segunda-feira, 30 de abril de 2018

O Rei da Vela


Acabo de voltar da última sessão da peça ‘O rei da Vela’, dirigida por José Celso Martinez e encenada na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca.

Em primeiro lugar, devo dizer que, para quem não está no eixo Zona Oeste, a Cidade das Artes é um local cuja viagem vale a pena. O lugar é lindo, a arquitetura é monumental e agradável, a acústica da sala de teatro é irretorquível (havia um evento de cerveja artesanal no vão livre do espaço, imperceptível para quem se mantinha dentro da sala). Não bastasse isso, fui em ótima companhia.

Foi minha primeira experiência com o teatro de José Celso Martinez, esse monstro sagrado do teatro brasileiro. Mesmo velhinho, ele nos brindou com sua presença atuando no palco, e também com um ótimo discurso ao final do espetáculo (que, como já dito, coincidiu com o encerramento da turnê carioca).

O texto, escrito por Oswald de Andrade, é modernista e antropofágico. A direção contribuiu para deixá-lo ainda mais doido.

Nas quatro horas de peça, com dois intervalos, foi contada a história do anti-herói, o rei da vela. Espécie de messias do atraso, o rei da vela é alguém que ganha tão mais quanto o povo perde. Ele tem a face do capitalista, do moralista, do lobista, do despachante.

A caracterização dos personagens foi adaptada para dar uma contemporaneidade às cenas, de maneira que aparecem vários elementos/arquétipos com atuação na política dos dias de hoje: o militar bronco e odioso, o gringo estadunidense, o oprimido, o índio, o feitor.

Há vários méritos na peça, e não é à toa que ela vem sendo um sucesso de público e de crítica. Escrachando a vida política brasileira, Zé Celso realiza uma montagem que encontra forte ressonância no público.

E é aí, a meu ver, que a peça perde. Resvalando muitas vezes para alguns clichês dos quais o público se sente parte, tudo acaba por cair num jogo fácil de dar a isca certeira aos que têm fome de política.
Quando digo fácil, quero dizer que o público que foi à peça, uma burguesia carioca intelectualizada de classe média identificada com os ideais da esquerda, aplaude sem sobressaltos um elenco que incita diretamente na plateia gritos de ‘Lula livre’, ‘Marielle presente’, etc...

Ao mostrar o discurso do capitalismo de maneira rasgada, apesar das nuances e camadas criadas pela direção, o espetáculo resvala no panfleto e no maniqueísmo.

Nesse sentido, minha principal crítica é ‘ter gostado demais’ da peça. Sinto que fui contemplado demais politicamente, que a peça disse o que eu gostaria de ouvir e/ou o que já tenho de antemão. Só que eu vou ao teatro para ser incomodado. E senti falta, sinceramente, de um conflito instaurado, de que minhas opiniões titubeassem, de que houvesse mais dúvida e menos grito de guerra.

Jogando contra o maniqueísmo maior, um dos elementos que colabora para esse ponto de vista mais dúbio é a personagem Heloísa, uma lésbica futurista que é oprimida por gênero e orientação sexual, mas opressora por riqueza material.

Outro ponto alto da peça é a introdução, no primeiro ato, da música ‘Envolvimento’, uma composição de MC Loma e as Gêmeas Lacração. Num rompante, quando um dos personagens fala sobre a tradição no Brasil, começa a tocar ‘Sento, sento, sento, sento, sento e quico devagar. Vou quicar e rebolar, vou quicar e rebolar.’

O funk de MC Loma e as Gêmeas Lacração é uma das mais novas expressões do kitsch brasileiro. E, diferente de todo discurso empolado sobre o capitalismo, a burguesia, os bolcheviques, e também diferente de toda sátira política dos dias atuais com os nomes dos políticos levemente alterados, ‘Envolvimento’ não teve o aplauso do público.

O funk, naquele teatro de intelectuais, foi uma das poucas coisas que parece ter criado algum incômodo na plateia, ainda que leve.

O incômodo contra o uníssono.

Mc Loma e as Gêmeas Lacração, na minha opinião, é o mais verdadeiro desbunde, a mais violenta das afrontas apresentadas por ‘O rei da vela’ (não ao establishment político, mas à plateia). É ali que está o teatro de Zé Celso.