‘O Atlântico Negro’, de Paul Gilroy
é o livro que me fez me sentir mais verdadeiramente negro. Ora, poderiam dizer,
mas a identidade não é algo que se sente, se sabe e se é? Por que um livro
poderia ter, então, essa força de reafirmar uma posição identitária?
Precisamente porque ele as discute.
‘O Atlântico Negro’, publicado em
1993, é um livro que pensa a identidade negra e a discute, entendendo suas
nuances, desvios, singularidades e percursos. Este livro é um marco nos estudos
sobre identidade racial porque contrapõe a ideia de afrocentricidade à ideia de
diáspora, optando por esta última como uma via interpretativa de se pensar a
negritude.
Para Gilroy, o Oceano Atlântico é
muito mais relevante para a compreensão das identidades negras do que a África.
Somos mais rotas e percursos do que raízes. A compreensão de ser negro no mundo
tem, portanto, mais a ver com esses fluxos oceânicos, desde os navios negreiros
às trocas culturais transatlânticas contemporâneas entre Europa, África e as Américas,
do que com uma vinculação ao território africano.
O livro de Gilroy é riquíssimo
porque discute a experiência de ser negro na filosofia, na música e na
literatura, considerando esses fluxos e as trocas, tanto entre os negros de
todos os continentes, quanto também entre negros e brancos. Não há e não haverá
um mundo só de negros e, se um dia as trocas entre negros e brancos foram
brutalmente desiguais (e ainda são), considerando em particular a experiência
da escravidão, urge brigar por um novo mundo.
‘O Atlântico Negro’ é um estudo denso e bem
escrito. Meu exemplar do livro está todo marcado com pontos de exclamação sobre
itens de destaque, mas acho que não conseguiria fazer um texto esmiuçando todos
eles em detalhes. Vou tentar falar, então, mais de sentimentos do que de
ideias.
O que senti após ler Gilroy foi
uma liberdade imensa, e vou explicar porquê. Sou fruto de uma família muito
racializada (mãe, irmão e irmã; meu pai, pouco). Muitos de meus almoços em família
acabam sempre em discussões étnico-raciais. Apesar de ser o mais fenotipicamente
negro dentre todos eles (pele mais escura, boca mais grossa), sou o menos
racializado Isso significa que não faço parte de nenhuma religião
afro-brasileira, não uso palavras do yorubá no meu dia-a-dia, não estudo
questões étnico-raciais de maneira sistematizada, não frequento grupos em que
se discute a negritude, não me visto com roupas coloridas que remetem a uma
suposta ancestralidade africana e a maior parte de meus amigos são brancos.
Tenho um interesse pela discussão
étnico-racial e identitária porque sou negro, e também porque gosto das
discussões que as ciências humanas trazem para a forma de ver (e ser visto n’)
o mundo. Entretanto, sei que todos me olham de soslaio porque esperam o dia em
que eu finalmente ‘me descubra negro’.
A questão é que, até aqui, esse ‘descobrir-se
negro’, que paranoicamente penso ser o que esperam de mim, tem muito a ver com
o que chega para mim sobre os rolês raciais (especialmente através da minha
família, dado que não os frequento muito): reverenciar uma certa África mítica,
que pouco tem a ver com a África de hoje, e de se pensar na ancestralidade e
nas religiões e nos modos de ser-e-viver africanos.
Essa afrocentricidade me cansa,
essa é que é a verdade. Eu sou um ocidental. Sou um homem ateu, gay e negro.
Mas caramba, Igor, quando você se diz um ocidental você está dizendo que adotou
um modo de ser-e-viver que é originalmente branco, patriarcal, eurocêntrico,
colonizador e que quer destruir a tradição de matriz africana através da expansão
de uma política de dominação racista sobre os corpos negros no mundo? Não. A resposta
é não, e precisamente, porque sou negro. Quero reivindicar aqui a minha
identidade de negro e ocidental.
Sou negro no Brasil, um país que,
talvez mais do que qualquer outro, tenha sido o destino atlântico de tanta
gente. Como a população original do nosso território brasileiro foi dizimada ao
longo de séculos de colonização, e como nossas fronteiras terrestres também não
foram particularmente ocupadas através do estrangeiro, quase tudo o que somos
veio do mar. O Atlântico é a origem negra (e também branca) do Brasil.
Ser negro no Brasil me leva a um
entendimento de que sou negro, e como disse, também ocidental. Mas não me faz
africano. E, resgatando o argumento inicial, acho que é por isso que a afrocentricidade
me cansa. Não me sinto particularmente vinculado à África. Esse africanismo a
mim soa falso. Entendo que faça sentido a muita gente, mas a mim, não é algo
que me vincule, que me toque de maneira peculiar.
E é por isso que Gilroy me traz
essa grande sensação de liberdade. Porque descobri que não preciso reivindicar
a África para me sentir negro. Que a experiência de ser negro na diáspora tem a
ver com uma espécie de descentramento, de desterritorialização. É evidente que
esse processo foi bastante violento, e entendo que hoje parte dos movimentos
negros busque esse reconexão, essa busca de raízes.
Mas também não podemos negar a
força e a potência de se pensar fora de um centro. A experiência diaspórica
colonial castrou essa força e essa potência através da escravidão e das
práticas racistas que ainda hoje permanecem em atos e discursos. Mas penso ser
possível retomar essa força e essa potência através de um entendimento
decolonial da diáspora.
Acho que a gente tem é que aproveitar
o descentramento e a desterritorialização para poder pensar que nosso
território é o todo, que somos o hoje: engendrar essa potência na criação de novas
formas de ser-e-viver, imiscuir-se no mundo.
É verdade que o racismo irmana a
todos nós, e a luta antirracista é urgente. É bem mais urgente que a criação de
um novo mundo ou do aproveitamento de potencialidades desterritorializadas. O
racismo nos une a todos aqui e agora, e constitui parte importante da
experiência de ser negro.
Ele está indissociavelmente
ligado ao dever de se pensar o que é feito da população negra hoje, em
particular no Brasil. Quais são os mecanismos de silenciamento das vozes
negras? Como funciona a política que se orienta para a morte de pessoas negras
e o que devemos fazer para combatê-la? Como se colocar frontalmente contra o
racismo e como orientar as pessoas brancas e de todas as cores a apoiarem a luta
antirracista?
Talvez, no Brasil, a experiência
do racismo seja o fiel da balança na construção das identidades negras, aqui
nesta terra onde houve miscigenação e onde muita gente se pensa preta, branca,
parda e misturada. Isso revela também que nem tudo que Gilroy diz tem
aplicabilidade para essas terras. A experiência de ser um homem negro inglês é
decerto diferente da experiência de ser um homem negro brasileiro, ou de ser um
homem negro norte-americano.
São também diferentes as construções
da identidade a partir do gênero, da religiosidade, da orientação sexual, enfim:
há muitas formas de ser-e-viver. Há também muitas formas de mostrar-se.
E aí entramos no terreno
pantanoso da questão da identidade como performance. Entendo que as
performances são elementos constitutivos das lutas identitárias. Mulheres
negras de turbantes coloridos, homens gays com roupas espalhafatosas e postura
afeminada, homens judeus com seu quipá.
Ser e se mostrar o que se é. Existe
um orgulho afirmativo na performance, no vestir-se, no entregar aos olhos do
outro uma mensagem de vinculação e de pertencimento. Algumas pessoas gostam
disso, e usam essa performance como elemento de uma luta coletiva.
Cabe aqui uma digressão. Penso
que talvez essa questão não pudesse ser tratada em língua inglesa. Vejo um
pouco a questão das identidades como um tênue equilíbrio entre o ser o estar (to
be and to be). É-se, mas também está-se. Se ser se associa a uma
ideia de essência, de ethos, estar se associa a uma ideia de
transitoriedade. O ser é o corpo, o estar a vestimenta. O ser é o dado, o estar
o construído. É-se natureza, está-se na cultura.
A construção das identidades e
das subjetividades é uma oscilação, um pêndulo entre ser e estar. Nenhuma
mulher escolhe ser negra, mas pode escolher estar com um turbante colorido na cabeça.
Um homem gay afeminado não escolhe ser afeminado, mas pode escolher estar
afeminado. As pessoas são e estão. A construção identitária, no fundo, é uma grande
performance de si mesmo.
A afrocentricidade me cansa,
então, porque não tenho paciência para uma performance de mim mesmo como esse
negro identificado com a África. Minha construção subjetiva e identitária passa
por outras performances, dentre as quais a de um pretenso intelectual, que pode
parecer ostentar por vezes um olhar blasé sobre o mundo e as coisas.
A perspectiva diaspórica, por
outro lado, permite que eu me entenda como uma pessoa negra sem que eu precise
pagar nenhum tributo à grande mãe africana. Não preciso me adornar, não preciso
deixar meu cabelo black power, não preciso.
Posso me entender um homem negro
a partir da perspectiva de que sou fruto de um grande fluxo migratório, que inclui
homens e mulheres brancos e negros, que chegaram ao Brasil através do oceano, e
que inclui também homens e mulheres que já pertenciam a essa terra e, que no
fim, ao fim e ao cabo, a minha origem, como a de muitos, é mesmo insondável, e,
ainda que essa incognoscibilidade se deva a um apagamento brutal e violento das
marcas de origem através de políticas de separação de famílias, violências
sexuais e aculturamento, ainda assim, penso que ser livre e que não ter, nas gerações
anteriores, o quê ou a quem pagar qualquer tributo em relação à própria
existência, de não ter de satisfazer qualquer expectativa em relação à pátria ou
à etnia ou a uma grande mãe continental além-mar, penso que essa liberdade,
essa deriva, esse direito e esse dever de construir um futuro novo com o que somos, a partir do que somos, é uma imensa alegria.
Entendo que a retomada do
controle do discurso e a construção de narrativas étnicas sobre um passado de
glórias pode fazer parte dessa construção subjetiva positiva para algumas
pessoas. Retomar as raízes é uma forma possível de se encontrar, mas penso ser
mais interessante prescindir delas: menos raiz e mais rizoma.
Nosso território é o todo. Somos
o hoje!
Somos e estamos, afinal, livres.
Livres, de todo livres. Não era, afinal, o que queríamos?