sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Você

Você era loira, na época. Agora já não sei mais porque os cabelos das mulheres mudam a cada mês, a cada dia, e posso encontrar você por aí loira, ruiva, morena, com mechas azuis, pontas verdes, cabelos em cacho, luzes, lisos, presos, soltos, armados, tiaras, laços, fitas, faixas, presilhas, arcos, coloridos, serenos, exaustos, enfastiados, mornos, molhados, suaves, indubitáveis. E não posso fingir surpresa porque os cabelos agora são assim, mutáveis, e oh, seus piercings, tatuagens, body art; somos todos incrivelmente contemporâneos.

Então, um dia, eu encontrei você na rua. E você tinha uns cabelos. Então, justamente, como eu dizia, uns cabelos assim, dos quais não consigo lembrar formacortextura, mas eu vou dizer que não importa porque eu aprendi que a sua essência, o seu você, não está nos seus cabelos, e muito me espantaria se tivesse porque não seria confortável a cada vez imaginar uma parte de mim sendo varrida bimestralmente para os cantos das paredes de umas barbearias por aí, por mais que fosse sempre a mesma, a barbearia. Mas no fim das contas, eu sei e você sabe, sempre importam, sempre importunam essas mudanças visuais bruscas, repentinas.

Então, você tinha uns cabelos. E você tinha um nariz que eu também custei a reconhecer porque você fez umas plásticas aí com uns pretensos pitanguys, e o seu nariz que era adunco, um nariz-de-tucano mas que era bonito, apesar de tudo, mas aí, você fez essas suas plásticas estranhas, e ficou com esse nariz que fica parecendo um retalho, uma coisa que, definitivamente, não é sua. E pra completar, colocou um desses piercings que eu acho horrorosos, esse que vai de uma narina a outra e fica aquele anel prateado pendurado, essa coisa que deixa qualquer ser humano parecendo um búfalo norte-americano ou um touro de rodeio em fúria.

E você tinha uns olhos que bem, por mais que fossem seus, no sentido de ser a sua retina, seus cones e bastonetes, aquelas células pra identificar as cores e os claros e escuros (lembra da nossa oitava série tão escandalizada?), já não era uma coisa muito sua, porque você deve ter comprado aí numa dessas óticas de fundo quintal essas lentes, esses olhos falsos, essa sua íris sempre mais clara, uma coisa meio azul-esverdeada mas tão escrachadamente falsa que eu tenho que falar, você ficou ridícula. Ficaram parecendo olhos de boneca, pregados no seu rosto, assim, de qualquer maneira.

E eu só reconheci você quando te vi lá de longe por causa desse seu jeito de andar tão peculiar, essa sua cifose, esses ombros preponderantes que se jogam sempre à frente. E veio vindo você com os seus passos sempre predispostos descendo aquela ladeira, os braços meio colados ao corpo e corcunda, cada vez mais corcunda. Por alguma excentricidade divina ou por alguma outra coisa que me escapa, você, agora toda endinheiradinha por causa daquele concurso, não alterou a sua postura, através de aparelhos cervicais, ioga, pilates, academia, fisioterapia, acupuntura, caminhada, cama elástica, quiropraxia. Você, andando exatamente como daquela vez, descendo a ladeira lá longe, corcunda que só, com uns peitinhos pequenos que balançavam pra lá e pra cá.

E foi por isso, só por isso que eu te reconheci, lá de longe. E você veio vindo e eu fui te desconhecendo, quase duvidando da sua identidade. E você chegou perto, tão perto de mim, que eu fiquei até meio encabulado. E você abriu um baita sorriso largo que eu não correspondi. Peço até desculpas se eu fui antipático, se eu pareci rude, mas é que eu não consegui mesmo olhar pra você, te encarar e entrever qualquer coisa que já não era, um nariz, uns olhos, uns cabelos. Fiquei ali, olhos fixos, perdido na beleza dos seus ombrinhos tortos.

4 comentários:

raquel medeiros disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

como disse na comunidade, eu queria ter escrito esse primeiro parágrafo.

bem-vindo (de volta) ao mundo dos blogs.

vou vir sempre, e fiquei ansiosa pelo post sobre finlandês. :p

=*

Anônimo disse...

filandes é mto viagem, aposto. deve ser mto engraçado.
na verdade tenho pouca noção de finlandes. como será q se pronuncia, como soa, não sei. alias, não tenho nem idéia. bem, boa sorte com blog novo!
da leitora fiel!
Naty

Anônimo disse...

adoreiiiiiii esse texto.
me senti no mundo da sofia, por alguns momentos.
Da p viajar legal, e se identificar também.
Me senti a pessoa que vc a outra totalmente modificada, mas tbm me senti a modificada.
Adorei.
bjaum!