é preciso falar um pouco sobre a morte. não sobre essa morte
desencarnada que deixa os restos do corpo (osso, unha e cabelos) na fria
decomposição dos cemitérios, mas sobre a morte que se vive todos os dias e que
nos invade de forma intempestiva. existe uma morte muito grande que nos rouba
um pouco de colágeno e de memória todos os dias. esse morrer pouco a pouco é um
misto de falta de viço e castração. é uma pressão por ser-se e construir-se
nalgo que não é capaz de se sustentar: os trabalhos de toda sorte, as contas para
pagar, a vida. é preciso falar um pouco sobre essa morte que é excesso de vida,
sobre essa morte que é excesso de pulsação e falta de pulso. essa morte a cuja
construção nos permitimos todos os dias sem nos questionarmos muito, e lhe
cortamos a arte, a vontade, o deleite e o delito. é preciso falar um pouco
sobre essa morte que é violência silenciosa todos os dias, transporte, dor de
cabeça, café expresso, camisa social. é uma morte que se nos tolhe também o
esporte, a cultura e a crítica. vai ficando só, ao fim dos dias sem fim, uma vida
de pouco azul e de muito chá verde. há quem diga que a morte é o que nos iguala
a todos e contra ela devemos todos ter uma espécie de resignação silenciosa, como
se fosse preciso aceitá-la sem muita indagação. mas a morte são muitas mortes.
há uma parte, e sempre há uma parte em tudo que é inteiro, que precisa ser
aceita. mas há outra parte contra a qual se pode lutar. é preciso matar a morte
que nos mata. é possível e é preciso gritar ‘parem as máquinas’, girar a engrenagem
ao contrário. é preciso não morrer porque é preciso navegar. está mais do que
na hora de falarmos sobre a morte que não desencarna, sobre essa morte regular de
sala de espera, de saguão de aeroporto, de oito horas por dia no escritório,
enquanto as sinapses belíssimas da abstração se vão perdendo nas sendas agudas
do cerebelo. é preciso falar um pouco também sobre a morte que é também
desencarnar, mas já tanto é dito sobre essa morte, que quase não se é concedido
espaço algum para a novidade. e é sobre essa morte que é preciso falar. a morte
da novidade, do encanto, da beleza, é preciso falar sobre muitas mortes. é
preciso falar sobre todas as mortes. a morte dos poços nos quais se cai, a
morte dos livros que são lidos e dos que não o são, a morte dos amores, a morte
do desejos, a mortificada morte da morte. é preciso falar sobre a morte permeada
de bondias, boastardes e boasnoites, que é miséria e comiseração travestida de
formalidade. é preciso falar sobre a morte dos poços em que se cai. quando é
morto o poço onde se cai, há que se pensar que a queda morre no rastro do poço,
mas ela fica nonada. Nonada. a queda sem poço é a infinita queda no nada, onde
se lhe extirpam o que há de mais sensível: a arte e todo o resto. é preciso,
contudo, evitar a morte. a morte da morte. a morte da morte da morte da morte
da morte da morte. é preciso evitar esse excesso de morte. não só a morte que
nos chega de fora para dentro, mas também aquela de que somos feitos, porque
somos feitos de morte. existe uma morte dentro de cada um, mas que é de todos.
é uma morte que tem muito pouco a ver com essa morte desencarnada que deixa os
restos do corpo (osso, unha e cabelos) na fria decomposição dos cemitérios. é
uma morte do mundo, que é feito de pessoas, que são feitas de morte e de vida. mas
só se pode querer deixar de morrer, ou não morrer, ou desmorrer, ou morrer
menos, quando se sabe o que é a morte, quando se sabe que existe uma morte em
todas as coisas. talvez por isso seja necessário colocar a morte na vida, propagar
a palavra da morte, dizer cada vez mais a palavra ‘morte’. por isso é que é preciso
falar um pouco sobre a morte.
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gostei muito
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