Antes de começarmos, é importante
deixar claro: esse texto contém spoilers.
Portanto, é só para quem já viu o filme.
Tár é uma obra audiovisual
belíssima: um filme longo, estrelado de forma magistral pela experiente Cate
Blanchett, e que por quase três horas prende o espectador à poltrona sem lançar
mão de pirotecnias e efeitos especiais. O enredo é trivial, e aqueles que
escrevem sinopses podem ter dificuldades em fazer crer que o filme seja
interessante: trata-se da história de vida e de uma aparente crise de
meia-idade de uma maestrina que rege uma das orquestras sinfônicas mais
importantes da Europa. Até aí, nada demais. Mas Tár é uma obra aberta, e, como
tudo aquilo que é bem produzido, possibilita chaves interpretativas que vão
muito além do que parece estar sendo contado.
Dessa maneira, assim que saí do
cinema, a leitura imediata que fiz (e que foi se apurando em conversas com
amigos e amores num barzinho logo depois), é a de que Tár é um filme
geopolítico, e seu principal mote é o declínio e o apocalipse do Ocidente, com
foco no século XX.
O primeiro elemento que nos traz
a essa leitura é a profusão de nacionalidades e de espaços que o filme abrange:
China, floresta amazônica, Nova Iorque e Berlim são habitados e frequentados
por personagens alemães, norte-americanos, palestinos e russos. Isto não só não
é um detalhe, como é um dos principais elementos constitutivos do filme. Isto é
especialmente importante se pensarmos na forma com a qual essas pessoas e esses
lugares se relacionam.
A trama, portanto, faz com que
cada um dos personagens (e também cada um dos lugares mencionados) evoque sua
nacionalidade e atue de modo a performar as lutas geopolíticas que o século XX
engendrou. O que temos então é uma espécie de teatro do mundo, onde cada um
representa um papel cujo significado vai muito além da própria vida.
Lydia Tár é uma maestrina
norte-americana e representa, no filme, os EUA. Ela tem uma origem da qual inicialmente
pouco se sabe, e da qual ela aparenta ter vergonha. Posteriormente, ao final do
filme, vemos que ela vem de uma família pobre, sem posses, tendo inclusive
trocado de nome. Os EUA, assim como Lydia, encobertam o seu passado colonial.
A orquestra é o mundo. Formada
por membros de diferentes países, cada um dos músicos toca um instrumento. O
objetivo é criar uma sinfonia: ou seja, todos os instrumentos devem ser ouvidos
sem que um tome o lugar do outro, e a obra final deve ser coesa e harmônica. A
esta orquestra/mundo coube a regência de Tár/EUA. Cabe notar que apesar dos
inúmeros ensaios, o público não assiste à orquestra quando o filme acaba. A
leitura é a de que a regência dos EUA tentou e tentou, durante todo o século
XX, mas não foi capaz de, a partir de sua batuta, fazer acontecer o grande
“concerto das nações”.
Olga representa a Rússia. Ela
chega à orquestra de maneira inesperada e, de maneira muito rápida, consegue
arregimentar posições em meio aos músicos. Não mais que de repente, ela, em uma
aliança com Tár (que remete à aliança Rússia-EUA na Segunda Guerra Mundial),
consegue se estabelecer como a solista do espetáculo, e se torna a segunda
pessoa mais poderosa da orquestra (como a Rússia, no contexto do século XX).
Logo após essa divisão de poder entre Tár e Olga, a relação se deteriora também
de maneira rápida, e essa aliança deixa de existir. Elas então brigam, mas não
como qualquer briga: elas deixam de se falar. Em dado momento, as duas estão no
mesmo carro, e sequer se encaram, em uma cena que nos remete de maneira muito
imediata à Guerra Fria.
Berlim é o lugar onde tudo
acontece. Espécie de epicentro do mundo ocidental no século XX, é lá que o
“grande concerto das nações” se desenrola. A cidade de Berlim foi murada e
dividida, após ter sido palco de duas grandes guerras na Europa no século XX. É
lá que se dão os conflitos, as alianças, é ali que o tal “mundo ocidental” está
o tempo inteiro em jogo. Não parece ser uma coincidência que Berlim tenha sido
escolhida para ser o cenário do filme. É ali que se dá a aliança e o conflito
entre Tár e Olga, e é lá que a orquestra/mundo deve mostrar o seu funcionamento
coeso e harmônico, do qual só vimos ensaios.
Quem apresenta também esse “desconcerto
do mundo” é a filha adotiva de Tár e Sharon, Petra, que é palestina. Ela
encarna essa tensão entre Israel e Palestina, assumindo ora uma posição, ora
outra. Assumindo o papel israelense, podemos observar que Petra é a única
pessoa por quem Tár tem um amor incondicional. Inclusive Tár se desloca até a
escola para proteger a menina e ameaçar quem bulir com ela. Essa relação de proteção
incondicional é similar à relação que os EUA tem ao amar e proteger o estado de
Israel. Por outro lado, a menina sofre esse bullying
porque de fato é diferente de suas colegas de escola, que são brancas. Aqui ela
assume realmente esse papel palestino, de alguém que não tem paz no seu próprio
entorno. Por fim, a briga entre Sharon e Tár (quando Tár é impedida de ver a
filha) está ali para nos mostrar que se trata mesmo de um território dividido e
em conflito, e de que a tensão Israel/Palestina está longe de acabar.
Por falar em conflito, cabe
recuperar a história do conservatório dirigido pela própria Lydia Tár. Ali,
naquela cena hipercomplexa em que a maestrina dialoga com Max, um rapaz negro e
LGBT, estão representadas as relações dos EUA com o seu próprio povo. Essa cena
nos indica que Tár/EUA, ainda que superpoderosos no mundo externo, têm muita dificuldade
de lidar com as próprias bases. Max rejeita e confronta o poder da maestrina,
lançando mão de uma argumentação decolonial e se recusando a tocar uma peça de
um compositor branco. O conflito dentro do conservatório é então isto: um país
que não sabe lidar com o momento atual de seu povo, que possui demandas outras,
diferentes daquelas nas quais o país foi forjado. Há então uma parte desse povo
que se levanta e desafia o poder branco de Tár/EUA.
Portanto, o que temos é que Tár
não consegue dar conta de sua orquestra nem de seu conservatório. Daí advém uma
crise. Esta é a crise norte-americana, que não foi capaz de, no século XX,
resolver suas questões internas nem de reger o mundo, o que acaba por colocar
em xeque toda a concepção de mundo ocidental. Esta crise é potencializada pela
morte de Krista, um crime do qual Tár é acusada e da qual efetivamente tem
culpa, embora insista em negar sua participação. Os EUA participaram de
inúmeras guerras ao longo do século XX (Vietnã, Afeganistão, Golfo). O tempo de
hoje não permite mais escamotear certas coisas, de maneira que quem tem sangue
nas mãos, mais dia menos dia, será julgado.
Nesse sentido, é curioso perceber
a surdez e o zumbido de Tár. Inicialmente, não é algo que a assuste, mas essa
sensação passa a se tornar mais frequente no curso do filme, inclusive
atrapalhando os ensaios. Na verdade, simbolicamente, Tár está surda ao mundo:
não consegue entender que Olga se desenvolveu como musicista com base no
Youtube, não consegue ouvir as demandas de Max no conservatório, não dá ouvidos
mesmo ao silêncio gritante de sua companheira. Perdida em sua fantasia de poder,
Tár (assim como os EUA) não consegue ouvir que o mundo à sua volta está em
constante transformação, e que demanda coisas que talvez ela já não seja capaz
de prover.
Essa fantasia de poder vai sendo
paulatinamente desconstruída até que Tár chega à China. Ali, a cena da
maestrina no barco é emblemática: enquanto ela pergunta em um tom de chiste e
de maneira bem colonizadora sobre o perigo dos jacarés dentro do rio no qual eles
singram, o barqueiro responde, sério e com altivez, algo como: “Aqui há apenas
os jacarés que Marlon Brando não matou.” Nesta cena, a mensagem passada para
Tár é: “aqui você não é especial; nem você, nem o seu povo, e nem a sua cultura.”
Este desprestígio se aprofunda
nas cenas finais. O que vemos é mais que o declínio, é mesmo o apocalipse dos
EUA e da cultura ocidental. O século XXI emerge, e a China assume o
protagonismo do mundo. Há um interesse ali por algo da cultura ocidental, mas este
interesse está associado à reapropriação daqueles símbolos em outros termos.
As cenas finais, em que o palco do
teatro do mundo é a China, e não mais Berlim, tem inclusive outra
temporalidade. Todo o filme se passa num ritmo mais lento, mas as cenas finais
são ultra rápidas, o que indica que o eixo do mundo muda não só em sua
geografia, mas também em sua velocidade: é num outro ritmo que as coisas
acontecem. Para alguém que inicia o filme dizendo que “controla o tempo”,
certamente essa mudança de ritmo tem um significado e tanto.
Tár evidentemente não está preparada,
de forma que o modo como a cultura ocidental passa a ser retratada naquele
contexto é entendida por ela como um grande deboche. É então que, ali, na
última cena, em que o público vestido de cosplay
aplaude o espetáculo, temos verdadeiramente um gran finale.
O grande concerto das nações,
regidos pelos EUA, jamais aconteceu. São as pessoas que passam a protagonizar a
cena, a partir de suas próprias subjetividades, para performarem através do cosplay o que de fato elas querem ser. A
utopia do poder é desconstruída, e o foco no público, em vez de nos artistas,
mostra que a cultura é vista não mais como uma herança do que a humanidade foi
capaz de produzir, mas apenas como mais uma ferramenta a ser utilizada na construção
e na performance de si.
Este final, apocalíptico mas
também apoteótico, nos pega a todos de surpresa. Ao ler essa resenha e nos
depararmos com todos os aspectos geopolíticos envolvidos na trama, somos
levados a pensar: “Que papel os EUA, e o Ocidente de maneira geral, estarão
designados a desempenhar à medida que o século XXI avança?” Mas cabe aqui retomar
a impressão imediata que, antes de qualquer análise, nos toma ao sair da sala
de cinema, neste final que se nos apresenta como uma catástrofe: “De que serviu
aquilo tudo? Toda essa história para, no final, isto?”
Esta impressão inicial, agora matizada pela leitura geopolítica, retorna ainda com mais força. Este retorno vem com uma sutil, mas necessária, variação: “De que serviu aquilo tudo? Toda essa História para, no final, isto?”
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