segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Inteligência, resistência e bom-humor



Foi por um mero acaso que esbarrei com o livro de Victor Hugo de Souza Barreto, ‘Vamos fazer uma sacanagem gostosa? – uma etnografia da prostituição masculina carioca’, lançado há alguns meses pela Editora Universitária da UFF, a Eduff.

Uma pequena nota de jornal (talvez no Ancelmo Gois, já não me lembro) indicava o lançamento do livro, na Livraria Travessa de Botafogo. Como moro relativamente perto, o horário era conveniente e o tema me chamou a atenção, decidi ir. Victor Hugo ficou um pouco surpreso com a minha presença, uma vez que não nos conhecíamos (e ainda não nos conhecemos). Como já lancei livros, suponho como ele tenha se sentido. Esperamos ver os amigos e os mais chegados, de forma que topar com um anônimo interessado em nosso texto é algo que nos deixa meio surpresos, quase assustados. Ele me escreveu uma dedicatória algo genérica, mas carinhosa, e me indagou quem eu era, o que fazia ali. Não consegui dizer outra coisa além da minha formação em engenharia de produção, mas me coloquei como alguém interessado ‘no assunto’ (de forma que, para ele, eu poderia ser um estudante, um garoto de programa, alguém que pensa em abrir uma sauna, etc)

Cheguei em casa com o livro, fininho. Descobri que o mesmo era fruto de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, universidade pela qual tenho imensa gratidão (‘carinho’ ou ‘amor’, além de soar piegas, seria falso). Victor Hugo é mestre em antropologia pela UFF, onde atualmente cursa seu doutorado.

O livro é um bálsamo. Ao folhear as primeiras páginas e verificar o modo como estavam estruturados o texto, as referências, o estilo, fiquei feliz. Victor Hugo escreve bem, e o melhor de tudo, escreve para ser lido, o que deve ser encarado de maneira muito positiva, em especial em textos acadêmicos.

É claro que houve um trabalho adpatativo da dissertação ao livro. Mas mesmo em trabalhos acadêmicos publicados sob a forma de livro, é raro ver uma prosa tão fluida, tão cuidadosa com o leitor. O desafio da escrita técnica (seja uma tese de mestrado ou um livro de ensaios), no meu ponto de vista, é o de escrever de maneira equilibrada, sem cansar o leitor com tautologias e excessos, mas, ao mesmo tempo, sem tutorá-lo, sem infantilizá-lo. Victor Hugo acerta o tom.

O trabalho de Victor Hugo é dividido em cinco capítulos. O primeiro, introdutório, apresenta os eixos teóricos aos quais o trabalho se vincula. Curiosamente, é um capítulo leve, e mostra como a discussão proposta se articula com as problemáticas de gênero e com as questões relativas ao corpo e à subjetividade abordadas na filosofia desconstrutivista francesa dos anos 1970 (Foucault, Deleuze & Guatari [eu senti falta do Derrida]). Os capítulos posteriores se ocupam da sauna, dos boys (garotos de programa) e do programa em si. O último capítulo, interessantíssimo, vai discutir os limites éticos da pesquisa e o papel do pesquisador antropólogo frente aos seus ‘objetos’ de pesquisa (leia-se ‘objetos’ com muitas aspas).

O trabalho é inteligente porque constrói de maneira efetiva um conhecimento novo sobre a prática da prostituição no Rio de Janeiro, em especial as que ocorrem nas saunas. Com a leitura, passei a entender a maleabilidade discursiva na prostituição masculina, a relação estreita das saunas com as delegacias de polícia, as motivações, os desejos e os atravessamentos corpóreos dos garotos de programa, e mais do que tudo, a viscosidade das informações relativas a esse mundo. Victor Hugo se movimenta numa espécie de areia movediça, em que todas as informações são fluidas, se desencontram: viscosas, é como tudo aquilo que pretendesse assimilar como informação, como dado, se lhe escorresse pelos dedos.

Por isso, mais do que apresentar as informações, o autor se dedica a explicitar os limites delas, as contingências, as dificuldades em montar um panorama que se aproxime da verdade, do factual, quando tudo o que parece haver é apenas uma produção discursiva errática.

O aspecto da resistência deve ser enfatizado nesse trabalho. Particularmente, tenho implicado com o termo ‘resistência’. Acho que ele dá uma ideia de passividade, de ir se permitindo uma corrosão lenta, de reduzir o ritmo da sangria. O aspecto que quero enfatizar é outro. No mundo turbulento em que vivemos, em especial no que diz respeito à revanche conservadora que assola o país, o trabalho de Victor Hugo é o que se pode chamar de uma resistência ativa, porque nele está contida a produção de alguma coisa. Mais do que resistir, é preciso produzir, inventar. Esse trabalho, e sua publicação na forma de livro, é uma produção intelectual ativa: incomoda os reacionários, afronta o conservadorismo, se coloca politicamente de maneira marcada.

Nisso, gostaria de ressaltar o papel da Universidade, em especial o da UFF. Se Victor Hugo pôde fazer esse trabalho, é porque a Universidade lhe concedeu alguma liberdade na escolha do tema e na maneira de tratar o assunto. Certamente, seus professores o guiaram de maneira adequada na escolha dos referenciais metodológicos, mas a liberdade apresentada no texto (sem abrir mão do rigor técnico) parece refletir a proposta de uma universidade também livre.

Pode ser apenas um viés, ms tenho a impressão de que a UFF, em particular, se coloca num lugar de vanguarda nas cências humanas. Além deste, outros dois trabalhos sérios como o Museu de Memes e a dissertação de Mariana Gomes, “Minha pussy é o poder”, sobre a Valesca Popozuda, parecem apontar para o fato de que a UFF, talvez mais do que outras, está com suas antenas dirigidas à contemporaneidade. Esses trabalhos (tendo o de Victor Hugo, inclusive, sido publicado pela editora universitária) mostram uma Universidade viva, que entende e produz conhecimento sobre o que está acontecendo hoje, agora, nas diversas articulações do real.

Por último, vale a pena destacar o bom-humor. Entenda-se por bom-humor um certo misto de leveza e irreverência. Podemos começar pelo título. Mais do que seu papel de enunciar o conteúdo das páginas do interior do livro, a abordagem provocativa do título é também uma performance. Não é apenas um enunciado que descreve, mas um enunciado que faz, promove uma mudança no mundo (Jacques Derrida apresenta uma discussão interessante sobre os discursos, no seu livro ‘A farmácia de Platão’. De acordo com ele, os discursos podem descrever [algo, alguma coisa, alguém] ou agir sobre o mundo, performar; a palavra que descreve versus a palavra que faz.) A performance do título se evidencia no desdobramento do convite. Foi por causa dele (do título, do convite) que comprei o livro.

Depois, os inúmeros ‘causos’ que o pesquisador conta tendo observado as saunas vão se mostrando uma ferramenta interessante para montar o panorama pretendido. Anedóticos e muito divertidos, as histórias contadas quebram a monotonia das descrições dos espaços e das pessoas, bem como das necessárias articulações teóricas. Se toda escrita é, em si mesma, algo mortificada (em relação à vida real), as histórias contribuem para dotar o texto de uma vivacidade maior.

Destaco o seguinte trecho: “Durante o tempo de pesquisa ali, por exemplo, acompanhei um fato curioso. Um dos clientes, já octogenário, passou mal durante um programa com um dos boys. Ainda que um outro cliente, que era médico e que estava presente na casa naquele momento, tenha tentado reanimá-lo, ele veio a falecer. Toda a ação seguinte com a polícia foi feita rápida e discretamente, sem maiores prejuízos ou aborrecimento para os negócios da sauna.”

Sem dúvida, essa história contribui muito mais para entender as relações das saunas com as delegacias de polícia do que uma descrição, ainda que detalhada, de como elas ocorrem.

Para finalizar, devo dizer que Victor Hugo apresenta uma prosa inteligente, leve, bem articulada e bem posicionada politicamente. Definitivamente, uma obra cuja leitura vale a pena!

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