Tenho uma certa admiração pelas
pessoas cuja totalidade dos relacionamentos são formados por pessoas de
círculos pessoais previsíveis: escola, trabalho, família, faculdade. Minha vida
nunca foi assim. Naturalmente, conheci muita gente bacana e formei alguns
amigos nesses lugares. Mas uma parte significativa das pessoas com as quais eu
me relaciono ou já me relacionei são oriundas de encontros fortuitos: gente que
eu conheci no Carnaval, na night, em rodas literárias. E essas pessoas trazem
também os seus amigos ao meu convívio, o que amplia ainda mais as
possibilidades de conhecer pessoas novas e legais. Quando percebo, voilà, fiz
amizades a partir do nada.
Esse breve preâmbulo é só para
externalizar a importância que eu dou aos encontros. Acredito que os encontros
são, sim, obra de um mero acaso (como quase tudo nessa vida). Mas somos nós que
decidimos o que fazer com esse acaso. (um pouco mais sobre os encontros, e
sobre um deles que foi especialmente importante para mim, pode ser visto aqui).
Pois bem, vamos à história. Hoje,
ao sair do trabalho após uma liberação antecipada em virtude do feriado da
semana santa, decidi aproveitar um pouco desse tempo. Fiz uma massagem
ayurvédica, viadagem com a qual muito raramente me presenteio, e depois decidi
tomar um café.
Escolhi o Moinho Café, em
Botafogo. Este café foi escolhido porque era especialmente perto, e e
especialmente acolhedor. No primeiro quarteirão da Rua São Clemente, um
letreiro com giz em frente a uma pequena porta de vidro estreita esconde um café
de alma europeia: calmo, sóbrio, silencioso, com nível adequado de iluminação e
música agradável em volume baixo. Somando-se isso tudo ao bom serviço e à
cortesia dos atendentes, tem-se a impressão de que se paga um preço justo por
qualquer coisa que se consuma por lá.
Sentei em uma mesa grande,
sozinho, e fiz o pedido: um cappuccino e um augusto bolo de tâmaras.
Ao meu lado, estava sentado um
casal que parecia não ter chegado muito antes de mim. Ela, branca, alta, os cabelos
encaracolados tingidos de um vermelho intenso. Usava calça jeans com lavagem
clara e uma camisa branca estampada, dessas que ficam razoavelmente folgadas na
parte de baixo logo após o busto. Era bonita e jovem. Estimo 24 anos, mas
aceitaria uma idade entre 20 e 27. Ele, baixo, ligeiramente nerd mas não muito,
camiseta preta que parecia ser de alguma banda de rock mas não era; enfim, ele,
personagem menos importante da história, ali apenas como contraponto à moça,
para que ela tivesse com quem dialogar e o enredo pudesse vir à tona. Não eram
casados; pareciam, antes, um casal de amigos de há muito.
Falavam sobre escrita. Ela morria
de medo de ser rejeitada. Achava que todos os seus textos eram muito ruins. Ele
argumentava que não, que ela escrevia muito bem, que era muito talentosa. Ela
contra-argumentava dizendo que só os seus amigos (esse rapaz e mais um outro)
haviam lido os textos dela, e que eles só achavam os textos bons por causa da
amizade.
Pude notar rapidamente que ela tinha a autoestima muito
baixa. Era muito pouco autoconfiante. Achava que não seria publicada e que, se
fosse, não seria lida. E repetia a todo momento que seus textos eram muito
ruins.
"Por que você os acha tão ruins?"
"Eu sei que são ruins."
"Mas qual o motivo que você tem para
achar que seus textos são ruins."
"Eu apenas sei. É como perguntar
para alguém que não gosta de camarão porque essa pessoa não gosta de camarão.
Não existe uma razão, ela apenas sabe."
"Você tem uma falta de
autoconiança muito destruidora."
"Pode ser. Na verdade, eu acho
que eu escrevo como o Verissimo. São coisas curtas, mas eu acho que eu estou
reinventando a roda, escrevendo o que já foi escrito."
"E daí? Nada se cria, tudo se
copia. Você acha tudo que você escreve é ruim?"
"Acho que sim, a maior parte."
"Acho que falta para você uma
prática do fazer. Você não se dedica a escrever. Você começa a escrever, acha
ruim e pára. Só quando você começar a escrever mais, você vai se dar conta de
que tem muita coisa boa e de que você vai melhorando aos poucos. Está faltando
prática."
"Nem te falei, mas sobre isso aí, teve uma sessão de análise em que o meu analista perguntou assim: 'Se você se considera assim tão desprezível, porque valoriza tanto a própria opinião?'"
"É, eu acho que ele tem alguma razão, sim.
"Cara, eu vou levar essa nossa
conversa pro meu analista hoje."
Esse era o teor da conversa, com
pequenas adaptações porque a memória não é de ferro. Mas além do teor da
conversa, havia uma outra coisa relevante: a forma da conversa. Eles
conversavam alternando entre o inglês e o português. E trocavam de idioma no
meio da frase, às vezes. Achei aquilo simplesmente magnífico. Tão magnífico que
eu até inventei uma memória de já ter esbarrado com eles uma outra vez (e pode
até ter mesmo acontecido).
A minha vontade foi a de
desempenhar o papel do estranho que se propõe a ser amigo: dizer que ela deveria, sim, continuar
escrevendo; dizer que a escrita requer prática, e que ela não deve se exigir
tanto; confortá-la, de alguma forma.
Meu ímpeto foi o de me chegar à
mesa dos dois, pedir licença, dizer que ouvi a conversa deles durante todo esse
tempo e me oferecer voluntariamente para ler os textos dela; dar a ela o meu
e-mail e dizer-lhe para que me escrevesse e que eu tinha, sim, interesse; que
se ela queria uma leitura anônima, isenta, de alguém que não a conhecesse, isso
era exatamente o que eu tinha a oferecer; que ela poderia frequentar o Clube da Leitura junto comigo e que isso poderia dar a ela a real noção do quão boa ou
ruim ela era em termos de escrita.
A partir daí, imagino que ela
agradeceria e anotaria o meu e-mail. Talvez me enviasse alguns dos seus textos,
talvez não. Certamente, na noite de hoje, ela teria uma sessão de análise com
mais elementos para discussão. A longo prazo, pode ser que nos tornássemos
grandes amigos, ou que eu me tornasse amigo do irmão dela; pode ser que eu
fosse o padrinho do seu casamento daqui a oito anos, com o mesmo rapaz que a
ouvia pacientemente ali, naquela hora.
Pedimos a conta simultaneamente.
O garçom trouxe a máquina de cartão para ambas as mesas. Pagamos. Levantamo-nos
juntos, os três. Chegamos à porta. Saí, primeiro. Imagino que eles tenham vindo
logo após, mas não conferi. Muita coisa poderia ter sido após esse encontro,
mas como não houve encontro, nada foi.
Travei absolutamente. Na verdade,
ensaiei minha abordagem ao casal durante quase todo o tempo em que estive no
café. O bolo e o cappuccino foram consumidos, inclusive, com certa ansiedade.
Mas fui embora, travestido de anônimo dos ouvidos moucos.
Alguns motivos pesaram para que o
desencontro não se transformasse num encontro. A leitura recém-completa de Dias Perfeitos, do amigo Raphael Montes, me deu um certo medo de entrar em contato
com anônimos. A personagem principal do livro, Clarice, acaba por se envolver
em uma série de enrascadas após dar trela a um desconhecido em um churrasco,
que acaba por se revelar um psicopata de marca maior.
Outro motivo, mais concreto, é de
que eu não estou com tanta disponibilidade interna, a ponto de abrir espaço na
minha vida para uma desconhecida que, de antemão, sei que é neurótica à beça e
tem sérios problemas de autoestima.
Mas o terceiro motivo, o mais
concreto de todos, é que realmente foi a pá de cal para que eu desistisse de
vez de estabelecer qualquer contato. Permiti-me fazer a mim mesmo a seguinte
pergunta: "Ora, e se os textos dela fossem realmete ruins?" Era uma
possibilidade. Haveria, mesmo, uma possibilidade de que os amigos só estivessem
ali para confortá-la e que ela, de fato, fosse uma péssima escritora.
Agora imaginem a situação. Chego
para ela e me ofereço como leitor voluntário; constato que os textos são uma
merda. Eu a confortaria com mentiras, fazendo coro com a desonestidade do
restante dos seus amigos? Ou eu diria a verdade na cara dela? "Olha, de fato,
seus textos são mesmo muito ruins. Você já pensou em trabalhar como cantora? De
repente, você poderia fazer arquitetura, administração, veterinária, sei lá,
vender artesanato na praia; mas como escritora, acho mesmo que você não tem nem
técnica nem talento." Nesse caso, a menina que já é problemática poderia ter o
destino da sua saúde psíquica alterada por mim, o anônimo. E se ela entrasse em
uma crise de depressão profunda? E se ela se matasse? A culpa seria minha,
afinal, por ter entrado na vida dela de forma tão pouco clara e tão pouco
cuidadosa com seus sentimentos?
A verdade é que fui criando
tantos senões, tantas possibilidades nessa rede de tramas confusas a respeito do futuro,
que não consegui fazer o que sempre fiz: permitir-me aos encontros. Isso
reflete em mim, evidentemente, uma certa maturidade e uma busca de maior
solidez nas relações. Isso tudo se mistura a um certo grau de aversão ao risco
que começa a surgir, agora que cheguei nos 27 e os vinte-e-poucos vão ficando
para trás.
Esse discurso etário e de aversão
ao risco, se vocês sacaram, é um disfarce, um eufemismo para dizer que o
tamanho da neurose só aumenta com o tempo. Fiquei algumas linhas julgando aqui
a menina, coitada, mas a verdade é que não sei dizer se, de fato, sou menos
neurótico do que ela.
Torço pela moça, no final das
contas. Torço para que se permita, para que escreva mais, para que empenhe mais
esforços em resolver as suas questões internas. A conversa dela, completamente
alheia às possibilidades do entreouvido, abre caminhos a outras sessões de análise,
conversas de bar, julgamentos e identificações. E também a uma crônica, quem
diria, mais ou menos como as do Verissimo.
[esse texto foi escrito no dia 17 de abril; a postagem foi feita no dia seguinte, sexta-feira santa, por razões de conveniência ao autor]
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