação e onde muita gente se pensa preta, branca, parda e misturada. Isso revela também que nem tudo que Gilroy diz tem aplicabilidade para essas terras. A experiência de ser um homem negro inglês é decerto diferente da experiência de ser um homem negro brasileiro, ou de ser um homem negro norte-americano.

São também diferentes as construções da identidade a partir do gênero, da religiosidade, da orientação sexual, enfim: há muitas formas de ser-e-viver. Há também muitas formas de mostrar-se.
E aí entramos no terreno pantanoso da questão da identidade como performance. Entendo que as performances são elementos constitutivos das lutas identitárias. Mulheres negras de turbantes coloridos, homens gays com roupas espalhafatosas e postura afeminada, homens judeus com seu quipá.

Ser e se mostrar o que se é. Existe um orgulho afirmativo na performance, no vestir-se, no entregar aos olhos do outro uma mensagem de vinculação e de pertencimento. Algumas pessoas gostam disso, e usam essa performance como elemento de uma luta coletiva.

Cabe aqui uma digressão. Penso que talvez essa questão não pudesse ser tratada em língua inglesa. Vejo um pouco a questão das identidades como um tênue equilíbrio entre o ser o estar (to be and to be). É-se, mas também está-se. Se ser se associa a uma ideia de essência, de ethos, estar se associa a uma ideia de transitoriedade. O ser é o corpo, o estar a vestimenta. O ser é o dado, o estar o construído. É-se natureza, está-se na cultura.

A construção das identidades e das subjetividades é uma oscilação, um pêndulo entre ser e estar. Nenhuma mulher escolhe ser negra, mas pode escolher estar com um turbante colorido na cabeça. Um homem gay afeminado não escolhe ser afeminado, mas pode escolher estar afeminado. As pessoas são e estão. A construção identitária, no fundo, é uma grande performance de si mesmo.

A afrocentricidade me cansa, então, porque não tenho paciência para uma performance de mim mesmo como esse negro identificado com a África. Minha construção subjetiva e identitária passa por outras performances, dentre as quais a de um pretenso intelectual, que pode parecer ostentar por vezes um olhar blasé sobre o mundo e as coisas.

A perspectiva diaspórica, por outro lado, permite que eu me entenda como uma pessoa negra sem que eu precise pagar nenhum tributo à grande mãe africana. Não preciso me adornar, não preciso deixar meu cabelo black power, não preciso.

Posso me entender um homem negro a partir da perspectiva de que sou fruto de um grande fluxo migratório, que inclui homens e mulheres brancos e negros, que chegaram ao Brasil através do oceano, e que inclui também homens e mulheres que já pertenciam a essa terra e, que no fim, ao fim e ao cabo, a minha origem, como a de muitos, é mesmo insondável, e, ainda que essa incognoscibilidade se deva a um apagamento brutal e violento das marcas de origem através de políticas de separação de famílias, violências sexuais e aculturamento, ainda assim, penso que ser livre e que não ter, nas gerações anteriores, o quê ou a quem pagar qualquer tributo em relação à própria existência, de não ter de satisfazer qualquer expectativa em relação à pátria ou à etnia ou a uma grande mãe continental além-mar, penso que essa liberdade, essa deriva, esse direito e esse dever de construir um futuro novo com o que somos, a partir do que somos, é uma imensa alegria.

Entendo que a retomada do controle do discurso e a construção de narrativas étnicas sobre um passado de glórias pode fazer parte dessa construção subjetiva positiva para algumas pessoas. Retomar as raízes é uma forma possível de se encontrar, mas penso ser mais interessante prescindir delas: menos raiz e mais rizoma.

Nosso território é o todo. Somos o hoje!

Somos e estamos, afinal, livres. Livres, de todo livres. Não era, afinal, o que queríamos?

segunda-feira, 15 de julho de 2019

FLIP 2019: Identidades em construção, territórios em disputa




Acabo de chegar da Festa Literária Internacional de Paraty - FLIP 2019, evento a que fui pela quarta vez. Estive em Paraty também nos anos de 2015, 2016 e 2017.

Percebo com clareza o quanto a festa tem mudado neste breve espaço de tempo.

Em 2015, o evento trouxe como homenageado Mário de Andrade. A FLIP era então uma festa majoritariamente branca, elitizada, cujo público era formado por uma casta intelectual mezzo aristocrata, mezzo pequeno-burguesa, que usava o evento para encontrar seus pares do eixo Rio-São Paulo em um aprazível fim de semana de inverno na idílica cidade colonial de Paraty. Mário de Andrade era homem, branco, paulista. Embora sua sexualidade sempre tenha sido alvo de polêmicas, o evento promoveu maiores discussões em relação à sua contribuição estética ao modernismo e à Semana de 22. Perdeu-se o timing de uma conversa sobre sexualidade e literatura, gênero e produção intelectual. Mas, enfim: tratava-se de 2015. O Brasil era governado por um governo de esquerda, e ainda pairava no ar alguma esperança sobre os caminhos da política pós-2013. Podia-se dizer com tranquilidade: era um tempo de paz.

Em 2016, pressionada por movimentos de mulheres que se viam sub-representadas nas homenagens da FLIP (apenas Clarice Lispector em mais de 10 anos de evento), a organização decidiu por homenagear Ana Cristina César, poeta vinculada ao movimento da Poesia Marginal dos anos 1970, que teve uma vida curta e uma obra pouco prolífica. Se, considerando o destaque concedido pelo evento à autora, a contribuição estética de Ana Cristina César à literatura nacional possa ser questionada, é representativa a contribuição política que a escolha de seu nome trouxe ao evento. Estávamos na época do impeachment de Dilma Rousseff, e as conversas e discussões sobre o feminismo avançavam. Mulheres brancas deram o tom do evento. A política começava a chegar, tímida, não apenas às discussões, mas à realidade da festa.

O ano de 2017 foi um ano especial para a FLIP. À mudança que houve na política brasileira, de substituição de uma mulher do campo democrático-popular por um homem do patronato industrial paulista na liderança do país, correspondeu outra, em sentido inverso, no público do evento. Lima Barreto foi o primeiro escritor negro a ser homenageado na FLIP (desconsiderando Machado de Assis, cuja filiação étnico-racial é, ainda hoje, fruto de acalorados debates). Tratava-se também de um escritor dos subúrbios do Rio de Janeiro, que fez destes o cenário de sua literatura. Lima Barreto era ainda um entusiasta do Brasil, e ter sido homenageado neste ano contrastava com o presidente da república apequenado que ora tínhamos, dos menos populares de nossa história republicana. A FLIP de 2017 é a prova material de que representatividade importa. Não é uma coincidência que justo no ano em que o primeiro autor negro fora homenageado, Paraty exibia um público colorido nos seus quatro dias de festa. Nunca houvera tantos negros na FLIP, de forma que a questão racial se fez sentir na maior parte das discussões. Com as mesas principais ocorrendo na Igreja da Matriz (fato que não havia acontecido antes e, ao que tudo indica, não acontecerá depois, contribuindo para dar uma verdadeira aura singular ao evento de 2017), homens e mulheres; brancos, pardos e pretos; ricos, não tão ricos e quase pobres, construíram juntos esse evento bonito, tomado pela diversidade. Em um dos momentos mais icônicos da FLIP 2017, Ana Maria Gonçalves (escritora de ‘Um defeito de cor’) mediava um encontro com Conceição Evaristo, ao passo em que esta dizia, dentro da igreja ‘Este espaço que nós ocupamos este ano na FLIP não é nenhum favor. Nós devemos ocupar este espaço, que é nosso por direito!’. Foi ovacionada.

Em 2018, ano em que a homenageada foi Hilda Hilst, não consegui ir ao evento. O ano de 2019, contudo, mostra que as transformações políticas pelas quais a FLIP tem passado seguem seu curso. O homenageado foi Euclides da Cunha. Em sua opera magna, ‘Os sertões’, Euclides traz à baila a temática dos sertanejos, dos pobres, dos despossuídos, dos oprimidos pelo Estado. O público, mais uma vez, mudou. Se a casta intelectual dos elitizados que frequentou o evento em 2015 se incomodou com a invasão de mulheres e de negros nos anos subsequentes, talvez hoje o tomem por aliados. À medida que o tempo avança e a política nacional recrudesce em suas posturas de aumento da violência, aumento da desigualdade e desvalorização da diversidade, a FLIP segue em sua tendência de inflexão, tornando-se menos um evento do status quo, do establishment, e mais um evento de contracultura e da valorização da diversidade e da dissidência. É importante ressaltar também que, a cada ano que passa, a identidade do evento depende menos do que quer ou do que pensa a organização da FLIP. Espraiada por cada vez mais casas e mais espaços de convívio e de circulação no Centro Histórico de Paraty, a FLIP é, a cada ano que passa, um evento mais rizomático, com menor controle central. Mesmo a literatura, esteio principal da festa, cada vez cede mais espaço a outras formas de cultura como a música e o cinema. A diversidade segue de vento em popa. Como disse Suely Rolnik, em uma conversa na FLIPEI – Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, a mudança ocorrida na micropolítica, em relação às identidades, é IRREVERSÍVEL. Segundo ela, governos vão e vêm, mas a maneira pela qual grupos historicamente subalternizados como mulheres, gays, trans, favelados e periféricos passam a se organizar e se auto-afirmar nas suas identidades (individuais e coletivas) não tem retorno. Para que tenhamos ideia de como se trata mesmo de um processo irrefreável, entre os cinco autores mais vendidos na FLIP, estão quatro negros e um índio. Por todo o lado, mesas e casas estiveram discutindo as potências e interseccionalidades entre arte e gênero, literatura e raça, produção de saberes e periferia, colonialidade e poder. Mas é preciso lembrar que estamos em 2019 e, bem, o fascismo está na rua. Essa FLIP ficou marcada por um episódio envolvendo o jornalista Glenn Greenwald. Falando em um local aberto (no já citado barco da FLIPEI), Glenn teve sua voz abafada por fogos de artifício e rojões de pessoas que impediram o livre discurso do jornalista (eu não estava no local no momento, mas disseram que a confusão provocada de fato atrapalhou sua fala). Manifestantes do bolsonarismo também fizeram uma espécie de comício em uma pequena praça nas franjas do Centro Histórico. Em outro momento, me deparei com uma marcha para Jesus que serpenteava pelas ruas estreitas do Centro Histórico entoando cânticos de louvor, sob os olhares assombrados de quem se entretinha entre uma loja e outra. Ouvi dizer que esses manifestantes entraram em conflito com índios guaranis que cantavam e pediam dinheiro em uma praça (não tive, contudo, como confirmar a informação). Isto para não falar nas tabuletas de testemunhas de jeová em cada esquina, com homens, mulheres e crianças com as pernas cobertas por calças ou saias longas, ostentando olhares tristes e oferecendo alternativas à danação terrena.

Decerto essa foi, até então, a FLIP mais tensa e mais conflituosa de que participei. Tensão e conflitos esses que estiveram, por vezes, a poucos passos da violência. Por um lado, é positivo que o Centro Histórico tenha sido ocupado por bolsonaristas e religiosos. Isto revela que esses grupos consideram a FLIP um espaço importante. É um evento na rua e, se a rua é de todos, por que não eles? Bolsonaristas e religiosos, tal como mulheres e negros anos antes, reivindicam para si a ocupação deste território, real e simbolicamente. A diferença é que não o pleiteiam para disputar no âmbito da cultura esses espaços. Negros e mulheres queriam ser mais uma voz a falar, queriam que suas vozes fossem ouvidas: eles podem e devem ocupar esses espaços. Bolsonaristas e religiosos querem tomar para si o espaço da rua não para compor o coro da diversidade, mas para impor um pensamento monolítico e calar as vozes que, a despeito das últimas eleições, vejam só, ficaram ainda mais altas.

Fica o recado também para quem pensa que a FLIP é só mais um lugar para curtir um lifestyle bon-vivant tomando um vinho a 15 graus. Será cada vez menos. A edição de 2019 mostrou que as bolhas que permitiam a construção de um evento asséptico foram paulatinamente sendo rompidas. Ao menos por ora, não há e não haverá paz nas ruas; a tensão é a norma.

Nessa guerra entre a diversidade e a burrice, perdemos a batalha eleitoral. Mas, não importa quanto barulho façam, a batalha da narrativa cultural continua pendendo para o nosso lado.

Viva a FLIP, viva a diversidade!