quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Focas, pinguins e o conhecimento científico



Na última semana, a notícia de que focas estavam estuprando pinguins sacudiu a internet. À parte o fato deplorável de que alguns encontraram nesta notícia o subterfúgio que sempre quiseram para fazer piadas sobre o estupro de forma mais 'tranquila' e menos sujeita a julgamentos, e para além da notória bizarria que constitui o cerne da matéria veiculada, existe uma outra coisa que aparece quase nas entrelinhas de tão sutil, mas que vou tentar desenvolver aqui: a falibilidade do conhecimento científico.

O texto desta notícia, em suas várias nuances de acordo com o veículo de mídia, costumava apresentar ou no primeiro ou no último parágrafo um trecho como: "Cientistas estão intrigados com o fenômeno"; ou alternativamente: "Cientistas ainda não sabem explicar porque esse tipo de comportamento ocorre".

Cientistas estarem intrigados com o fenômeno é uma coisa ótima. Isto significa, no mínimo, que estes que foram citados na reportagem são bons cientistas. A segunda frase, entretanto, é aquela que traz o problema que ora abordo.

A raiz deste problema está na palavra "ainda". A existência desta palavra na reportagem traz consigo a seguinte mensagem: "Ora, trata-se de um fenômeno muito recente e que demanda muito estudo. Evidentemente, a ciência conseguirá explicar isto mais cedo ou mais tarde. Nossa impossibilidade de explicar o fenômeno é apenas momentânea."

Acredito que seria muito improvável que a matéria pudesse ser publicada sem que a palavra "ainda" estivesse na sentença. A frase "Cientistas não sabem explicar porque esse tipo de comportamento ocorre.", embora absolutamente verdadeira, frustraria não apenas os leitores mas também a própria comunidade científica, todos eles muito acostumados à ideia de que a ciência tem que dar conta de explicar todas as coisas.

Só que ela não vai.

Particularmente, até acredito que neste caso a ciência conseguirá explicar este fenômeno em breve. Mas pode ser que não consiga. Pode ser que este fenômeno, o estupro dos pinguins pelas focas, não tenha uma explicação científica. Ah, mas como assim? É, pode ser que não tenha. Quando um homem estupra uma mulher, isso não necessariamente tem uma explicação científica. Pode ter uma explicação psicanalítica, que não é ciência. Pode ter uma explicação espiritual/religiosa, que também não é científica. Em alguns casos, isso pode estar associado a um questão hormonal ou a alguma anomalia em uma região cerebral, o que, apenas nessa caso, teria a ver com o conhecimento científico.

A fé cega na ciência, e mais do que isso, achar que a verdade científica é a única verdade possível, é, senão burrice, ao menos ingenuidade. Os fenômenos, todos os fenômenos que acontecem, são dotados de uma tal complexidade, que olhar para eles sempre sob o mesmo prisma do conhecimento científico é nada menos do que reduzi-los a uma fração do que eles, de fato, são.

Essa estratégia de pensamento unilateral não é privilégio da ciência. Muitas religiões acreditam que todas as coisas podem ser explicadas por um livro sagrado (quando, é claro, não podem). Algumas linhas da psicanálise acham que tudo pode ser reduzido às pulsões sexuais (quando, é claro, não pode). Alguns economistas acham que a taxa de crescimento do PIB explica tudo quanto for relevante para a economia dos países, enquanto outros acham que a luta de classes é o grande conceito por trás de todas os fenômenos sociais (quando, na verdade, não são).

Não estou dizendo que não acho importante ter enfoques. Ao longo das nossas vidas, vamos escolhendo algumas formas de ver o mundo, sob alguns prismas, alguns ângulos. Isso é bastante razoável. Mas reduzir todas as coisas que existem a apenas uma única forma de olhar é não perceber que o mundo é mais complexo do que somos capazes de apreender.

Acreditar no método científico como única solução possível é um ranço do positivismo do século dezenove, que acha que os homens vão desenvolver a tecnologia até o ponto de domar a natureza por completo. É com certo espanto que vejo esse tipo de pensamento (que desembocou na eugenia e no conceito de raça superior) ser reproduzido ainda no século XXI. Não cabe mais achar que a natureza está lá parada, pronta para ser dominada e explicada pelos homens doutos e cultos. Não cabe mais achar que todas as coisas podem ser explicadas de uma única forma, seja a religião, a psicanálise, a economia ou a ciência. O mundo é plural, complexo, e nós não damos conta nem de nós mesmos muitas das vezes. É preciso admitir a própria ignorância.

Nessa linha, vou relatar uma experiência que tive. Eu não tenho religião. Não trabalho com o conceito de deuses ou divindades. No entanto, a postura presunçosa do ateísmo combativo que acha que deus não existe PORQUE a ciência é capaz de explicar todas as coisas foi me afastando da alcunha de "ateu" e me aproximando do termo "agnóstico". Hoje em dia, tenho me intitulado como "sem religião", o que evita desgastes e mal-entendidos nas relações quando o assunto vem à tona. Ser "sem religião" me exime de uma necessidade de explicar o mundo de forma unilateral e é por isso que a fé cega ateia na ciência me incomoda tanto.

Mas, retomando, sobre a experiência que tive, foi o seguinte. Certa vez, eu conversava com um colega (que já nem lembro mais quem era), e surgiu esse assunto sobre religião. "Ah, qual a sua religião?", ele perguntou, "Não tenho", respondi, "Sou ateu." Daí, este colega (que na ocasião acabei descobrindo ser bem religioso) me perguntou: "Ah, é, então como é que você explica quando a pessoa recebe um santo e muda completamente a aparência, voz, jeito, tudo? Você realmente não acredita que existem espíritos? Hein, como você explica isso?" Daí, respondi: "Não, eu não explico." "Ué, mas como assim? Você não sabe explicar isso então? Então você acredita ué." "Cara, eu não vim pra explicar nada. Eu não sei explicar isso como não sei explicar um monte de outras coisas. Tem muita coisa que eu não sei. E tudo bem não sabê-las." Ele ficou muito incrédulo e desconfiado com o fato de eu não ter um livro sagrado que desse conta de explicar o mundo, fosse ele a Bíblia, o Alcorão o Capital ou o livro do Stephen Hawking.

As pessoas não estão prontas para se assumirem ignorantes, para assumir que não sabem. E ficam lá esperando a ciência 'evoluir' para que possamos explicar porque existe um cometa que toca música ou porque focas estupram pinguins.

Acreditar que as coisas ainda não foram explicadas é, certamente, muito mais reconfortante do que aceitar que para algumas coisas (talvez para a maioria delas), não existe qualquer tipo de explicação.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

é preciso falar um pouco sobre a morte.






é preciso falar um pouco sobre a morte. não sobre essa morte desencarnada que deixa os restos do corpo (osso, unha e cabelos) na fria decomposição dos cemitérios, mas sobre a morte que se vive todos os dias e que nos invade de forma intempestiva. existe uma morte muito grande que nos rouba um pouco de colágeno e de memória todos os dias. esse morrer pouco a pouco é um misto de falta de viço e castração. é uma pressão por ser-se e construir-se nalgo que não é capaz de se sustentar: os trabalhos de toda sorte, as contas para pagar, a vida. é preciso falar um pouco sobre essa morte que é excesso de vida, sobre essa morte que é excesso de pulsação e falta de pulso. essa morte a cuja construção nos permitimos todos os dias sem nos questionarmos muito, e lhe cortamos a arte, a vontade, o deleite e o delito. é preciso falar um pouco sobre essa morte que é violência silenciosa todos os dias, transporte, dor de cabeça, café expresso, camisa social. é uma morte que se nos tolhe também o esporte, a cultura e a crítica. vai ficando só, ao fim dos dias sem fim, uma vida de pouco azul e de muito chá verde. há quem diga que a morte é o que nos iguala a todos e contra ela devemos todos ter uma espécie de resignação silenciosa, como se fosse preciso aceitá-la sem muita indagação. mas a morte são muitas mortes. há uma parte, e sempre há uma parte em tudo que é inteiro, que precisa ser aceita. mas há outra parte contra a qual se pode lutar. é preciso matar a morte que nos mata. é possível e é preciso gritar ‘parem as máquinas’, girar a engrenagem ao contrário. é preciso não morrer porque é preciso navegar. está mais do que na hora de falarmos sobre a morte que não desencarna, sobre essa morte regular de sala de espera, de saguão de aeroporto, de oito horas por dia no escritório, enquanto as sinapses belíssimas da abstração se vão perdendo nas sendas agudas do cerebelo. é preciso falar um pouco também sobre a morte que é também desencarnar, mas já tanto é dito sobre essa morte, que quase não se é concedido espaço algum para a novidade. e é sobre essa morte que é preciso falar. a morte da novidade, do encanto, da beleza, é preciso falar sobre muitas mortes. é preciso falar sobre todas as mortes. a morte dos poços nos quais se cai, a morte dos livros que são lidos e dos que não o são, a morte dos amores, a morte do desejos, a mortificada morte da morte. é preciso falar sobre a morte permeada de bondias, boastardes e boasnoites, que é miséria e comiseração travestida de formalidade. é preciso falar sobre a morte dos poços em que se cai. quando é morto o poço onde se cai, há que se pensar que a queda morre no rastro do poço, mas ela fica nonada. Nonada. a queda sem poço é a infinita queda no nada, onde se lhe extirpam o que há de mais sensível: a arte e todo o resto. é preciso, contudo, evitar a morte. a morte da morte. a morte da morte da morte da morte da morte da morte. é preciso evitar esse excesso de morte. não só a morte que nos chega de fora para dentro, mas também aquela de que somos feitos, porque somos feitos de morte. existe uma morte dentro de cada um, mas que é de todos. é uma morte que tem muito pouco a ver com essa morte desencarnada que deixa os restos do corpo (osso, unha e cabelos) na fria decomposição dos cemitérios. é uma morte do mundo, que é feito de pessoas, que são feitas de morte e de vida. mas só se pode querer deixar de morrer, ou não morrer, ou desmorrer, ou morrer menos, quando se sabe o que é a morte, quando se sabe que existe uma morte em todas as coisas. talvez por isso seja necessário colocar a morte na vida, propagar a palavra da morte, dizer cada vez mais a palavra ‘morte’. por isso é que é preciso falar um pouco sobre a morte.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Cambismo – um outro olhar e algumas reflexões


Durante o período da Copa do Mundo, algumas coisas ficam mais em evidência do que outras. Uma delas é a prática do cambismo, ou a cambistagem, que sempre está presente em todos os eventos de grande porte (grandes shows, apresentações circenses ou teatrais, torneios esportivos, etc.). O cambismo nada mais é do que o ato de comprar ingresso antecipadamente e revende-los a preços mais altos que os da bilheteria, porque lá, provavelmente, os mesmos já estão esgotados e/ou indisponíveis. Essa venda é geralmente realizada no dia do próprio evento.

Ainda que eu devesse saber se tal prática é criminosa ou não para elaborar esse texto com mais propriedade, confesso que não o sei. O que sei, contudo, é que há muita gente no Facebook se manifestando com veemência contra a cambistagem (e muitos alegam mesmo tratar-se de um crime). Muita gente indignada, revoltada, achando que é um absurdo alguém no mundo apresentar esse tipo de comportamento. Pois bem.

A maioria de nós, desde que nasceu, é bombardeada pelos ideais de mercado, a famigerada lógica capitalista. Segundo essa lógica, é preciso ser um vencedor na vida: é preciso se esforçar, ser sempre o melhor, trabalhar duro, consumir muito, eventualmente abrir o seu próprio negócio e investir o seu dinheiro.

Esta orientação de mercado é o que nos move, durante o curso das nossas vidas, a querer fazer um bom negócio (e não é à toa que 'bom negócio' é um nome que pega).

Dentre as possibilidades de se 'fazer um bom negócio', é possível citar alguns exemplos: abrir uma padaria, investir em ações, comprar imóveis.

Vamos falar de cada um deles, então. Abrir uma padaria: provavelmente, o local escolhido será longe de outras padarias, e terá que ter uma razoável clientela. Terá que manter boas relações com seus fornecedores e clientes. Mas, na verdade, tudo isso é secundário. O importante mesmo, para qualquer empresa, é gerar lucro, ou seja, fazer com que o investimento valha a pena. Para quem estudou um pouco de finanças na vida, é garantir que o Valor Presente Líquido seja maior do que zero, considerando todas as entradas e saídas de capital; em outras palavras, ganhar mais do que se gastou.

Investir em ações não é para qualquer um. O mercado é arriscado, e os riscos de perda são grandes. No entanto, existem algumas estratégias: investir em fundos de investimentos já consolidados e de boa reputação, investir em ações que são boas pagadoras de dividendos e, ainda, a estratégia perseguida por muita gente que é a de comprar na baixa para revender na alta. Em todas essas estratégias de investimento no mercado de capitais (e nas zilhões de outras estratégias possíveis), o objetivo é o mesmo: ganhar mais do que se gastou.

A compra de imóveis é o investimento dos sonhos dos nossos pais. O dinheiro vira uma casa em que você pode morar. Havendo mais dinheiro, compram-se outras casas, para alugar a terceiros. Os aluguéis funcionam como os dividendos das ações. Paga-se o usufruto àquele que detém o bem. Obter rendas através de aluguéis era a forma mais comum de investir em imóveis. No entanto, especialmente de uns cinco anos para cá, em que o valor dos imóveis cresceu assombrosamente em todo o país,  a lógica especulativa invadiu o mercado imobiliário, e se propagaram por aí os classificados de imóveis oferecendo um "excelente investimento". "Compra agora porque vai valorizar." "Tô vendendo o meu para comprar outro e ter um retorno." Essa é a lógica de comprar na baixa para vender na alta. Em outras palavras, novamente, ganhar mais do que se gastou.

Essas são práticas legais (no sentido de 'bacana' e também 'de acordo com a lei'), feitas por gente de bem, honesta, trabalhadora, que paga seus impostos em dia. Mas o cambismo, que, em última instância, é comprar na baixa e revender na alta seguindo a mesma lógica do 'ganhar mais do que se gastou', o cambismo não. Esses cambistas são, sim, são uns sem-vergonha, aproveitadores, oportunistas; são um bando de filhos-da-puta, isso sim.

Sempre existe uma diferença de vocabulário para separar o 'nós' dos 'eles' quando se trata de uma mesma coisa, e nesse caso não seria diferente: nós enxergamos a 'oportunidade'. Eles exercem o 'oportunismo'. É a mesma coisa. Mesmíssima. Nós temos transtorno mental, eles são malucos. Nós somos cleptomaníacos, eles roubam. Nós apenas ajustamos a declaração do Imposto de Renda, eles sonegam.

Existe, contudo, uma diferença relevante entre os três exemplos apresentados e a prática do cambismo: a legalidade. Acabo de conferir no Google e confirmar: o cambismo é mesmo ilegal! Mas como podem ser ilegais coisas sob a mesma lógica de funcionamento que é, basicamente, 'ganhar mais do que gastou'? Ora, o Brasil é mestre nesse tipo de artimanha jurídica, ou seja, fazemos isso o tempo inteiro. Qual a diferença entre o cara que bebe cerveja, o que bebe cachaça, o que fuma maconha e o que curte ecstasy? Essencialmente, nenhuma. Todos eles são movidos pela mesma lógica de 'se drogar'. Todos estão ali em busca de algum nível de alteração da consciência. Mas uns são permitidos, outros não.

Mais ou menos como nos casos das drogas, a legalidade é nada mais do que uma construção social. E que se retroalimenta. E não dá para dizer aonde o ciclo começa. A maconha é ilegal. Não paga imposto. Para que seja consumida, precisa ser através do tráfico. O tráfico de drogas gera violência. Se gera violência, então precisa ser ilegal. [etc...] A única forma de frear esse ciclo é legalizar as drogas. Mas, enfim, esse é um assunto secundário nesse momento.

Utilizei-o apenas para demonstrar que com o cambismo ocorre uma coisa semelhante. Quanto mais marginalizada ela vai se tornando, mais aparecerão motivos para que essa se perpetue como uma prática ilegal.

Mas voltando à diferença entre 'oportunidade' e 'oportunismo', é importante tentarmos entender porque especular com imóveis é socialmente aceitável e especular com ingressos de jogos não é. Existe 'oportunidade' em abrir uma loja de guarda-chuvas em um local de alta pluviosidade, e existe 'oportunismo' quando o camelô aumenta o preço do guarda-chuva de 10 reais para 15 reais quando começa a chover. Podemos tentar pensar novamente em cada um dos três exemplos já citados anteriormente: o que é preciso para abrir uma padaria? Em primeiro lugar, um capital inicial, que podemos supor da ordem de 200 mil reais, por hipótese. Em segundo lugar, crédito, Para ter acesso a crédito, é preciso que você tenha fiador, avalista, comprovante de residência e imóveis no seu nome, carro como garantia, e comprovante de renda mínima. Para investir em ações, é preciso acesso ao mercado de capitais, que está longe de ser democrático hoje em dia. É preciso também de um comprovante de renda, um computador com acesso á internet para as transações, uma conta bancária e, especialmente, know-how. Para investir em imóveis, é preciso ter know-how do mercado imobiliário, eventualmente um despachante, e muito capital inicial (tanto para viver de renda quanto para revendê-los a posteriori). Supondo um cenário menor de investimentos, ou seja, alguém que queira investir em imóveis de até 1 quarto, numa cidade de porte médio, podemos estimar o capital inicial mínimo em 500 mil reais.

E para 'investir' em ingressos, o que é preciso? Supondo um jogo no valor de 100 reais, o cambista médio que dispõe de 5 ingressos, precisou de um capital inicial de 500 reais Se falarmos de 'grandes cambistas', o cara que (uau!) dispõe de 20 ingressos para revender, necessita de um capital inicial de 2000 reais. E mais o quê? Mais nada! Esse cara não precisa de crédito, não precisa de avalista, fiador, comprovante de residência, nada. Ele precisa basicamente de 500 reais. E de uma outra coisa que é também muito importante: ACORDAR CEDO.

Esse último é também um fator importante para entendermos o problema. Vê-se por aí muita gente propalar a meritocracia como o suprassumo do capitalismo. Gente que acredita que as cotas não são necessárias porque se todo mundo se esforçar, todo mundo é capaz de passar no vestibular. Gente que acredita que se você trabalhar duro e com afinco, um dia você poderá ser dono da sua própria multinacional. Gente que acredita que o mundo é de quem nasceu para conquistá-lo e de que, para isso, é preciso apenas de força de vontade, porque afinal de contas, o sol nasce para todos.

Pois, ora, assim é a venda de ingressos. A bilheteria (ou o site, enfim), disponibiliza os ingressos para TODAS AS PESSOAS na mesma hora. Todas as pessoas têm acesso. Basta querer, e acordar cedo. É meritocrático. Se você acordasse cedo, ora, também poderia ter o seu ingresso. Aliás, ingresso para dar e vender!

Mas, ah, é que eu não tenho tempo para poder acompanhar a abertura da bilheteria. Eu trabalho, tenho duas reuniões por dia e uma filha para criar. Bom, aí já é um problema seu! Não vamos organizar melhor a venda de ingressos apenas porque você não quer levantar o seu rabo da cadeira para comprar ingresso na hora em que ele começa a ser vendido. Todo mundo dá o seu jeito. Não tem que ter ingresso para vagabundo que não quer acordar cedo! Pegar na enxada que é bom ninguém quer!

Da mesma forma que as vagas de vestibular, os ingressos estão disponíveis para todos, mas não são para todos. Vencem aqueles que melhor se esforçarem, os mais rápidos. Os outros sobram. Aí fica para uma próxima vez.

Só que o cara que utilizou a oportunidade de comprar o ingresso mais cedo (oportunidade que, ressalte-se, estava lá para todos) vai revender o ingresso ao cidadão de bem que pre-ci-sa assistir ao jogo. Ele irá revende-lo com algum ágio, ágio que o supracitado cidadão de bem é capaz de pagar; caso contrário, o negócio não seria fechado. (nas vagas de vestibular não; os que sobram, sobram mesmo. não têm como negociar a vaga, não podem alegar que acordaram um pouco mais tarde para o trem da vida)

A cultura da oportunidade e a especulação em todas as suas formas são o esteio do sistema capitalista. Todo mundo quer fazer um bom negócio. A maior parte das pessoas não tem como abrir uma padaria, investir em ações ou em imóveis. Mas estão todos, ricos e pobres, ávidos para transformar dinheiro em mais dinheiro. O cambismo é apenas uma das poucas formas que os mais pobres encontram para fazer isso (assim como se envolver com o tráfico de drogas ou revender tupperware). Sim, vou usar a palavra, o cambismo é uma forma de investimento mais DEMOCRÁTICA.

Talvez por isso o cambismo seja criminalizado: é foda ver gente pobre com poder de barganha!



Obs: Esse é um texto que tenta entender e contextualizar socialmente a prática do cambismo, e extrair daí algumas reflexões. Se você acha que estou defendendo a prática do cambismo, você não entendeu nada.

Obs 2: Ao escrever esse texto, acabei encontrando um breve texto jurídico (em linguagem acessível), que aborda a questão de um ponto de vista muito parecido com este, enveredando por uma abordagem que trata da criminalização da pobreza. O link da postagem está aqui.

sábado, 19 de abril de 2014

Como elaborar um curso de graduação em ciências humanas


1) Escolha termos amplos e genéricos, p. ex: História, Arte, Ciência, Filosofia.

2) Misture os termos entre si, dois a dois (e às vezes, até três a três) de forma aleatória: História da Filosofia; Filosofia da Ciência; Ciência da Arte; Filosofia da História da Arte;

3) Adicione marcadores temporais, como Medieval, Moderno, Contemporâneo; ou locais: Africano, Asiático, Russo, Brasileiro. O resultado será algo como: Filosofia da Ciência Brasileira; História da Arte Russa; História da Ciência Moderna Ocidental;

4) Coloque números, em geral, ordenados de 1 a 4, mas números grandes e fora de propósito como 11, 12 e 13, podem ser interessantes também. Números romanos dão um charme a mais. Teremos coisas como: História da Filosofia Contemporânea no Brasil IV, Arte Russa III, Filosofia da Ciência Sul-Americana I, etc...

5) Agrupe todos os termos gerados, sete a sete, em oito semestres, de forma mais ou menos aleatória. A única restrição é atentar para a ordem dos numerais: quando utilizar o mesmo termo com variações nos números, é conveniente, embora não obrigatório, colocar as disciplinas I antes das que são II, e assim por diante.

6) Voilà!

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Encontros, desencontros e neuroses


Tenho uma certa admiração pelas pessoas cuja totalidade dos relacionamentos são formados por pessoas de círculos pessoais previsíveis: escola, trabalho, família, faculdade. Minha vida nunca foi assim. Naturalmente, conheci muita gente bacana e formei alguns amigos nesses lugares. Mas uma parte significativa das pessoas com as quais eu me relaciono ou já me relacionei são oriundas de encontros fortuitos: gente que eu conheci no Carnaval, na night, em rodas literárias. E essas pessoas trazem também os seus amigos ao meu convívio, o que amplia ainda mais as possibilidades de conhecer pessoas novas e legais. Quando percebo, voilà, fiz amizades a partir do nada.

Esse breve preâmbulo é só para externalizar a importância que eu dou aos encontros. Acredito que os encontros são, sim, obra de um mero acaso (como quase tudo nessa vida). Mas somos nós que decidimos o que fazer com esse acaso. (um pouco mais sobre os encontros, e sobre um deles que foi especialmente importante para mim, pode ser visto aqui).

Pois bem, vamos à história. Hoje, ao sair do trabalho após uma liberação antecipada em virtude do feriado da semana santa, decidi aproveitar um pouco desse tempo. Fiz uma massagem ayurvédica, viadagem com a qual muito raramente me presenteio, e depois decidi tomar um café.

Escolhi o Moinho Café, em Botafogo. Este café foi escolhido porque era especialmente perto, e e especialmente acolhedor. No primeiro quarteirão da Rua São Clemente, um letreiro com giz em frente a uma pequena porta de vidro estreita esconde um café de alma europeia: calmo, sóbrio, silencioso, com nível adequado de iluminação e música agradável em volume baixo. Somando-se isso tudo ao bom serviço e à cortesia dos atendentes, tem-se a impressão de que se paga um preço justo por qualquer coisa que se consuma por lá.

Sentei em uma mesa grande, sozinho, e fiz o pedido: um cappuccino e um augusto bolo de tâmaras.

Ao meu lado, estava sentado um casal que parecia não ter chegado muito antes de mim. Ela, branca, alta, os cabelos encaracolados tingidos de um vermelho intenso. Usava calça jeans com lavagem clara e uma camisa branca estampada, dessas que ficam razoavelmente folgadas na parte de baixo logo após o busto. Era bonita e jovem. Estimo 24 anos, mas aceitaria uma idade entre 20 e 27. Ele, baixo, ligeiramente nerd mas não muito, camiseta preta que parecia ser de alguma banda de rock mas não era; enfim, ele, personagem menos importante da história, ali apenas como contraponto à moça, para que ela tivesse com quem dialogar e o enredo pudesse vir à tona. Não eram casados; pareciam, antes, um casal de amigos de há muito.

Falavam sobre escrita. Ela morria de medo de ser rejeitada. Achava que todos os seus textos eram muito ruins. Ele argumentava que não, que ela escrevia muito bem, que era muito talentosa. Ela contra-argumentava dizendo que só os seus amigos (esse rapaz e mais um outro) haviam lido os textos dela, e que eles só achavam os textos bons por causa da amizade.

Pude notar rapidamente que ela tinha a autoestima muito baixa. Era muito pouco autoconfiante. Achava que não seria publicada e que, se fosse, não seria lida. E repetia a todo momento que seus textos eram muito ruins.

"Por que você os acha tão ruins?"
"Eu sei que são ruins."
"Mas qual o motivo que você tem para achar que seus textos são ruins."
"Eu apenas sei. É como perguntar para alguém que não gosta de camarão porque essa pessoa não gosta de camarão. Não existe uma razão, ela apenas sabe."
"Você tem uma falta de autoconiança muito destruidora."
"Pode ser. Na verdade, eu acho que eu escrevo como o Verissimo. São coisas curtas, mas eu acho que eu estou reinventando a roda, escrevendo o que já foi escrito."
"E daí? Nada se cria, tudo se copia. Você acha tudo que você escreve é ruim?"
"Acho que sim, a maior parte."
"Acho que falta para você uma prática do fazer. Você não se dedica a escrever. Você começa a escrever, acha ruim e pára. Só quando você começar a escrever mais, você vai se dar conta de que tem muita coisa boa e de que você vai melhorando aos poucos. Está faltando prática."
"Nem te falei, mas sobre isso aí, teve uma sessão de análise em que o meu analista perguntou assim: 'Se você se considera assim tão desprezível, porque valoriza tanto a própria opinião?'"
"É, eu acho que ele tem alguma razão, sim. 
"Cara, eu vou levar essa nossa conversa pro meu analista hoje."

Esse era o teor da conversa, com pequenas adaptações porque a memória não é de ferro. Mas além do teor da conversa, havia uma outra coisa relevante: a forma da conversa. Eles conversavam alternando entre o inglês e o português. E trocavam de idioma no meio da frase, às vezes. Achei aquilo simplesmente magnífico. Tão magnífico que eu até inventei uma memória de já ter esbarrado com eles uma outra vez (e pode até ter mesmo acontecido).

A minha vontade foi a de desempenhar o papel do estranho que se propõe a ser amigo: dizer que ela deveria, sim, continuar escrevendo; dizer que a escrita requer prática, e que ela não deve se exigir tanto; confortá-la, de alguma forma.

Meu ímpeto foi o de me chegar à mesa dos dois, pedir licença, dizer que ouvi a conversa deles durante todo esse tempo e me oferecer voluntariamente para ler os textos dela; dar a ela o meu e-mail e dizer-lhe para que me escrevesse e que eu tinha, sim, interesse; que se ela queria uma leitura anônima, isenta, de alguém que não a conhecesse, isso era exatamente o que eu tinha a oferecer; que ela poderia frequentar o Clube da Leitura junto comigo e que isso poderia dar a ela a real noção do quão boa ou ruim ela era em termos de escrita.

A partir daí, imagino que ela agradeceria e anotaria o meu e-mail. Talvez me enviasse alguns dos seus textos, talvez não. Certamente, na noite de hoje, ela teria uma sessão de análise com mais elementos para discussão. A longo prazo, pode ser que nos tornássemos grandes amigos, ou que eu me tornasse amigo do irmão dela; pode ser que eu fosse o padrinho do seu casamento daqui a oito anos, com o mesmo rapaz que a ouvia pacientemente ali, naquela hora.

Pedimos a conta simultaneamente. O garçom trouxe a máquina de cartão para ambas as mesas. Pagamos. Levantamo-nos juntos, os três. Chegamos à porta. Saí, primeiro. Imagino que eles tenham vindo logo após, mas não conferi. Muita coisa poderia ter sido após esse encontro, mas como não houve encontro, nada foi.

Travei absolutamente. Na verdade, ensaiei minha abordagem ao casal durante quase todo o tempo em que estive no café. O bolo e o cappuccino foram consumidos, inclusive, com certa ansiedade. Mas fui embora, travestido de anônimo dos ouvidos moucos.

Alguns motivos pesaram para que o desencontro não se transformasse num encontro. A leitura recém-completa de Dias Perfeitos, do amigo Raphael Montes, me deu um certo medo de entrar em contato com anônimos. A personagem principal do livro, Clarice, acaba por se envolver em uma série de enrascadas após dar trela a um desconhecido em um churrasco, que acaba por se revelar um psicopata de marca maior.

Outro motivo, mais concreto, é de que eu não estou com tanta disponibilidade interna, a ponto de abrir espaço na minha vida para uma desconhecida que, de antemão, sei que é neurótica à beça e tem sérios problemas de autoestima.

Mas o terceiro motivo, o mais concreto de todos, é que realmente foi a pá de cal para que eu desistisse de vez de estabelecer qualquer contato. Permiti-me fazer a mim mesmo a seguinte pergunta: "Ora, e se os textos dela fossem realmete ruins?" Era uma possibilidade. Haveria, mesmo, uma possibilidade de que os amigos só estivessem ali para confortá-la e que ela, de fato, fosse uma péssima escritora.

Agora imaginem a situação. Chego para ela e me ofereço como leitor voluntário; constato que os textos são uma merda. Eu a confortaria com mentiras, fazendo coro com a desonestidade do restante dos seus amigos? Ou eu diria a verdade na cara dela? "Olha, de fato, seus textos são mesmo muito ruins. Você já pensou em trabalhar como cantora? De repente, você poderia fazer arquitetura, administração, veterinária, sei lá, vender artesanato na praia; mas como escritora, acho mesmo que você não tem nem técnica nem talento." Nesse caso, a menina que já é problemática poderia ter o destino da sua saúde psíquica alterada por mim, o anônimo. E se ela entrasse em uma crise de depressão profunda? E se ela se matasse? A culpa seria minha, afinal, por ter entrado na vida dela de forma tão pouco clara e tão pouco cuidadosa com seus sentimentos?

A verdade é que fui criando tantos senões, tantas possibilidades nessa rede de tramas confusas a respeito do futuro, que não consegui fazer o que sempre fiz: permitir-me aos encontros. Isso reflete em mim, evidentemente, uma certa maturidade e uma busca de maior solidez nas relações. Isso tudo se mistura a um certo grau de aversão ao risco que começa a surgir, agora que cheguei nos 27 e os vinte-e-poucos vão ficando para trás.

Esse discurso etário e de aversão ao risco, se vocês sacaram, é um disfarce, um eufemismo para dizer que o tamanho da neurose só aumenta com o tempo. Fiquei algumas linhas julgando aqui a menina, coitada, mas a verdade é que não sei dizer se, de fato, sou menos neurótico do que ela.

Torço pela moça, no final das contas. Torço para que se permita, para que escreva mais, para que empenhe mais esforços em resolver as suas questões internas. A conversa dela, completamente alheia às possibilidades do entreouvido, abre caminhos a outras sessões de análise, conversas de bar, julgamentos e identificações. E também a uma crônica, quem diria, mais ou menos como as do Verissimo.



[esse texto foi escrito no dia 17 de abril; a postagem foi feita no dia seguinte, sexta-feira santa, por razões de conveniência ao autor]

segunda-feira, 31 de março de 2014

Do nascimento


- Quando nasci, um anjo esbelto disse: vai, Igor
- ... ser gauche na vida.
- Não, ele não disse isso, não. Isso quem disse foi o anjo do Drummond.
- Ué, o que ele disse então?
- Só disse isso: "vai, Igor"
- Só? Ele não te mandou ser bom, não disse "desce e arrasa", não disse que você deveria carregar bandeira, nada disso?
- Não. Ele só disse "vai, Igor". E dizendo isso, me deu dois tapinhas nas costas, um pontapé, e, sem mais delongas, me expulsou do céu.


[estou lírico. acho que é o meu aniversário de 27 anos que se aproxima. :) ]

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Vergonha Alheia



A contemporaneidade nos presenteia o tempo inteiro com coisas, conceitos e sentimentos novos. É sabido que a cada geração ficamos mais egoístas (mais egóicos mesmo), mais nos achando o último trakinas do pacote, mais superficiais, mais rápidos. Sim, o tempo passa e é evidente que as pessoas, individualmente, e em grupo, vão mudando.

E uma dessas coisas que tem surgido recentemente, e que a cada vez ganha contornos maiores, é isso a que chamamos vergonha alheia.

A vergonha é um sentimento que acompanha a humanidade há muito tempo. A vergonha da própria genitália, que é uma das primeiras vergonhas conhecidas pelo homem, alastrou-se e cresceu muito nas sociedades cristãs. Dessa vergonha primeva, vieram o pudor e o recato, o excesso de roupas, a moral, os ritos da côrte, e uma série de outras coisas (naturalmente, não com uma causalidade tão direta quanto coloco aqui; há muitos outros fatores além da vergonha que contribuíram para essas estruturas). Não dá nem para dizer que esse é um sentimento ruim, já que é algo que nos acompanha há tanto tempo, e está intrinsecamente arraigado a cada um de nós.

No entanto, existe uma mudança rápida em curso, que altera a forma como lidamos com esse sentimento. Sempre sentimos vergonha de nós mesmos: por termos feito ou falado bobagem, por estar com uma roupa inadequada, por ter uma voz esganiçada, enfim, por estar fora dos padrões de alguma forma.

Mas chegou a vez da vergonha alheia. Isto significa que eu sinto vergonha de algo que não diz respeito a mim. Tenho vergonha pelo que os outros estão fazendo. A roupa do outro é que está inadequada, o penteado do outro é que está feio, é o outro que está fora dos padrões, e isso passa a me dizer respeito de alguma forma.

Esse é um sentimento extremamente nocivo e perigoso. Em primeiro lugar, porque ele não existe. Ninguém sente, de fato, vergonha por uma outra pessoa. O que as pessoas fazem, o tempo todo, é julgar as outras pessoas, e transformar, apenas no discurso, seus próprios conceitos e preconceitos em “vergonha alheia”. Trata-se, em última instância, de um grande eufemismo.

A vergonha alheia parece mostrar também que, por mais modernidade que tenhamos, somos essencialmente os mesmos nos últimos dois mil anos: seres que julgam o tempo inteiro, e que se preocupam demais com a vida dos outros. A revolução francesa, a cubana, a chinesa, a feminista, a digital: nada disso foi capaz de mudar a grande força moral que paira sobre a humanidade; é como se o homem não tivesse conseguido se libertar.

Ainda temos medo do ridículo, e por isso nossas próprias vergonhas; ainda somos preconceituosos, por isso a vergonha alheia.

Eu me sinto esquisito todos os dias (todos os dias!) quando vejo pessoas que dizem ter vergonha alheia por causa da Miley Cyrus dançando Wrecking Ball, por causa do rolezeiro que quer colocar aparelho colorido nos dentes, por causa daquele menino que é super afetado e fala com trejeitos femininos.

Juro que não consigo mesmo entender essa necessidade de julgar os outros. A cada dia, tenho mais certeza (se é que se pode tê-las nessa vida) de que devemos deixar as pessoas livres para ser o que elas quiserem, para fazerem o que elas quiserem, da forma delas, do jeito delas, com as roupas e os cabelos delas. SET THEM FREE!

Se eu posso pedir uma coisa, o pedido é: POR FAVOR, PAREM. Em vez de olhar o tempo todo para os outros, talvez seja a hora de olharmos um pouco mais para nós mesmos, na ideia de recuperar aquela vergonha antiga (a própria), e poder sacar o quanto somos ridículos fazendo essas coisas. E se julgar, e se questionar, e se propor a melhorar. De si para si. E os outros, ah, os outros que entendam e questionem a si mesmos.


Aos que tentarem a mudança, vocês verão o quanto é libertador saber que a única vida com a qual você precisa se preocupar é a sua!

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Azul é a cor mais quente – Crítica



Como toda crítica que se preze, esta também funciona como o prefácio de um livro: é melhor que se leia após a deglutição da arte.

Quando começaram a subir os créditos, achei que o filme deveria se chamar apenas “Adèle”. Foi com algum espanto que percebi que o nome original do filme é “La vie d’Adèle”, e que nos venderam em terras tupiniquins como “Azul é a cor mais quente”. Achei uma péssima escolha de nome, naquela hora. Porém, ao chegar em casa e pensar com mais calma, acho que foi uma escolha acertada.

Estou com “Azul é a cor mais quente” até agora remoendo na minha cabeça. Vi esse filme há mais de vinte e quatro horas: já fui a uma festa, já trabalhei, já dormi, e o filme não para de ganhar complexidade, a cada vez que me lembro. Por isso, portanto, a necessidade de escrever sobre ele.

O filme conta a história de uma menina chamada Adèle, de 15 anos, que vive uma experiência homossexual com uma mulher mais velha, que está do meio para o final de um curso de Belas Artes, chamada Emma. Há cenas tórridas de sexo entre elas, e imagino que a maior parte das críticas não tenha conseguido sair muito dessa discussão.

Não vou dizer que a cena de sexo entre as duas protagonistas é um detalhe, porque não é. Mas está longe de ser o ápice do filme, como se tem querido apontar. Aliás, é quase um crime querer apontar alguma cena ou algum momento que possa ser definido como o ápice do filme.

“Azul é a cor mais quente” é um filme que dura três horas, e que não tem uma cena sequer de excesso. Aém disso, o roteiro do filme segue uma estrutura de tempo escrutinadamente linear.

Ora, como pode, portanto, um filme longo, linear, e sem clímax definido ser um filme bom? Pois, então: o somatório desses elementos, que tem de tudo para ser algo extremamente chato, é transformado em algo simplesmente maravilhoso pelo diretor Abdellatif Kechiche.

Aponto dez elementos que contribuem, na minha opinião, para tornar este filme uma obra-prima:

  1. a beleza das atrizes; inegavelmente, a protagonista Adéle (Adèle Exarchopoulos) e seu par, Léa Sydoux, são lindas, com destaque para a primeira.

  2. a capacidade de contar uma boa história; o roteiro é simples: a vida e os conflitos de uma jovem, dos seus 15 aos seus 22 (acredito que seja esta a idade final da personagem), mas contada de uma forma que não nos faz querer desgrudar da tela; isso tem um pouco a ver com próximo item.

  3. o efeito Big Brother; Adèle vai se tornando alguém que a gente conhece de forma íntima. A personagem, que é muito tímida no início, vai tendo sua personalidade desvelada de forma simultânea para os espectadores e para os personagens. Esse processo é extremamente bem construído.

  4. a leveza na passagem do tempo; o tempo corre durante uns sete anos, mais ou menos, na vida de Adèle. E isso é feito sem cortes bruscos de temporalidade. A escola aparece, depois começa a aparecer o trabalho. Os personagens vão entrando e saindo da vida da protagonista, de forma muito rápida, mas também muito natural. Esse processo de mudança dos círculos de amigos é muito comum na vida das pessoas, em especial das mais jovens, o que tem a ver com o próximo item.

  5. a verossimilhança; os eventos no filme são extremamente verossímeis. Exceto algumas vezes, em que acontece algum evento maior (conhecer uma pessoa diferente, conseguir um emprego), a maior parte da vida acontece com alguns acontecimentos cotidianos, mas sem grandes sobressaltos. Na maior parte dos filmes, sempre tem muita coisa acontecendo. Esse é um filme que sustenta bem as três horas de duração, sem o excesso e a condensação de grandes eventos amotinados uns sobre os outros, mas com o ritmo de acontecimento dos eventos narrativos suficientes para manter uma história interessante;

  6. o hiperrealismo e a ausência de uma cinematografia fácil; muitos filmes são verossímeis, mas poucos são tão hiperrealistas como “Azul é a cor mais quente”. Acho que consigo explicar esse tópico através de exemplos. Há uma cena em que Adèle fica confusa com sua sexualidade e vai chorar no quarto. Em um filme de cinematografia fácil, rapidamente entraria alguém no quarto perguntando “O que houve?”, ao que a menina responderia “Não, não é nada.” Ou então, contaria o que estava acontecendo. Nesse filme, como muito provavelmente aconteceria na vida real, a menina fica no quarto sozinha no quarto remoendo suas mágoas, e não vem ninguém sequer procurar por ela ou saber se está tudo bem. Em uma outra cena, mais para o final do filme, quando as duas protagonistas terminam o romance, Emma é extremamente agressiva com Adèle e a chama de puta para baixo, expulsando-a de casa. Em uma cena três anos depois, as duas conseguem ter uma conversa em que são cordiais, (Emma está até levemente doce), mas não reatam o relacionamento. Um filme de cinematografia fácil não resistiria a um happy end ou a um revival, ou, por outro lado, teria feito uma cena carregada no rancor e na raiva, o que embora funcionasse como elemento estético e narrativo, estaria distante da realidade. O grau de rancor, de raiva e de melancolia conrresponde de forma exata aos três anos de separação das protagonistas, e exageros para um lado ou para o outro, poderiam dotar o filme de mais ação e mais ‘clima’, mas haveria uma perda grande de realismo.

  7. a estética; a fotografia do filme é linda. E a luz levemente estourada nas cenas ao ar livre, em oposição à nitidez das cenas de sexo, faz com que o filme seja um deslumbre visual. É um filme magistralmente belo.

  8. a naturalidade das cenas de sexo; sexo é bom, todo mundo faz, mas isso não costuma ser mostrado na tela. O diretor, em sua opção pelo realismo, mostra o sexo de forma natural (ok, ainda que exagerada na estética para ser mais bonito do que realmente é) acontecendo várias vezes (como acontece com a maior parte dos jovens). O grande mérito, na minha opinião, além de mostrar as cenas de sexo em si, é colocar na tela o lugar que a nudez e o sexo realmente devem ocupar, que é o da naturalidade.

  9. a repetição não-repetida; muitos podem discordar neste ponto, mas apesar de haver algumas cenas que se repetem, trata-se de uma repetição não-repetida, que contribui para dar fluidez à história. Por exemplo, há dois jantares de família, uma com os pais de cada uma delas. Poderia ter havido apenas um deles, mas a oposição entre os estilos de jantares e a posição de cada uma frente aos seus pais e aos pais da outra é relevante para entender como elas estruturaram sua personalidade. Esse é um caso em que o possível excesso não fica tão evidente. Mas há um conjunto de cenas, perto do fim, em que se mostram pelo menos quatro vezes o trabalho de Adèle com as crianças do jardim de infância. Em duas delas, ela está fazendo ditado com as crianas, em outra ela está na praia em uma espécie de colônia de férias, em outra ela está colocando as crianças para dormir no berçário. Precisa de tantas cenas assim? Na minha opinião, sim. As cenas do trabalho de Adèle servem para mostrar o quanto essa atividade ocupa o seu tempo real e o seu tempo simbólico de forma cada vez mais marcante, à medida que o filme avança. Essa proporcionalidade entre o tempo dado aos espectadores sobre um assunto e o tempo (real e simbólico) desse mesmo assunto na vida de Adèle é muito interessante. Isso não parece ser fácil de manejar, em especial se considerarmos o esforço para que sejam criadas estas repetições não-repetidas.

  10. o pragmatismo e a decadência dos sonhos; é lindo trabalhar com arte: poético, romântico. No filme, Emma sofre muito para conseguir expor, e ter sucesso, apesar de seu talento. Adèle ignora convites para ser escritora (e escolhe ser professora primária), tem dificuldades para opinar e se posicionar em um discurso chatíssimo sobre a arte, diz que vai a Nova Iorque e acaba não indo. Um dos personagens desiste de ser ator e vai para o ramo imobiliário. Muitos diretores (muitos mesmo) teriam optado pela glamourização da arte (até porque vivem este mundo) e teriam transformado Adèle em uma escritora de sucesso em Nova Iorque. Mas como esse é um filme ‘que nem parece filme’ e o diretor é suficientemente corajoso, o misticismo em torno da arte e dos sonhos da juventude vai se desvanecendo entre projetos não-concluídos e o pragmatismo da vida cotidiana.

  11. o título; esse décimo primeiro item vai de lambuja, porque o título em português, acredito, não foi uma escolha do diretor. Mas quando afirmo que os tradutores fizeram uma boa escolha, estou pensando que o azul da cor do cabelo de Emma mantém o filme mais ‘quente’. Tão logo ela pinta o cabelo de loiro, assume uma identidade mais madura. Esse amadurecimento pode simultaneamente ser visto em Adèle. A partir desse momento, o relacionamento das duas começa a degringolar, e o filme começa a caminhar para o seu final mais maduro, mais melancólico, mais ‘frio’, por assim dizer, em oposição à juventude e à possibilidade de se manter o cabelo pintado de azul, como visto na primeira metade do filme.
Bom, por esses 11 motivos, estou até agora digerindo o filme: seus diálogos, seus sentimentos, suas nuances. Há muito tempo, não me sinto tão tocado por alguma obra artística a ponto de sentir uma necessidade grande de escrevê-la (mais ou menos como fiz aqui). Aliás, há muito tempo que não escrevo, e me sinto um pouco renovado com esse texto aqui. Espero que esse azul também lhes provoque de alguma forma;


Azul é a cor mais inquietante. E a mais maravilhosa!


Feliz 2014 a todos!