Lúcia tristinha, um pomo-de-adão
mal ajambrado que lhe veio na loteria da genética e que se só se mostrou na
adolescência, aos treze anos, aquele caroço grande e intumescente como se fosse
um peitinho nascido no lugar errado ou um desses casos de caxumba ou
hipertireodismo, mas não: era mesmo o dito-cujo.
Tinha sempre de explicar aos
outros que não era travesti, transex, quase-mulher. À época, morria de medo de
se pensar como alguém que pudesse estar exposta em desgastados panfletos nos
orelhões de Copacabana. Só saberia que o nome desse medo era preconceito muito
tempo depois, mas não aos treze.
Tanto faz, tanto faz, sua mãe lhe
dizia. Era na mãe que tinha de buscar apoio porque o pai era um senhorzinho bem
carrancudo e avesso aos diálogos que tivessem algum grau de profundidade. Não
se preocupe minha filha, tanto faz ter ou não ter isso aí que você tem na
garganta, quem te ama não vai ligar pra isso, filhinha. E a mãe repetia,
acolhedora, os mesmos argumentos repletos de clichês àquela menina jovem que só
estava preocupada em ser exatamente como todo mundo, sem idiossincrasias.
Lulu Caroço, como passou a ser
conhecida na escola, veio, por fim, a se locupletar dos movimentos sociais que
faziam a cabeça e o corpo da garotada. Lulu Caroço teve de fazer a transição do
luto à luta e, munida de termos como empoderamento, representatividade, combate
à opressão, e outros de igual carga semântica, decidiu que seu papel na vida
seria o de representar, junto ao movimento feminista, as mulheres com
pomo-de-adão.
Era uma causa nobre. Mas era
percebida como pouco séria no rolê. O movimento das mulheres de pinto (que é a
forma como se colocavam internamente as travestis e transexuais no movimento)
já tinha respaldo interno e endosso acadêmico. O das mulheres barbadas era uma
corrente minoritária por entre as feministas mas, uma vez unido ao das mulheres
que optavam por não se depilar, essa corrente ia conseguindo trilhar o seu
próprio caminho.
O das mulheres-de-pomo-de-adão,
então, era uma corrente completamente nova. Havia pouquíssimas mulheres nessa
situação. Além de si mesma, Lulu Caroço só havia ouvido falar de uma mulher em
Sergipe, duas em Alagoas, uma no Paraná e outra no interior de São Paulo na
mesma situação. Tratava-se, literalmente, de meia dúzia de casos.
Instada por Lúcia Silva, sua
homônima que atuava como uma das coordenadoras das pautas feministas
descentralizadas, democráticas e absolutamente horizontais do Estado do Rio de
Janeiro, seção Metropolitana IV, a abandonar a luta em defesa dos direitos das
mulheres-de-pomo-de-adão e, pior, a unir-se à corrente das mulheres de pinto,
Lulu Caroço disse não. Alegou que as pautas eram completamente diferentes
daquelas das mulheres de pinto e, pior, acusou sua xará de querer silenciá-la e
diminuir o valor da sua luta. Cadê a sororidade nessas horas?
Mas não era só dentro do
movimento que as dificuldades apareciam. Lulu Caroço tinha muita dificuldade em
explicar a sua luta para aqueles que estavam alijados das discussões que
floresciam no seio dos movimentos. O que, afinal, Lulu Caroço reivindicava para
si e suas cinco companheiras de infortúnio?
O primeiro ponto era justamente
esse: o de que o pomo-de-adão feminino não fosse tratado como um infortúnio. Seria,
antes, uma característica sem viés de positividade ou de negatividade. Lulu
queria ser percebida como uma mulher normal.
Por outro lado, Lulu entendia que
o pomo-de-adão era também um motivo de orgulho, e que não cabia às
mulheres-de-pomo-de-adão o sacrifício de escondê-lo ou mascará-lo. Era um
símbolo da sua singularidade e da sua feminilidade, e que dele deveriam ser
vangloriar as portadoras.
Outra causa que assumiu foi a da
mudança de nome: se o pomo ocorria em homens, mas ocorria também em mulheres,
era razoável que não fosse chamado “de adão”. Proporia como uso corrente um
nome de uso neutro. Inicialmente, pensou na asséptica alcunha de “proeminência
laríngea”, nome científico da referida protuberância. Ao perceber a dificuldade
de emplacar algo desse naipe, todavia, optou pela conhecida forma popular:
“gogó”.
Foi assim que surgiu o “Mulheres
de Gogó”. Formado inicialmente por Lulu Caroço e suas cinco companheiras, o
movimento foi ganhando a adesão paulatina das mulheres de pinto. Inicialmente
rechaçadas, as travestis e transexuais encamparam a luta de Lulu Caroço que, ao
mesmo tempo, percebeu que sem elas seria difícil progredir, tanto nas
trincheiras internas quanto na guerra de gêneros sangrenta que se travava lá fora.
À medida que o nome “Mulheres de
Gogó” emplacava, foram entrando as lésbicas das mais variadas gradações, das menininhas
às caminhoneiras, passando pelas sapatões clássicas. Elas acreditavam que o
gogó poderia fazer referência ao timbre da voz, e que ter o timbre mais fino ou
mais grosso era uma característica de cada mulher, e que devia ser respeitada.
Por fim, as outras mulheres, que
não tinham proeminência laríngea, que não eram nem travestis, nem transexuais e
nem lésbicas entenderam que o gogó era algo que deveria estar associado àquelas
que têm, sim, o direito de falar, e que devem falar sempre para serem ouvidas e
respeitadas, e que podem se expressar, e que jamais se calariam novamente. O
gogó era uma arma de todas as mulheres.
“Mulheres de Gogó”, hoje um
renomado bloco carioca, sai toda segunda-feira de Carnaval. A rua Viúva
Lacerda, no Humaitá, já não dá mais vazão ao fluxo das foliãs, e elas estão em
acordo com a Prefeitura para desfilar na própria Rua Humaitá. Depois de enredos
clássicos como “Tem caroço nesse angu” e “Gogó boys”, o enredo para o ano que
vem será “O caroço que a gente não quer”, sobre o câncer de mama.
Lulu Caroço, com cinquenta anos
de idade e trinta e sete de militância, aguarda ansiosa pelo momento em que
subirá no carro de som e proporá que as mulheres realizem um auto-exame
coletivo das mamas, tudo bem coreografado no meio do bloco, no compasso da axé
music.
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