Foi por um mero acaso que
esbarrei com o livro de Victor Hugo de Souza Barreto, ‘Vamos fazer uma
sacanagem gostosa? – uma etnografia da prostituição masculina carioca’, lançado
há alguns meses pela Editora Universitária da UFF, a Eduff.
Uma pequena nota de jornal
(talvez no Ancelmo Gois, já não me lembro) indicava o lançamento do livro, na
Livraria Travessa de Botafogo. Como moro relativamente perto, o horário era
conveniente e o tema me chamou a atenção, decidi ir. Victor Hugo ficou um pouco
surpreso com a minha presença, uma vez que não nos conhecíamos (e ainda não nos
conhecemos). Como já lancei livros, suponho como ele tenha se sentido.
Esperamos ver os amigos e os mais chegados, de forma que topar com um anônimo
interessado em nosso texto é algo que nos deixa meio surpresos, quase
assustados. Ele me escreveu uma dedicatória algo genérica, mas carinhosa, e me
indagou quem eu era, o que fazia ali. Não consegui dizer outra coisa além da
minha formação em engenharia de produção, mas me coloquei como alguém interessado
‘no assunto’ (de forma que, para ele, eu poderia ser um estudante, um garoto de
programa, alguém que pensa em abrir uma sauna, etc)
Cheguei em casa com o livro,
fininho. Descobri que o mesmo era fruto de uma dissertação de mestrado
defendida na UFF, universidade pela qual tenho imensa gratidão (‘carinho’ ou ‘amor’,
além de soar piegas, seria falso). Victor Hugo é mestre em antropologia pela
UFF, onde atualmente cursa seu doutorado.
O livro é um bálsamo. Ao folhear
as primeiras páginas e verificar o modo como estavam estruturados o texto, as
referências, o estilo, fiquei feliz. Victor Hugo escreve bem, e o melhor de
tudo, escreve para ser lido, o que deve ser encarado de maneira muito positiva,
em especial em textos acadêmicos.
É claro que houve um trabalho
adpatativo da dissertação ao livro. Mas mesmo em trabalhos acadêmicos
publicados sob a forma de livro, é raro ver uma prosa tão fluida, tão cuidadosa
com o leitor. O desafio da escrita técnica (seja uma tese de mestrado ou um
livro de ensaios), no meu ponto de vista, é o de escrever de maneira
equilibrada, sem cansar o leitor com tautologias e excessos, mas, ao mesmo
tempo, sem tutorá-lo, sem infantilizá-lo. Victor Hugo acerta o tom.
O trabalho de Victor Hugo é dividido
em cinco capítulos. O primeiro, introdutório, apresenta os eixos teóricos aos
quais o trabalho se vincula. Curiosamente, é um capítulo leve, e mostra como a
discussão proposta se articula com as problemáticas de gênero e com as questões
relativas ao corpo e à subjetividade abordadas na filosofia desconstrutivista
francesa dos anos 1970 (Foucault, Deleuze & Guatari [eu senti falta do
Derrida]). Os capítulos posteriores se ocupam da sauna, dos boys (garotos de
programa) e do programa em si. O último capítulo, interessantíssimo, vai
discutir os limites éticos da pesquisa e o papel do pesquisador antropólogo
frente aos seus ‘objetos’ de pesquisa (leia-se ‘objetos’ com muitas aspas).
O trabalho é inteligente porque
constrói de maneira efetiva um conhecimento novo sobre a prática da
prostituição no Rio de Janeiro, em especial as que ocorrem nas saunas. Com a
leitura, passei a entender a maleabilidade discursiva na prostituição masculina,
a relação estreita das saunas com as delegacias de polícia, as motivações, os
desejos e os atravessamentos corpóreos dos garotos de programa, e mais do que
tudo, a viscosidade das informações relativas a esse mundo. Victor Hugo se
movimenta numa espécie de areia movediça, em que todas as informações são
fluidas, se desencontram: viscosas, é como tudo aquilo que pretendesse
assimilar como informação, como dado, se lhe escorresse pelos dedos.
Por isso, mais do que apresentar as
informações, o autor se dedica a explicitar os limites delas, as contingências,
as dificuldades em montar um panorama que se aproxime da verdade, do factual,
quando tudo o que parece haver é apenas uma produção discursiva errática.
O aspecto da resistência deve ser
enfatizado nesse trabalho. Particularmente, tenho implicado com o termo ‘resistência’.
Acho que ele dá uma ideia de passividade, de ir se permitindo uma corrosão lenta,
de reduzir o ritmo da sangria. O aspecto que quero enfatizar é outro. No mundo
turbulento em que vivemos, em especial no que diz respeito à revanche
conservadora que assola o país, o trabalho de Victor Hugo é o que se pode
chamar de uma resistência ativa, porque nele está contida a produção de alguma
coisa. Mais do que resistir, é preciso produzir, inventar. Esse trabalho, e sua
publicação na forma de livro, é uma produção intelectual ativa: incomoda os
reacionários, afronta o conservadorismo, se coloca politicamente de maneira
marcada.
Nisso, gostaria de ressaltar o
papel da Universidade, em especial o da UFF. Se Victor Hugo pôde fazer esse
trabalho, é porque a Universidade lhe concedeu alguma liberdade na escolha do
tema e na maneira de tratar o assunto. Certamente, seus professores o guiaram de
maneira adequada na escolha dos referenciais metodológicos, mas a liberdade
apresentada no texto (sem abrir mão do rigor técnico) parece refletir a
proposta de uma universidade também livre.
Pode ser apenas um viés, ms tenho
a impressão de que a UFF, em particular, se coloca num lugar de vanguarda nas
cências humanas. Além deste, outros dois trabalhos sérios como o Museu de Memes
e a dissertação de Mariana Gomes, “Minha pussy é o poder”, sobre a Valesca
Popozuda, parecem apontar para o fato de que a UFF, talvez mais do que outras,
está com suas antenas dirigidas à contemporaneidade. Esses trabalhos (tendo o
de Victor Hugo, inclusive, sido publicado pela editora universitária) mostram
uma Universidade viva, que entende e produz conhecimento sobre o que está
acontecendo hoje, agora, nas diversas articulações do real.
Por último, vale a pena destacar
o bom-humor. Entenda-se por bom-humor um certo misto de leveza e irreverência. Podemos
começar pelo título. Mais do que seu papel de enunciar o conteúdo das páginas
do interior do livro, a abordagem provocativa do título é também uma
performance. Não é apenas um enunciado que descreve, mas um enunciado que faz,
promove uma mudança no mundo (Jacques Derrida apresenta uma discussão
interessante sobre os discursos, no seu livro ‘A farmácia de Platão’. De acordo
com ele, os discursos podem descrever [algo, alguma coisa, alguém] ou agir
sobre o mundo, performar; a palavra que descreve versus a palavra que faz.) A performance do título se evidencia no
desdobramento do convite. Foi por causa dele (do título, do convite) que
comprei o livro.
Depois, os inúmeros ‘causos’ que
o pesquisador conta tendo observado as saunas vão se mostrando uma ferramenta
interessante para montar o panorama pretendido. Anedóticos e muito divertidos,
as histórias contadas quebram a monotonia das descrições dos espaços e das
pessoas, bem como das necessárias articulações teóricas. Se toda escrita é, em
si mesma, algo mortificada (em relação à vida real), as histórias contribuem
para dotar o texto de uma vivacidade maior.
Destaco o seguinte trecho: “Durante o tempo de pesquisa ali, por
exemplo, acompanhei um fato curioso. Um dos clientes, já octogenário, passou
mal durante um programa com um dos boys. Ainda que um outro cliente, que era
médico e que estava presente na casa naquele momento, tenha tentado reanimá-lo,
ele veio a falecer. Toda a ação seguinte com a polícia foi feita rápida e
discretamente, sem maiores prejuízos ou aborrecimento para os negócios da
sauna.”
Sem dúvida, essa história
contribui muito mais para entender as relações das saunas com as delegacias de
polícia do que uma descrição, ainda que detalhada, de como elas ocorrem.
Para finalizar, devo dizer que Victor
Hugo apresenta uma prosa inteligente, leve, bem articulada e bem posicionada
politicamente. Definitivamente, uma obra cuja leitura vale a pena!
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