Entudo. Fui afetado de muitas maneiras pela leitura de “Coisa de Rico”, do Michel Alcoforado. Em primeiro lugar, a leitura chegou em um momento em que tem sido difícil que algo me mobilize esteticamente. Tenho achado a arte que chegou a mim recentemente (peças, filmes, livros, exposições) meio insossa. E foi com uma gratíssima surpresa que pude ler um livro agradável, instigante, divertido e que me fez pensar sobre a vida e as coisas. É bom gostar de algo, sentir que a arte pode alguma coisa em nós.
Em dado momento, me perguntei se essa atitude blasé sobre as coisas não seria talvez um problema meu. Não é tanto o mundo que está ruim, sou eu que não consigo captá-lo. O tédio talvez seja uma coisa de rico.
Se
podemos viajar a Berlim, se conseguimos ter acesso às mais belas exposições de
arte em Praga, se acessamos homens lindos nas saunas de Montreal, e, por fim,
se apreciamos um café espresso preparado a partir de grãos colhidos nos solos
vulcânicos de Cabo Verde e que nos são vendidos numa loja quase secreta nas
ruas de Lisboa, talvez fique difícil que a vida nos surpreenda.
É
que sou rico. Fiz as contas, olhei o quadro de renda familiar e os percentis.
Sou 1%. O tabu sobre dinheiro é tão grande no Brasil que talvez essa informação
me iniba de publicar esse texto. Posso ser cancelado. Falo muita merda, erro o
tom, dirijo a comunicação como quem pilota um carro em alta velocidade. Sou
ariano, e não tenho carteira de motorista.
Certa
vez, almocei com dois colegas de trabalho, também ricos. Fui falar alguma coisa
e comecei com “Então, porque a gente que é rico (...)”, ao que fui imediatamente
desencorajado e interrompido, “Não, não, a gente não é rico, não. Rico é quem
tem patrimônio, a gente só tem renda.” Retomo: “Ah, mas pelo nosso salário, a
gente não se preocupa muito com grana, a gente consegue fazer o que a gente quer.”,
ao que ele retruca: “Mas rico é quem não precisa trabalhar, a gente tem que trabalhar
pra ter esse dinheiro.”
Lembrei
desse diálogo assim que terminei de ler o Alcoforado. Ninguém é rico, rico é
sempre o outro. Eu nunca conheci um executivo. Uma vez, ainda jovem, me dei
conta de que ninguém se afirma como executivo: esse termo serve sempre a uma
heterodeterminação. Ser executivo talvez seja um modo de ser rico.
Mas
fiquei um tempo na cabeça com essa questão de “fazer o que a gente quer”, sem
se preocupar com grana. Se não tenho problemas com dinheiro, se sou, por assim
dizer, “um realizado”, talvez eu não seja rico.
É
que meus sonhos são de pobre. Eu não quero um iate, não quero uma viagem de
jatinho, não quero luxo, ostentação, nada disso. Quero silêncio, paz, quero
estar em um restaurante onde não haja pessoas vendo vídeos do TikTok em volume
alto.
É
que talvez então, novamente, eu seja rico. Talvez, em mim, a operação da diferença
(nos termos do Alcoforado), se dê não por uma lógica do dinheiro novo, mas do
dinheiro velho. Não estaríamos aqui falando de um tempo transformador, mas de
um tempo legitimador. Eu não tive um ponto de virada, não apostei tudo. Sou
assim como que desde sempre. O tempo, o tempo rei, fez de mim o que sou.
O
problema é que isso não é verdade, e mais uma vez, vejo a riqueza me escapar
pelos dedos. Tenho sonhos de dinheiro velho, ajo como quem sempre teve, vivo
como quem herdará, mas sob as camadas reluzentes da cebola de ouro e caramelo, habita
em mim o oco da verdade, a verdade verdadeira dos fatos, que é a de que sou um
pequeno burguês, um funcionário público num bom cargo, cujos pais apostaram na educação
como saída para um vida média média, a infância num bairro do subúrbio, um condomínio
de classe média baixa, a introjeção de certos valores de uma elite cultural que
advém desde cedo dos bons colégios e de uma aposta na cultura como força motriz
de transformação da vida.
No
fundo mesmo, acho que sinto um pouco como o Alcoforado. Nosso patamar de renda
nos dá uma certa capacidade de circular pela riqueza. A ele, evidentemente mais,
posto que investiu nisso como um projeto de vida.
Mas
é até com uma certa dose de descontentamento que me vejo espelhar nele: Alcoforado,
ao falar da riqueza, projeta sobre si uma superioridade moral.
Não
sou rico, mas posso brincar de ser rico, então, finjo que sou rico, e finjo tão
a sério que quase me confundo com os ricos mesmo, os ricos de verdade, mas de
fato não sou rico, e se, em algum momento, pensei de ser rico, rico mesmo (e olha
que quase fiquei rico, de tanto brincar de ser rico), penso que é melhor não, porque
os ricos, ah, olha os ricos, que pena dos ricos, coitado dos ricos, eles só são
ricos, não são como nós, os intelectuais, então vamos aqui brincar de ser
ricos, fingir ser ricos, e vamos todos rir na cara dos ricos.
Existe
uma coisa linda na antropologia que é a de pesquisar o campo e, ao fazê-lo, imiscuir-se
nele: em algum momento, você também é o campo. Mas ao tecer essas narrativas, ao
expor as cenas, ao manejar a si mesmo no campo, não sei, parece mesmo não ter
jeito: todo antropólogo tem dentro de si uma superioridade moral.
Sei
que a antropologia tem tensionado isso, e gastado anos de sua produção científica
recente pensando os modos não violentos de abordar o campo e de se colocar nele,
mas parece que a petulância está impregnada nesses profissionais como uma
gosma, algo viscoso, difícil de tirar da pele. Todos os dias agradeço por não
ser antropólogo, por não ter potencializado em mim as características que vão
nessa direção. (meu deus, eu não vou publicar esse texto nunca).
É
muito bom não ser rico, eu prefiro ser intelectual (realidade: não sou nem uma
coisa nem outra; brinco de ser ambos).
Pensando
aqui também nessa dimensão do brincar. Se tudo é performance, não podemos
assumir o lado lúdico de performar e fazer de tudo uma brincadeira? Se a vida é
um jogo, não fica mais legal se, de fato, jogarmos?
Jogo,
brincadeira, penso também no corpo – que surge numa das sacadas mais geniais de
todo o livro (não vou falar dos peitos da patricinha divorciada).
Nunca
quis ter um corpo superlativo. Sempre privilegiei tônus e flexibilidade em
detrimento de força e hipertrofia. Agrada-me mais a calistenia que a
musculação, prefiro o treino funcional aos aparelhos de academia. Até a leitura
desse livro eu nunca tinha compreendido que esse meu gosto era tão diretamente
informado por marcadores de classe e modos de performar a riqueza / operar a
diferença.
É
só que eu penso na maior parte das vezes como dinheiro velho. E o dinheiro
velho quer um corpo mais próximo do “natural” (aspas aspas aspas quando se usa
o termo “natural” em qualquer discussão em antropologia) do que um corpo fabricado,
produzido.
É
bem óbvio que parte significativa dos nossos gostos é construída em cima dessas
performatividades, mas por vezes a gente simplesmente não se dá conta. Fui
surpreendido dessa vez. Mesmo a gente que é o falso dinheiro velho se
surpreende com as coisas da vida.
Por
fim, um detalhe não menos importante, meu e do Alcoforado.
Somos
negros.
Ele
não aborda isso em nenhum momento do seu livro. Não sei se no meio de tanta graça,
de tanta fala jocosa, seria possível abordar um assunto mais delicado.
E
também é sempre mais fácil não falar de si mesmo (a antropologia fala dos outros
para calar sobre si – ser antropólogo é a revanche de quem sofreu bullying na
escola).
O
direito diz que o silêncio não pode ser interpretado, mas a internet está
sempre falando sobre o silêncio ensurdecedor da Anitta e de outras
personalidades, quando algo é percebido como importante e não está sendo
comentado.
Se
Alcoforado não falou nada sobre cor e raça, também deixo aqui o carimbo do meu
silêncio.
O
silêncio é uma virtude. Inclusive o silêncio escrito. Falo merda, escrevo
merda, nem sempre banco (tenho bancado menos à medida que envelheço, sigo em
direção a um caminho de vulnerabilidade e de fragilidade, morro de medo ser
cancelado, quero ser amado, isso basta, não preciso de muita coisa, vade
retro churrascarias de Miami e humor antropológico).
Esse
texto se destruirá em menos de 24 horas. Negarei todos os prints, e, no campo
jurídico, serão tomadas as medidas cabíveis.
Das
medidas cabíveis, o que cabe, o descabido. Transito.
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