quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O meu café


O meu café é mais que líquido. O meu café é momento, é esperança que se descortina a vinte passos, ainda que frágil, retorcida, despedaçada. O meu café é sem açúcar porque a esperança é moída junto com o pó e dói um pouco. Poderia vir de aspartame, mas é que as coisas devem ser como são, sem fantasias ou ilusões, cruas, sem algo que lhes retire ou acrescente.

O meu café não se dobra e não se amua, é pó preto na água quente sem segredos, é acidez controlada, é mau hálito programado, é quase látex o meu café. O meu café é a minha força e é também a minha fraqueza, é lapso de memória o meu café. O meu café não gosta de mim e eu quase não gosto dele, mas é necessário o meu café. O meu café é pretexto, é culpa e é desculpa, o meu café é frustração e é muita frustração, o meu café é sofrimento, é mágoa e desespero, é lágrima retesada o meu café é aquilo que não se mostra, é a minha face mais invisível o meu café sou eu dentro da garrafa térmica, o coração batendo enquanto o tempo não passa, é o que eu sinto e o que eu não quero sentir o meu café é a minha tristeza, a minha fala prolixa, a conversa de elevador, é o meu descaso o meu café é a minha inércia, é a minha preguiça medrosa o meu café é o meu quase nada corriqueiro, é o meu choro e a minha súplica, é a minha raiva comedida, é o meu trabalho o meu café é exatamente isso, exatamente o que eu venho procurando no meio disso tudo o meu café, só o meu café enquanto as coisas não se decidem por mudar ou por permanecer.

O meu café é a minha pausa pra decisão, e enquanto o mundo explode, a única decisão que sou capaz de tomar é sair do meio dos papéis e da mediocridade, nem que seja só por dois minutos, e ir tomar um pouco de café, o meu café.

3 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente fantástico. Se fosse um texto postado há algumas semanas atrás, diria que foi feito para mim. Mas de certo modo, posso dizer, eu derramei o meu café. Troquei de bebida, não sei.
Vai dar certo, independente do gosto, da temperatura, é o seu café. Você saberá dosá-lo bem.

Anônimo disse...

queria ser mais poética assim e menos presa aos diálogos, ao meus textos quase falados, curtos e grossos.
nunca gostei de café, mas acho que to precisando um

B. Pina disse...

Eu também vivo uma relação de amor e de dor com o café... Cabe tanta coisa numa xícara de café né Igor? Café me é pretexto pra tudo, pra bom papo, pra ver as horas passar, pra escrever, dificilmente eu venho pra frente do pc sem um copo de café do lado...e olha, eu posso dizer que antes de morrer meu último pedido poderia certamente ser um último gole.
Essa brincadeira de adjetivar e justificar uma coisa o tempo todo, é muito bacana, vibra, faz o texto pulsar e é bonito de se ler.

Beijo Igor,
cuide-se.