domingo, 5 de outubro de 2025

Coisa de Rico

(âmbar do báltico sobre coisa de rico)


Entudo. Fui afetado de muitas maneiras pela leitura de “Coisa de Rico”, do Michel Alcoforado. Em primeiro lugar, a leitura chegou em um momento em que tem sido difícil que algo me mobilize esteticamente. Tenho achado a arte que chegou a mim recentemente (peças, filmes, livros, exposições) meio insossa. E foi com uma gratíssima surpresa que pude ler um livro agradável, instigante, divertido e que me fez pensar sobre a vida e as coisas. É bom gostar de algo, sentir que a arte pode alguma coisa em nós.

Em dado momento, me perguntei se essa atitude blasé sobre as coisas não seria talvez um problema meu. Não é tanto o mundo que está ruim, sou eu que não consigo captá-lo. O tédio talvez seja uma coisa de rico.

Se podemos viajar a Berlim, se conseguimos ter acesso às mais belas exposições de arte em Praga, se acessamos homens lindos nas saunas de Montreal, e, por fim, se apreciamos um café espresso preparado a partir de grãos colhidos nos solos vulcânicos de Cabo Verde e que nos são vendidos numa loja quase secreta nas ruas de Lisboa, talvez fique difícil que a vida nos surpreenda.

É que sou rico. Fiz as contas, olhei o quadro de renda familiar e os percentis. Sou 1%. O tabu sobre dinheiro é tão grande no Brasil que talvez essa informação me iniba de publicar esse texto. Posso ser cancelado. Falo muita merda, erro o tom, dirijo a comunicação como quem pilota um carro em alta velocidade. Sou ariano, e não tenho carteira de motorista.

Certa vez, almocei com dois colegas de trabalho, também ricos. Fui falar alguma coisa e comecei com “Então, porque a gente que é rico (...)”, ao que fui imediatamente desencorajado e interrompido, “Não, não, a gente não é rico, não. Rico é quem tem patrimônio, a gente só tem renda.” Retomo: “Ah, mas pelo nosso salário, a gente não se preocupa muito com grana, a gente consegue fazer o que a gente quer.”, ao que ele retruca: “Mas rico é quem não precisa trabalhar, a gente tem que trabalhar pra ter esse dinheiro.”

Lembrei desse diálogo assim que terminei de ler o Alcoforado. Ninguém é rico, rico é sempre o outro. Eu nunca conheci um executivo. Uma vez, ainda jovem, me dei conta de que ninguém se afirma como executivo: esse termo serve sempre a uma heterodeterminação. Ser executivo talvez seja um modo de ser rico.

Mas fiquei um tempo na cabeça com essa questão de “fazer o que a gente quer”, sem se preocupar com grana. Se não tenho problemas com dinheiro, se sou, por assim dizer, “um realizado”, talvez eu não seja rico.

É que meus sonhos são de pobre. Eu não quero um iate, não quero uma viagem de jatinho, não quero luxo, ostentação, nada disso. Quero silêncio, paz, quero estar em um restaurante onde não haja pessoas vendo vídeos do TikTok em volume alto.

É que talvez então, novamente, eu seja rico. Talvez, em mim, a operação da diferença (nos termos do Alcoforado), se dê não por uma lógica do dinheiro novo, mas do dinheiro velho. Não estaríamos aqui falando de um tempo transformador, mas de um tempo legitimador. Eu não tive um ponto de virada, não apostei tudo. Sou assim como que desde sempre. O tempo, o tempo rei, fez de mim o que sou.

O problema é que isso não é verdade, e mais uma vez, vejo a riqueza me escapar pelos dedos. Tenho sonhos de dinheiro velho, ajo como quem sempre teve, vivo como quem herdará, mas sob as camadas reluzentes da cebola de ouro e caramelo, habita em mim o oco da verdade, a verdade verdadeira dos fatos, que é a de que sou um pequeno burguês, um funcionário público num bom cargo, cujos pais apostaram na educação como saída para um vida média média, a infância num bairro do subúrbio, um condomínio de classe média baixa, a introjeção de certos valores de uma elite cultural que advém desde cedo dos bons colégios e de uma aposta na cultura como força motriz de transformação da vida.

No fundo mesmo, acho que sinto um pouco como o Alcoforado. Nosso patamar de renda nos dá uma certa capacidade de circular pela riqueza. A ele, evidentemente mais, posto que investiu nisso como um projeto de vida.

Mas é até com uma certa dose de descontentamento que me vejo espelhar nele: Alcoforado, ao falar da riqueza, projeta sobre si uma superioridade moral.

Não sou rico, mas posso brincar de ser rico, então, finjo que sou rico, e finjo tão a sério que quase me confundo com os ricos mesmo, os ricos de verdade, mas de fato não sou rico, e se, em algum momento, pensei de ser rico, rico mesmo (e olha que quase fiquei rico, de tanto brincar de ser rico), penso que é melhor não, porque os ricos, ah, olha os ricos, que pena dos ricos, coitado dos ricos, eles só são ricos, não são como nós, os intelectuais, então vamos aqui brincar de ser ricos, fingir ser ricos, e vamos todos rir na cara dos ricos.

Existe uma coisa linda na antropologia que é a de pesquisar o campo e, ao fazê-lo, imiscuir-se nele: em algum momento, você também é o campo. Mas ao tecer essas narrativas, ao expor as cenas, ao manejar a si mesmo no campo, não sei, parece mesmo não ter jeito: todo antropólogo tem dentro de si uma superioridade moral.

Sei que a antropologia tem tensionado isso, e gastado anos de sua produção científica recente pensando os modos não violentos de abordar o campo e de se colocar nele, mas parece que a petulância está impregnada nesses profissionais como uma gosma, algo viscoso, difícil de tirar da pele. Todos os dias agradeço por não ser antropólogo, por não ter potencializado em mim as características que vão nessa direção. (meu deus, eu não vou publicar esse texto nunca).

É muito bom não ser rico, eu prefiro ser intelectual (realidade: não sou nem uma coisa nem outra; brinco de ser ambos).

Pensando aqui também nessa dimensão do brincar. Se tudo é performance, não podemos assumir o lado lúdico de performar e fazer de tudo uma brincadeira? Se a vida é um jogo, não fica mais legal se, de fato, jogarmos?

Jogo, brincadeira, penso também no corpo – que surge numa das sacadas mais geniais de todo o livro (não vou falar dos peitos da patricinha divorciada).

Nunca quis ter um corpo superlativo. Sempre privilegiei tônus e flexibilidade em detrimento de força e hipertrofia. Agrada-me mais a calistenia que a musculação, prefiro o treino funcional aos aparelhos de academia. Até a leitura desse livro eu nunca tinha compreendido que esse meu gosto era tão diretamente informado por marcadores de classe e modos de performar a riqueza / operar a diferença.

É só que eu penso na maior parte das vezes como dinheiro velho. E o dinheiro velho quer um corpo mais próximo do “natural” (aspas aspas aspas quando se usa o termo “natural” em qualquer discussão em antropologia) do que um corpo fabricado, produzido.

É bem óbvio que parte significativa dos nossos gostos é construída em cima dessas performatividades, mas por vezes a gente simplesmente não se dá conta. Fui surpreendido dessa vez. Mesmo a gente que é o falso dinheiro velho se surpreende com as coisas da vida.

Por fim, um detalhe não menos importante, meu e do Alcoforado.

Somos negros.

Ele não aborda isso em nenhum momento do seu livro. Não sei se no meio de tanta graça, de tanta fala jocosa, seria possível abordar um assunto mais delicado.

E também é sempre mais fácil não falar de si mesmo (a antropologia fala dos outros para calar sobre si – ser antropólogo é a revanche de quem sofreu bullying na escola).

O direito diz que o silêncio não pode ser interpretado, mas a internet está sempre falando sobre o silêncio ensurdecedor da Anitta e de outras personalidades, quando algo é percebido como importante e não está sendo comentado.

Se Alcoforado não falou nada sobre cor e raça, também deixo aqui o carimbo do meu silêncio.

O silêncio é uma virtude. Inclusive o silêncio escrito. Falo merda, escrevo merda, nem sempre banco (tenho bancado menos à medida que envelheço, sigo em direção a um caminho de vulnerabilidade e de fragilidade, morro de medo ser cancelado, quero ser amado, isso basta, não preciso de muita coisa, vade retro churrascarias de Miami e humor antropológico).

Esse texto se destruirá em menos de 24 horas. Negarei todos os prints, e, no campo jurídico, serão tomadas as medidas cabíveis.

Das medidas cabíveis, o que cabe, o descabido. Transito.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

N\ ovo


Termino de ler o livro da Leda Maria Martins, “Performances do tempo espiralar”, e tento escolher um caminho para escrever algo. É difícil, todo texto é também uma encruzilhada.

As encruzilhadas não são nós. São aberturas, possibilidades de caminhos: elas são devires.

Portanto, todo ato de escrita carrega consigo a possibilidade também do que não se escreveu. Tudo o que é, e tudo que vem sendo, carrega consigo a possibilidade do que também poderia ter sido.

Certa vez li um texto do José Gil, chamado “As pequenas percepções”, que discutia um pouco sobre a apreciação estética nas artes visuais – percepção, sensação, experiência etc. Uma das frases que mais me marcou nesse texto foi esta: “A atmosfera é infra-semiótica.”.

Eu estava cursando o primeiro período da faculdade de psicologia, e a ideia de uma atmosfera infra-semiótica me atingiu em cheio. Tudo o que há no mundo está carregado de partículas cujo sentido não está dado – são, portanto, infra-semióticas. São as consciências das pessoas que acionam ou agenciam essas partículas e as dotam de sentido. Para a fenomenologia, que é um certo modo de construir a filosofia a partir do que se nos dá a ver (ou seja, do fenômeno), toda consciência é sempre consciência de algo. E esse algo seria o que está nessa atmosfera: partículas soltas, livres, desorganizadas, aquém do sentido. É por esse viés que se desdobra aquela visão mais jovem-mística de que “o que vai acontecer já está acontecendo”. Ou seja, o que vai acontecer já está concebido em devir, já é potencialidade, já é coágulo de partículas infra-semióticas se imbricando mutuamente e erigindo desde agora a possibilidade de seu sentido futuro, à espera de uma consciência que lhe dê sentido e corpo.

Corpo.

Nos estudos que tenho feito (na faculdade, mas também nas leituras esparsas que cultivo aqui e ali), a ausência do corpo como locus de produção de sentido das coisas é a tônica geral. Fala-se de consciência como se ela fosse descorporificada, como se a intencionalidade para com os objetos e partículas infra-semióticas às quais se dará sentido fosse feita a partir de uma consciência que se estabelecesse como algo etéreo, desmaterializado, que não só pudesse existir de maneira alheia a esse corpo como fosse em tudo a ele superior.

Mas é no corpo que a consciência é. E no corpo o tempo bailarina.

Mas pode uma consciência bailar?

Se o tempo bailarina nos voltejos do corpo, como nos diz Leda Maria Martins, ele bailarina também nos voltejos da consciência.

É que, talvez, para dar ao corpo a centralidade epistêmica que se impõe no tempo (que bailarina?), devamos deixar de falar de uma consciência corporificada, e passar a falar de um corpo conscientificado.

Não é a consciência, portanto, que teria a propriedade de ter um corpo, do qual, supostamente, se locupletaria como aquilo que lhe permitisse experimentar as percepções e sensações dos objetos, para então poder submetê-las ao seu escrutínio e processamento. É o corpo, por sua vez, que carrega essa propriedade ontológica de ser. O corpo, então, uma vez sendo, é que teria na consciência uma de suas partes integrantes, que seria justamente aquela que lhe forneceria a possibilidade de dar sentido ao mundo experimentado.

É por essa razão que tenho questionado um certo clichê ainda muito presente de que “o corpo é a nossa casa” Quando dizemos isso, separamo-nos de nossa dimensão corpórea e dizemos que somos esse algo mental, etéreo, e que o corpo seria a casa onde essa mente habita. Acredito que o corpo não é “onde a gente mora”, o corpo é precisamente o que somos.

Reivindicar a centralidade epistêmica do corpo é um trabalho decolonial importante. É decolonial porque ele precisa romper com o dualismo cartesiano mente-corpo, que dá àquela um valor maior do que a este, e que justificou o projeto colonial ao ler a alteridade como “aqueles que sabem menos”, “aqueles que não têm alma” etc, e cujos corpos poderiam ser livremente dispostos e manejados pelos colonizadores. É importante porque abre margem para que emerjam outras narrativas e outras propostas éticas que haviam sido solapadas por esse projeto colonial.

E o corpo no tempo bailarina.

Essa dimensão da dança, do gesto, do movimento faz com que o corpo não seja só um agente da escrita (por meio das mãos que manuseiam canetas, teclados ou telas). Escrever é sempre um ato corporal, já sabíamos, mas Leda Maria Martins nos alerta para a dimensão de que o corpo também é onde se escreve – ou melhor, onde se inscreve o tempo.

O corpo-tela, como Leda nos diz, é a possibilidade de que o corpo seja o espaço por onde o tempo flui. O tempo existe, então, por meio do corpo. Se no corpo o tempo bailarina, isto o é somente porque o corpo funda o tempo, e o refunda a cada vez, à medida que a performance corporal evoca e atualiza uma certo modo de existência, um ethos.

Ora, se o corpo funda o tempo, e o tempo no corpo bailarina, a dança, no que traz de próprio do performer, e do que isso evoca do que já foi antes dançado, é a matéria mesma da existência.

O movimento, a dança, não é algo que se faz porque o corpo quer dançar. É a dança que cria o mundo – nos voltejos do corpo onde o tempo bailarina, onde o tempo se inscreve.

Causa-nos certa estranheza então porque se fala tão pouco de movimento, de dança, de corpo. Por que é que isto não se coloca na centralidade do pensamento sobre a vida? A quem interessa calar a potência do corpo como elemento fundador e atualizador do mundo, do tempo, da consciência?

Acho que há nisso tudo uma certa dificuldade de lidar com uma perspectiva não essencialista das coisas – a ideia de que o corpo não é algo, mas um vir-sendo.

Nesse ponto, acho que discordo um pouco da autora, que parece defender uma perspectiva essencialista do corpo – de que o mesmo ginga (nas encruzilhadas e fora delas) como que animado por uma força vital, um axé, uma ancestralidade.

Penso, ao revés, que não há lá no corpo que performa seus movimentos de um já-vindo e de um vir-a-ser, algo como uma origem, um começo.

O corpo é um palimpsesto – assim como as cidades. A despeito dos esforços para estabelecer um marco fundador, não há um original a que se retornar. Mesmo as cidades, uma vez fundadas, se erigem em um espaço que foi outra coisa, restando nelas sempre uma dimensão que permanece.

Portanto, cada cidade (assim como cada corpo) se atualiza no gesto e no concreto, na performance e no urbanismo, não como quem evoca algo que partiu e já não está mais lá, mas sabendo que ambos são mesmo constituídos disso que já foi, ao mesmo tempo que constituintes de um vir-a-ser (e mesmo também de um já-sido, e nisso reside a espiralidade do tempo).

Mas essa constituição não rememora, evoca ou convoca uma anima ancestral – é o fluxo do movimento que se dobra e se desdobra sobre si mesmo, em circunvoluções que não vão apontar para uma essência, ou algo que, enfim, seja.

Essa constituição do corpo (e também das cidades) é mesmo a de um palimpsesto, em que as camadas se acumulam umas sobre as outras, sem que haja um primeiro, uma origem.

Nosso corpo se compõe de células de outros corpos, do que comemos, da poeira que respiramos junto com o oxigênio que nos serve e o nitrogênio que se nos passa.

Somos cicatrizes, tatuagens, memória de estalos, dentes quebrados, alongamentos, tensões, traumas.

Isto que somos faz, pensa, existe. Evoca sem copiar, cria sem definir – ginga na encruzilhada e instaura o tempo como tensão. Mas só é porque se move. E no que se move, dá sentido ao mundo, criando-o a partir de suas infrasemioticidades, de seus quase-seres.

É o movimento mesmo essa origem e esse destino. E que tinge o mundo, de cores e de potências, quando acontece como presença.