quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O que aprendi (ou não) lendo um livro acadêmico sobre sadomasoquismo


Acabo de ler ‘A perversão domesticada – BDSM e consentimento sexual’, de Bruno Zilli (Ed. Papéis Selvagens, 2018). Este livro foi escrito por Bruno a partir da sua dissertação em Saúde Coletiva, realizada no Instituto de Medicina Sexual (IMS) da Uerj. Na verdade, trata-se do próprio trabalho acadêmico defendido em 2007, publicado no formato livro em 2018, quase sem alterações.

Bruno é antropólogo, mas seu trabalho de mestrado foi realizado na Saúde Coletiva (ao que consta, o autor torna ao campo das Ciências Sociais no seu programa de doutorado). Para quem não sabe, a sigla BDSM significa Bondage (amarração e técnicas de imobilização), Disciplina e SadoMasoquismo. Isto posto, vamos à discussão do texto.

Basicamente, como a quase totalidade dos trabalhos acadêmicos de mestrado, a estrutura é dividida em revisão de literatura, metodologia, estudo de caso / coleta de dados, e conclusão. Em vez de optar por uma leitura diagonal, focada basicamente em olhar a introdução e a conclusão, me dispus a ler o texto de maneira integral.

A revisão de literatura, que costuma ser a parte mais maçante das dissertações, está um primor. Bruno discute a evolução do BDSM através de um prisma histórico. O sadomasoquismo e outras práticas tidas como ‘perversões sexuais’ ao longo da história, como a homossexualidade, são discutidas no seu enquadramento como transtorno. Descritas como ‘parafilias’ no contexto do surgimento da psicanálise no início do século XX, em pouco tempo estas práticas passam a ser descritas como ‘transtornos parafílicos’ no contexto da psiquiatria e das descrições de doenças contidas nos Manuais DSM (Diagnostic and Statistic Manual, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria), que, atualizados em média a cada década, são um dos principais instrumentos que vêm sendo utilizados para se caracterizar determinado comportamento como doença ou transtorno mental.

Esta revisão de literatura aborda a evolução do DSM, desde sua primeira edição (DSM I), até a sua quinta edição (DSM 5). É apresentada uma discussão muito articulada sobre a gênese desses manuais, de como ele nasce tendo por base a psicanálise e, como ao longo do tempo, a psiquiatria se desvincula do campo epistemológico de Freud (com suas explicações psicologizantes), aproximando-se de uma abordagem médica, técnica, biológica e mais ‘científica’ (com suas soluções farmacológicas). Explica também como a psiquiatria, através do DSM, pensa as parafilias e os transtornos parafílicos à luz dos novos movimentos civis dos anos 1960, especialmente os da afirmação da homossexualidade através de uma óptica de grupo/cultura, reivindicando para si a negação de seu enquadramento como doença/transtorno.

É uma discussão riquíssima e muito bem conduzida (eu, que não sou da área, percebo que aprendi bastante).

Sinto, contudo, que a dissertação deveria ter sido circunscrita a esta bela elucidação, bem feita, articulada, que ensina ao mesmo tempo que engendra novas discussões e pensamentos a quem a lê.

As partes posteriores do trabalho são conduzidas num nível de detalhe e de riqueza de discussão muito menores do que os encontrados na revisão de literatura. Em primeiro lugar, os dados são todos coletados na internet. Embora o próprio autor sinalize que essa tenha sido uma crítica que surgiu algumas vezes ao longo do trabalho, e apesar mesmo dos argumentos utilizados pelo autor para justificar a pesquisa nesse formato, os dados encontrados na internet não são muito interessantes.

Bruno vasculha algumas listas de discussão e sites sobre BDSM, em busca de alguma espécie de referencial normativo para o conjunto destas práticas. Naturalmente, ele encontra com facilidade essas informações. Esses ‘guias para as práticas de BDSM’ são uma certa maneira de homogeneizar o discurso e as práticas BDSM em direção a uma certa normatividade, que justifique a prática como ‘normal’ (e, portanto, não patológica) a partir da categoria do consentimento.

Sinto que essa abordagem, entretanto, ficou meio circular. Ao procurar por um conjunto de normas, é de se esperar que se encontre algo normativo.

O autor se identifica como alguém que não é da comunidade BDSM. Certamente, existe aí uma lacuna de conhecimento do objeto a ser estudado (conjunto de práticas BDSM), que poderia ter sido preenchida por algumas entrevistas. Mas elas não são realizadas. Alguém pode argumentar que isso não faz parte diretamente do escopo do trabalho, mas, especialmente se considerarmos que o autor é antropólogo, faltou uma etnografia mínima. Não é evidenciada no trabalho nenhuma percepção sobre o senso de pertencimento à comunidade BDSM por seus praticantes, sequer uma descrição das práticas. O leitor fica, portanto, apenas com uma conceituação teórica, vaga, sobre o que poderiam ser estas práticas BDSM.

É claro que esta percepção nesta resenha/análise que ora construo é posterior às leituras de trabalhos como ‘Festas de orgias para homens’, de Victor Hugo de Souza Barrreto, e de ‘Manifesto contrassexual’, de Paul B. Preciado, autores que, de certa maneira, habitam em alguma medida o universo que estudam, fazendo uma ponte entre a vida acadêmica e a vida real.

A impressão é a de que Bruno Zilli não mergulha no seu universo de pesquisa, trazendo ao leitor uma visão ‘limpinha’ demais do que se propõe a pesquisar.

Por último, a categoria do consentimento sexual, que está no título, não foi adequadamente problematizada. Há alguma discussão (pouca) do BDSM como jogo/cena, em oposição ao que seria o BDSM real, isto é, aquele no qual o não-consentir entraria como um elemento real da erotização dos corpos.

Mas sinto que faltou uma discussão um pouco mais contemporânea. Frases como o ‘Não é não.’ e ‘Depois do não, tudo é assédio.’, reivindicadas como verdades pela maior parte dos feminismos, podem ser deslocadas em um contexto no qual os jogos eróticos têm no consentimento sexual (real ou encenado) um de seus principais elementos. Que articulações podem ser feitas a partir do avanço dos feminismos no século XXI, que reivindica essas verdades, e das lutas de uma comunidade BDSM que coloca a categoria do consentimento na centralidade mesma de seus jogos eróticos?

É claro que se trata de uma dissertação de mestrado (e não de uma tese), que foi defendida num programa de Saúde Coletiva (e não de antropologia), escrita há quase dez anos (e não hoje). Dou todos os descontos. Mesmo considerando também que o mundo acadêmico talvez não estivesse tão permissivo a voos mais ousados à época, não posso me furtar à constatação de que esta leitura me deixou um pouco frustrado.

O livro chegou às minhas mãos e me despertou interesse pelo título. Dessa forma, tudo o que eu esperava encontrar era uma discussão contemporânea de qualidade sobre as práticas BDSM e o consentimento sexual, possivelmente à luz de alguns estudos de gênero. Não encontrei, fiquei frustrado.

Por outro lado, encontrei uma valiosa e bem-articulada discussão sobre os caminhos discursivos da psicanálise e da psiquiatria ao longo de todo o século XX, perscrutando o movimento das parafilias (ou ‘perversões sexuais’) do patológico em direção à normalidade. Fiquei surpreso.

É isso. Frustração, surpresa: o livro de Bruno Zilli está aí para mostrar que as coisas não são uma coisa só. Mirei no que vi, acertei no que não vi. Quem nunca?

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