domingo, 11 de janeiro de 2015

Eu não sou Charlie, eu não sou Ahmed, eu não sou ninguém



Vi em algum lugar e já não me lembro exatamente onde, tamanha a profusão de textos sobre o assunto, de que o Somos Todos Charlie tem uma certa semelhança com o “Somos Todos Macacos”, que surgiu aqui no Brasil no caso Daniel Alves, e que foi rapidamente vilipendiado pelos movimentos sociais. No entanto, à parte o fenômeno da rápida comoção das pessoas, e de eventuais mudanças de postura após esta rápida comoção, existe uma diferença entre os dois casos que talvez nos ajude a elucidar o que está acontecendo hoje, na França e no mundo.

Este elemento é a ausência de maniqueísmo. Enquanto no caso Daniel Alves existia uma clara noção de certo-e-errado, uma clara de noção de quem era o opressor e de quem era o oprimido, já não se pode dizer o mesmo no caso do atentado ao jornal francês.

Uma coisa que se viu naquele exemplo, e que não pode ser visto agora é a existência de um coro. Uma única voz em uníssono a dizer que éramos todos macacos, seguidos de uma outra voz, mais à esquerda, também um coro, a nos dizer que não, que não éramos. No caso de agora, pessoas à direita e à esquerda, ora dizem que são Charlie Hebdo, ora dizem que são Ahmed, o policial islâmico que morreu em decorrência do atentado. Não parece haver um consenso, em última instância, um coro, a guiar a massa de pessoas para um lado ou para o outro. De acordo com o que tenho visto (e cabe lembrar que cada um de nós tem acesso a um espectro da realidade, um percentil ínfimo; no nosso caso, que ainda estamos a um oceano de distância dos fatos, mais ainda), a sensação é de que as cartas na mesa do jogo político estão todas embaralhadas. A religião embaralhou a política.

No caso do Brasil, embora não tenhamos a questão muçulmana aparecendo de forma efetiva nos principais centros urbanos do país, temos também as nossas questões religiosas. Somos um país extremamente católico, temos um conjunto de evangélicos com grande representatividade no congresso (embora não representem todo o conjunto dos evangélicos), e religiões afro-brasileiras, além do crescente movimento ateu. E, por aqui, não, não podemos falar abertamente sobre religiões. Religião no Brasil é um tabu muito maior do que na França.

Nós somos o país que proibiu o desfile do Cristo Redentor no desfile da escola-de-samba Beija-Flor em 1989. Nós somos o país que tem medo dos ‘macumbeiros’ e os demoniza. Nós somos o país em que se declarar ateu é colocar em xeque a própria reputação e a própria dignidade. Ou, como diz o Laerte, o Brasil é o país em que o Hebdo não poderia existir. Nesse sentido, causa bastante estranheza que muitos brasileiros advoguem à favor da liberdade de imprensa quando qualquer piada com jesus cristo seria crucificada em terras tupiniquins (com trocadilho, por favor). É claro que todos condenam o atentado, a violência, etc. Mas em termos de liberdade de imprensa, tem muita gente por aí que é extremamente egoísta e só defende o ponto de vista da liberdade de imprensa porque se trata da religião do outro.

A discussão sobre o respeito às religiões é virtualmente infinito, de forma que não gostaria de me alongar sobre ele, até mesmo porque essa discussão está longe de ser o cerne da argumentação que pretendo desenvolver. O que deixo como minha opinião é de que toda religião é sim, profanável. Que eu não entendo exatamente porque todas as pessoas têm que ter respeito às religiões quando as religiões nem de longe têm respeito por todas as pessoas. Em última instância, acho que a profanação é um DIREITO de todas as religiões. Poder ser criticado significa ser reconhecido, ser percebido, estar no mundo, existir. Mas, enfim, embora eu seja a favor da liberdade da profanação, eu mesmo não as profano e as respeito todas. Sinceramente, mais por uma questão de convivibilidade do que por princípios. É importante ressaltar que ‘profanar’, da maneira que estou usando aqui, não tem a ver com incitação de ódio, tem a ver apenas com dessacralização. (ei, você! você pode não concordar com este parágrafo, mas por favor, continue lendo. :-] )

Mas essa questão religiosa da profanação é, na verdade, uma fatia de uma outra questão, maior: Que coisas podem ser ‘profanadas’? O que pode ser objeto de piada?.

A cultura brasileira assentou suas bases no humor de ódio, intolerância e deboche ao diferente, ao que fugia dos padrões, a tudo que era percebido como menor. Aí estão inclusos os negros, os gays, os índios, as religiões afro-brasileiras. Era o humor do opressor contra o oprimido. De uns dez anos para cá, com a popularização da internet e, especialmente, com a reverberação da voz dos movimentos sociais em decorrência das novas mídias, esse tipo de humor ‘politicamente incorreto’ passou a ser quase proibido, ao passo em que emergiu um novo tipo de humor de matiz oposta: o humor do oprimido contra o opressor. Esse tipo de humor que, no Brasil, sacaneia a Igreja Católica, os políticos, e gente muito rica (tipo o ‘Rei do Camarote’) fez e faz cada vez mais sucesso e muito disso se deve ao grupo ‘Porta dos Fundos’. Então, enquanto construímos nossa vivência histórico-cultural com charges do opressor contra o oprimido, hoje só vale o oposto, do oprimido contra o opressor.

E é nisso que reside a grande questão do problema. Enquanto há grupos, no Brasil, tradicionalmente opressores (Igreja Católica, homens brancos, latifundiários) e outros tradicionalmente oprimidos (negros, gays, quilombolas), o que se vê hoje, tanto no Brasil, quanto no mundo, a construção de um cenário onde esses modelos de ‘oprimido’ e ‘opressor’ podem não mais servir para enquadrar os grupos sociais.

É precisamente essa a questão das charges que retratam Maomé e do atentado ao Charlie Hebdo. O povo islâmico é AO MESMO TEMPO opressor, porque oprime suas mulheres e as relega a uma condição de dependência e subserviência aos homens (além de ser a religião dominante no planeta), e oprimido, porque ocupa um lugar periférico e marginal na composição da atual população europeia.

Ao mesmo tempo, os judeus, historicamente um povo oprimido, em especial se considerarmos a Segunda Guerra Mundial, pode ser visto também como um povo que oprime os palestinos (embora sempre haja outros pontos de vista). Se falarmos de grupos brasileiros, mesmo entre grupos historicamente oprimidos, podemos observar situações semelhantes. Mulatos oprimem pretos, gays oprimem trans. Mas mulatos são oprimidos por brancos, gays são oprimidos por heterossexuais. Onde, exatamente, está a relação de opressão entre ateus e evangélicos?

O fato é que as relações de opressão têm se tornado mais complexas. Isso se deve tanto ao empoderamento de grupos oprimidos quanto à dinâmica de formação e crescimento dos grupos sociais. As relações de opressão também têm a sua classe média, o seu nível gerencial (que recebe ordens do patrão e ordena ao empregado).

O que falar, então, do caso da polícia? A polícia, que no Brasil sempre é citada como um grupo extremamente truculento e opressora dos movimentos sociais, é também um grupo oprimido, de salários baixos. O Somos todos Ahmed é uma resposta interessante da sociedade francesa ao Somos todos Charlie. No entanto, essa polícia oprimida (e neste caso, ainda mais, por ser justamente um muçulmano) é exatamente a mesma polícia que, no dia seguinte, pode lançar bombas de efeito moral para dispersar uma manifestação (embora, na França isso fosse menos provável; mas mesmo assim, possível).

Enfim, esse texto termina de uma maneira inconclusiva, mas acho importante remeter ao título. Nessas horas, mais do que ser Charlie Hebdo, ou de ser Ahmed, é importante não ser essas coisas, mas pensar sobre essas coisas dentro de um mundo que dificilmente comporta respostas maniqueístas para as questões contemporâneas.

Por fim, creio que tal como nas manifestações de junho de 2013, só a história será capaz de entender exatamente o que aconteceu. Enquanto isso, exatamente como nas manifestações de junho de 2013 (que têm muito mais a ver com o atentado do que o Somos todos macacos), mais importante do que ter uma opinião de pronto é questionar, em primeiro lugar, a opinião que querem que você tenha.