Acabo de chegar da Festa
Literária Internacional de Paraty - FLIP 2019, evento a que fui pela quarta
vez. Estive em Paraty também nos anos de 2015, 2016 e 2017.
Percebo com clareza o quanto a
festa tem mudado neste breve espaço de tempo.
Em 2015, o evento trouxe como homenageado
Mário de Andrade. A FLIP era então uma festa majoritariamente branca, elitizada,
cujo público era formado por uma casta intelectual mezzo aristocrata, mezzo
pequeno-burguesa, que usava o evento para encontrar seus pares do eixo Rio-São
Paulo em um aprazível fim de semana de inverno na idílica cidade colonial de
Paraty. Mário de Andrade era homem, branco, paulista. Embora sua sexualidade
sempre tenha sido alvo de polêmicas, o evento promoveu maiores discussões em
relação à sua contribuição estética ao modernismo e à Semana de 22. Perdeu-se o
timing de uma conversa sobre sexualidade e literatura, gênero e produção
intelectual. Mas, enfim: tratava-se de 2015. O Brasil era governado por um
governo de esquerda, e ainda pairava no ar alguma esperança sobre os caminhos
da política pós-2013. Podia-se dizer com tranquilidade: era um tempo de paz.
Em 2016, pressionada por
movimentos de mulheres que se viam sub-representadas nas homenagens da FLIP
(apenas Clarice Lispector em mais de 10 anos de evento), a organização decidiu
por homenagear Ana Cristina César, poeta vinculada ao movimento da Poesia Marginal
dos anos 1970, que teve uma vida curta e uma obra pouco prolífica. Se,
considerando o destaque concedido pelo evento à autora, a contribuição estética
de Ana Cristina César à literatura nacional possa ser questionada, é
representativa a contribuição política que a escolha de seu nome trouxe ao
evento. Estávamos na época do impeachment de Dilma Rousseff, e as conversas e
discussões sobre o feminismo avançavam. Mulheres brancas deram o tom do evento.
A política começava a chegar, tímida, não apenas às discussões, mas à realidade
da festa.
O ano de 2017 foi um ano especial
para a FLIP. À mudança que houve na política brasileira, de substituição de uma
mulher do campo democrático-popular por um homem do patronato industrial
paulista na liderança do país, correspondeu outra, em sentido inverso, no
público do evento. Lima Barreto foi o primeiro escritor negro a ser homenageado
na FLIP (desconsiderando Machado de Assis, cuja filiação étnico-racial é, ainda
hoje, fruto de acalorados debates). Tratava-se também de um escritor dos
subúrbios do Rio de Janeiro, que fez destes o cenário de sua literatura. Lima
Barreto era ainda um entusiasta do Brasil, e ter sido homenageado neste ano
contrastava com o presidente da república apequenado que ora tínhamos, dos
menos populares de nossa história republicana. A FLIP de 2017 é a prova
material de que representatividade importa. Não é uma coincidência que justo no
ano em que o primeiro autor negro fora homenageado, Paraty exibia um público
colorido nos seus quatro dias de festa. Nunca houvera tantos negros na FLIP, de
forma que a questão racial se fez sentir na maior parte das discussões. Com as
mesas principais ocorrendo na Igreja da Matriz (fato que não havia acontecido
antes e, ao que tudo indica, não acontecerá depois, contribuindo para dar uma
verdadeira aura singular ao evento de 2017), homens e mulheres; brancos, pardos
e pretos; ricos, não tão ricos e quase pobres, construíram juntos esse evento bonito,
tomado pela diversidade. Em um dos momentos mais icônicos da FLIP 2017, Ana
Maria Gonçalves (escritora de ‘Um defeito de cor’) mediava um encontro com
Conceição Evaristo, ao passo em que esta dizia, dentro da igreja ‘Este espaço
que nós ocupamos este ano na FLIP não é nenhum favor. Nós devemos ocupar este
espaço, que é nosso por direito!’. Foi ovacionada.
Em 2018, ano em que a homenageada
foi Hilda Hilst, não consegui ir ao evento. O ano de 2019, contudo, mostra que
as transformações políticas pelas quais a FLIP tem passado seguem seu curso. O
homenageado foi Euclides da Cunha. Em sua opera magna, ‘Os sertões’, Euclides
traz à baila a temática dos sertanejos, dos pobres, dos despossuídos, dos
oprimidos pelo Estado. O público, mais uma vez, mudou. Se a casta intelectual
dos elitizados que frequentou o evento em 2015 se incomodou com a invasão de
mulheres e de negros nos anos subsequentes, talvez hoje o tomem por aliados. À
medida que o tempo avança e a política nacional recrudesce em suas posturas de
aumento da violência, aumento da desigualdade e desvalorização da diversidade,
a FLIP segue em sua tendência de inflexão, tornando-se menos um evento do
status quo, do establishment, e mais um evento de contracultura e da
valorização da diversidade e da dissidência. É importante ressaltar também que,
a cada ano que passa, a identidade do evento depende menos do que quer ou do
que pensa a organização da FLIP. Espraiada por cada vez mais casas e mais
espaços de convívio e de circulação no Centro Histórico de Paraty, a FLIP é, a
cada ano que passa, um evento mais rizomático, com menor controle central.
Mesmo a literatura, esteio principal da festa, cada vez cede mais espaço a
outras formas de cultura como a música e o cinema. A diversidade segue de vento
em popa. Como disse Suely Rolnik, em uma conversa na FLIPEI – Festa Literária
Pirata das Editoras Independentes, a mudança ocorrida na micropolítica, em
relação às identidades, é IRREVERSÍVEL. Segundo ela, governos vão e vêm, mas a
maneira pela qual grupos historicamente subalternizados como mulheres, gays,
trans, favelados e periféricos passam a se organizar e se auto-afirmar nas suas
identidades (individuais e coletivas) não tem retorno. Para que tenhamos ideia
de como se trata mesmo de um processo irrefreável, entre os cinco autores mais
vendidos na FLIP, estão quatro negros e um índio. Por todo o lado, mesas e
casas estiveram discutindo as potências e interseccionalidades entre arte e
gênero, literatura e raça, produção de saberes e periferia, colonialidade e
poder. Mas é preciso lembrar que estamos em 2019 e, bem, o fascismo está na rua.
Essa FLIP ficou marcada por um episódio envolvendo o jornalista Glenn
Greenwald. Falando em um local aberto (no já citado barco da FLIPEI), Glenn
teve sua voz abafada por fogos de artifício e rojões de pessoas que impediram o
livre discurso do jornalista (eu não estava no local no momento, mas disseram que
a confusão provocada de fato atrapalhou sua fala). Manifestantes do
bolsonarismo também fizeram uma espécie de comício em uma pequena praça nas franjas
do Centro Histórico. Em outro momento, me deparei com uma marcha para Jesus que
serpenteava pelas ruas estreitas do Centro Histórico entoando cânticos de
louvor, sob os olhares assombrados de quem se entretinha entre uma loja e
outra. Ouvi dizer que esses manifestantes entraram em conflito com índios
guaranis que cantavam e pediam dinheiro em uma praça (não tive, contudo, como
confirmar a informação). Isto para não falar nas tabuletas de testemunhas de
jeová em cada esquina, com homens, mulheres e crianças com as pernas cobertas
por calças ou saias longas, ostentando olhares tristes e oferecendo
alternativas à danação terrena.
Decerto essa foi, até então, a
FLIP mais tensa e mais conflituosa de que participei. Tensão e conflitos esses
que estiveram, por vezes, a poucos passos da violência. Por um lado, é positivo
que o Centro Histórico tenha sido ocupado por bolsonaristas e religiosos. Isto
revela que esses grupos consideram a FLIP um espaço importante. É um evento na
rua e, se a rua é de todos, por que não eles? Bolsonaristas e religiosos, tal
como mulheres e negros anos antes, reivindicam para si a ocupação deste
território, real e simbolicamente. A diferença é que não o pleiteiam para
disputar no âmbito da cultura esses espaços. Negros e mulheres queriam ser mais
uma voz a falar, queriam que suas vozes fossem ouvidas: eles podem e devem
ocupar esses espaços. Bolsonaristas e religiosos querem tomar para si o espaço
da rua não para compor o coro da diversidade, mas para impor um pensamento
monolítico e calar as vozes que, a despeito das últimas eleições, vejam só,
ficaram ainda mais altas.
Fica o recado também para quem
pensa que a FLIP é só mais um lugar para curtir um lifestyle bon-vivant tomando
um vinho a 15 graus. Será cada vez menos. A edição de 2019 mostrou que as
bolhas que permitiam a construção de um evento asséptico foram paulatinamente
sendo rompidas. Ao menos por ora, não há e não haverá paz nas ruas; a tensão é
a norma.
Nessa guerra entre a diversidade
e a burrice, perdemos a batalha eleitoral. Mas, não importa quanto barulho
façam, a batalha da narrativa cultural continua pendendo para o nosso lado.
Viva a FLIP, viva a diversidade!
Um comentário:
Igor meu filho, sua análise é perspicaz e sensata. Não e fácil mas e possível.,. Eles passarão. Nós passarinhos... Viva a diversidade! Viva a vida pulsante! Viva a liberdade de de expressão! Viva a arte! Viva a literatura!
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