sábado, 23 de novembro de 2019

Destinos livres




‘O Atlântico Negro’, de Paul Gilroy é o livro que me fez me sentir mais verdadeiramente negro. Ora, poderiam dizer, mas a identidade não é algo que se sente, se sabe e se é? Por que um livro poderia ter, então, essa força de reafirmar uma posição identitária? Precisamente porque ele as discute.

‘O Atlântico Negro’, publicado em 1993, é um livro que pensa a identidade negra e a discute, entendendo suas nuances, desvios, singularidades e percursos. Este livro é um marco nos estudos sobre identidade racial porque contrapõe a ideia de afrocentricidade à ideia de diáspora, optando por esta última como uma via interpretativa de se pensar a negritude.

Para Gilroy, o Oceano Atlântico é muito mais relevante para a compreensão das identidades negras do que a África. Somos mais rotas e percursos do que raízes. A compreensão de ser negro no mundo tem, portanto, mais a ver com esses fluxos oceânicos, desde os navios negreiros às trocas culturais transatlânticas contemporâneas entre Europa, África e as Américas, do que com uma vinculação ao território africano.

O livro de Gilroy é riquíssimo porque discute a experiência de ser negro na filosofia, na música e na literatura, considerando esses fluxos e as trocas, tanto entre os negros de todos os continentes, quanto também entre negros e brancos. Não há e não haverá um mundo só de negros e, se um dia as trocas entre negros e brancos foram brutalmente desiguais (e ainda são), considerando em particular a experiência da escravidão, urge brigar por um novo mundo.

‘O  Atlântico Negro’ é um estudo denso e bem escrito. Meu exemplar do livro está todo marcado com pontos de exclamação sobre itens de destaque, mas acho que não conseguiria fazer um texto esmiuçando todos eles em detalhes. Vou tentar falar, então, mais de sentimentos do que de ideias.

O que senti após ler Gilroy foi uma liberdade imensa, e vou explicar porquê. Sou fruto de uma família muito racializada (mãe, irmão e irmã; meu pai, pouco). Muitos de meus almoços em família acabam sempre em discussões étnico-raciais. Apesar de ser o mais fenotipicamente negro dentre todos eles (pele mais escura, boca mais grossa), sou o menos racializado Isso significa que não faço parte de nenhuma religião afro-brasileira, não uso palavras do yorubá no meu dia-a-dia, não estudo questões étnico-raciais de maneira sistematizada, não frequento grupos em que se discute a negritude, não me visto com roupas coloridas que remetem a uma suposta ancestralidade africana e a maior parte de meus amigos são brancos.

Tenho um interesse pela discussão étnico-racial e identitária porque sou negro, e também porque gosto das discussões que as ciências humanas trazem para a forma de ver (e ser visto n’) o mundo. Entretanto, sei que todos me olham de soslaio porque esperam o dia em que eu finalmente ‘me descubra negro’.

A questão é que, até aqui, esse ‘descobrir-se negro’, que paranoicamente penso ser o que esperam de mim, tem muito a ver com o que chega para mim sobre os rolês raciais (especialmente através da minha família, dado que não os frequento muito): reverenciar uma certa África mítica, que pouco tem a ver com a África de hoje, e de se pensar na ancestralidade e nas religiões e nos modos de ser-e-viver africanos.

Essa afrocentricidade me cansa, essa é que é a verdade. Eu sou um ocidental. Sou um homem ateu, gay e negro. Mas caramba, Igor, quando você se diz um ocidental você está dizendo que adotou um modo de ser-e-viver que é originalmente branco, patriarcal, eurocêntrico, colonizador e que quer destruir a tradição de matriz africana através da expansão de uma política de dominação racista sobre os corpos negros no mundo? Não. A resposta é não, e precisamente, porque sou negro. Quero reivindicar aqui a minha identidade de negro e ocidental.

Sou negro no Brasil, um país que, talvez mais do que qualquer outro, tenha sido o destino atlântico de tanta gente. Como a população original do nosso território brasileiro foi dizimada ao longo de séculos de colonização, e como nossas fronteiras terrestres também não foram particularmente ocupadas através do estrangeiro, quase tudo o que somos veio do mar. O Atlântico é a origem negra (e também branca) do Brasil.

Ser negro no Brasil me leva a um entendimento de que sou negro, e como disse, também ocidental. Mas não me faz africano. E, resgatando o argumento inicial, acho que é por isso que a afrocentricidade me cansa. Não me sinto particularmente vinculado à África. Esse africanismo a mim soa falso. Entendo que faça sentido a muita gente, mas a mim, não é algo que me vincule, que me toque de maneira peculiar.

E é por isso que Gilroy me traz essa grande sensação de liberdade. Porque descobri que não preciso reivindicar a África para me sentir negro. Que a experiência de ser negro na diáspora tem a ver com uma espécie de descentramento, de desterritorialização. É evidente que esse processo foi bastante violento, e entendo que hoje parte dos movimentos negros busque esse reconexão, essa busca de raízes.

Mas também não podemos negar a força e a potência de se pensar fora de um centro. A experiência diaspórica colonial castrou essa força e essa potência através da escravidão e das práticas racistas que ainda hoje permanecem em atos e discursos. Mas penso ser possível retomar essa força e essa potência através de um entendimento decolonial da diáspora.

Acho que a gente tem é que aproveitar o descentramento e a desterritorialização para poder pensar que nosso território é o todo, que somos o hoje: engendrar essa potência na criação de novas formas de ser-e-viver, imiscuir-se no mundo.

É verdade que o racismo irmana a todos nós, e a luta antirracista é urgente. É bem mais urgente que a criação de um novo mundo ou do aproveitamento de potencialidades desterritorializadas. O racismo nos une a todos aqui e agora, e constitui parte importante da experiência de ser negro.

Ele está indissociavelmente ligado ao dever de se pensar o que é feito da população negra hoje, em particular no Brasil. Quais são os mecanismos de silenciamento das vozes negras? Como funciona a política que se orienta para a morte de pessoas negras e o que devemos fazer para combatê-la? Como se colocar frontalmente contra o racismo e como orientar as pessoas brancas e de todas as cores a apoiarem a luta antirracista?

Talvez, no Brasil, a experiência do racismo seja o fiel da balança na construção das identidades negras, aqui nesta terra onde houve miscigenação e onde muita gente se pensa preta, branca, parda e misturada. Isso revela também que nem tudo que Gilroy diz tem aplicabilidade para essas terras. A experiência de ser um homem negro inglês é decerto diferente da experiência de ser um homem negro brasileiro, ou de ser um homem negro norte-americano.

São também diferentes as construções da identidade a partir do gênero, da religiosidade, da orientação sexual, enfim: há muitas formas de ser-e-viver. Há também muitas formas de mostrar-se.
E aí entramos no terreno pantanoso da questão da identidade como performance. Entendo que as performances são elementos constitutivos das lutas identitárias. Mulheres negras de turbantes coloridos, homens gays com roupas espalhafatosas e postura afeminada, homens judeus com seu quipá.

Ser e se mostrar o que se é. Existe um orgulho afirmativo na performance, no vestir-se, no entregar aos olhos do outro uma mensagem de vinculação e de pertencimento. Algumas pessoas gostam disso, e usam essa performance como elemento de uma luta coletiva.

Cabe aqui uma digressão. Penso que talvez essa questão não pudesse ser tratada em língua inglesa. Vejo um pouco a questão das identidades como um tênue equilíbrio entre o ser o estar (to be and to be). É-se, mas também está-se. Se ser se associa a uma ideia de essência, de ethos, estar se associa a uma ideia de transitoriedade. O ser é o corpo, o estar a vestimenta. O ser é o dado, o estar o construído. É-se natureza, está-se na cultura.

A construção das identidades e das subjetividades é uma oscilação, um pêndulo entre ser e estar. Nenhuma mulher escolhe ser negra, mas pode escolher estar com um turbante colorido na cabeça. Um homem gay afeminado não escolhe ser afeminado, mas pode escolher estar afeminado. As pessoas são e estão. A construção identitária, no fundo, é uma grande performance de si mesmo.

A afrocentricidade me cansa, então, porque não tenho paciência para uma performance de mim mesmo como esse negro identificado com a África. Minha construção subjetiva e identitária passa por outras performances, dentre as quais a de um pretenso intelectual, que pode parecer ostentar por vezes um olhar blasé sobre o mundo e as coisas.

A perspectiva diaspórica, por outro lado, permite que eu me entenda como uma pessoa negra sem que eu precise pagar nenhum tributo à grande mãe africana. Não preciso me adornar, não preciso deixar meu cabelo black power, não preciso.

Posso me entender um homem negro a partir da perspectiva de que sou fruto de um grande fluxo migratório, que inclui homens e mulheres brancos e negros, que chegaram ao Brasil através do oceano, e que inclui também homens e mulheres que já pertenciam a essa terra e, que no fim, ao fim e ao cabo, a minha origem, como a de muitos, é mesmo insondável, e, ainda que essa incognoscibilidade se deva a um apagamento brutal e violento das marcas de origem através de políticas de separação de famílias, violências sexuais e aculturamento, ainda assim, penso que ser livre e que não ter, nas gerações anteriores, o quê ou a quem pagar qualquer tributo em relação à própria existência, de não ter de satisfazer qualquer expectativa em relação à pátria ou à etnia ou a uma grande mãe continental além-mar, penso que essa liberdade, essa deriva, esse direito e esse dever de construir um futuro novo com o que somos, a partir do que somos, é uma imensa alegria.

Entendo que a retomada do controle do discurso e a construção de narrativas étnicas sobre um passado de glórias pode fazer parte dessa construção subjetiva positiva para algumas pessoas. Retomar as raízes é uma forma possível de se encontrar, mas penso ser mais interessante prescindir delas: menos raiz e mais rizoma.

Nosso território é o todo. Somos o hoje!

Somos e estamos, afinal, livres. Livres, de todo livres. Não era, afinal, o que queríamos?

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