Na última semana, a notícia de
que focas estavam estuprando pinguins sacudiu a internet. À parte o fato
deplorável de que alguns encontraram nesta notícia o subterfúgio que sempre
quiseram para fazer piadas sobre o estupro de forma mais 'tranquila' e menos
sujeita a julgamentos, e para além da notória bizarria que constitui o cerne da
matéria veiculada, existe uma outra coisa que aparece quase nas entrelinhas de
tão sutil, mas que vou tentar desenvolver aqui: a falibilidade do conhecimento
científico.
O texto desta notícia, em suas
várias nuances de acordo com o veículo de mídia, costumava apresentar ou no
primeiro ou no último parágrafo um trecho como: "Cientistas estão intrigados
com o fenômeno"; ou alternativamente: "Cientistas ainda não sabem explicar
porque esse tipo de comportamento ocorre".
Cientistas estarem intrigados com
o fenômeno é uma coisa ótima. Isto significa, no mínimo, que estes que foram
citados na reportagem são bons cientistas. A segunda frase, entretanto, é
aquela que traz o problema que ora abordo.
A raiz deste problema está na
palavra "ainda". A existência desta palavra na reportagem traz consigo a
seguinte mensagem: "Ora, trata-se de um fenômeno muito recente e que demanda
muito estudo. Evidentemente, a ciência conseguirá explicar isto mais cedo ou
mais tarde. Nossa impossibilidade de explicar o fenômeno é apenas momentânea."
Acredito que seria muito
improvável que a matéria pudesse ser publicada sem que a palavra "ainda" estivesse na sentença. A frase "Cientistas não sabem explicar porque esse tipo
de comportamento ocorre.", embora absolutamente verdadeira, frustraria não
apenas os leitores mas também a própria comunidade científica, todos eles muito
acostumados à ideia de que a ciência tem que dar conta de explicar todas as
coisas.
Só que ela não vai.
Particularmente, até acredito que
neste caso a ciência conseguirá explicar este fenômeno em breve. Mas pode ser
que não consiga. Pode ser que este fenômeno, o estupro dos pinguins pelas
focas, não tenha uma explicação científica. Ah, mas como assim? É, pode ser que
não tenha. Quando um homem estupra uma mulher, isso não necessariamente tem uma
explicação científica. Pode ter uma explicação psicanalítica, que não é
ciência. Pode ter uma explicação espiritual/religiosa, que também não é científica.
Em alguns casos, isso pode estar associado a um questão hormonal ou a alguma anomalia em uma região cerebral, o que, apenas nessa caso, teria a ver com o conhecimento
científico.
A fé cega na ciência, e mais do
que isso, achar que a verdade científica é a única verdade possível, é, senão
burrice, ao menos ingenuidade. Os fenômenos, todos os fenômenos que acontecem,
são dotados de uma tal complexidade, que olhar para eles sempre sob o mesmo prisma
do conhecimento científico é nada menos do que reduzi-los a uma fração do que
eles, de fato, são.
Essa estratégia de pensamento
unilateral não é privilégio da ciência. Muitas religiões acreditam que todas as
coisas podem ser explicadas por um livro sagrado (quando, é claro, não podem).
Algumas linhas da psicanálise acham que tudo pode ser reduzido às pulsões
sexuais (quando, é claro, não pode). Alguns economistas acham que a taxa de
crescimento do PIB explica tudo quanto for relevante para a economia dos
países, enquanto outros acham que a luta de classes é o grande conceito por
trás de todas os fenômenos sociais (quando, na verdade, não são).
Não estou dizendo que não acho
importante ter enfoques. Ao longo das nossas vidas, vamos escolhendo algumas
formas de ver o mundo, sob alguns prismas, alguns ângulos. Isso é bastante
razoável. Mas reduzir todas as coisas que existem a apenas uma única forma de
olhar é não perceber que o mundo é mais complexo do que somos capazes de
apreender.
Acreditar no método científico
como única solução possível é um ranço do positivismo do século dezenove, que
acha que os homens vão desenvolver a tecnologia até o ponto de domar a natureza
por completo. É com certo espanto que vejo esse tipo de pensamento (que
desembocou na eugenia e no conceito de raça superior) ser reproduzido ainda no
século XXI. Não cabe mais achar que a natureza está lá parada, pronta para ser
dominada e explicada pelos homens doutos e cultos. Não cabe mais achar que todas
as coisas podem ser explicadas de uma única forma, seja a religião, a
psicanálise, a economia ou a ciência. O mundo é plural, complexo, e nós não
damos conta nem de nós mesmos muitas das vezes. É preciso admitir a própria
ignorância.
Nessa linha, vou relatar uma
experiência que tive. Eu não tenho religião. Não trabalho com o conceito de
deuses ou divindades. No entanto, a postura presunçosa do ateísmo combativo que
acha que deus não existe PORQUE a ciência é capaz de explicar todas as coisas
foi me afastando da alcunha de "ateu" e me aproximando do termo "agnóstico".
Hoje em dia, tenho me intitulado como "sem religião", o que evita desgastes e
mal-entendidos nas relações quando o assunto vem à tona. Ser "sem religião" me
exime de uma necessidade de explicar o mundo de forma unilateral e é por isso
que a fé cega ateia na ciência me incomoda tanto.
Mas, retomando, sobre a
experiência que tive, foi o seguinte. Certa vez, eu conversava com um colega
(que já nem lembro mais quem era), e surgiu esse assunto sobre religião. "Ah,
qual a sua religião?", ele perguntou, "Não tenho", respondi, "Sou ateu." Daí, este colega (que
na ocasião acabei descobrindo ser bem religioso) me perguntou: "Ah, é, então
como é que você explica quando a pessoa recebe um santo e muda completamente a
aparência, voz, jeito, tudo? Você realmente não acredita que existem espíritos?
Hein, como você explica isso?" Daí, respondi: "Não, eu não explico." "Ué, mas
como assim? Você não sabe explicar isso então? Então você acredita ué." "Cara,
eu não vim pra explicar nada. Eu não sei explicar isso como não sei explicar um
monte de outras coisas. Tem muita coisa que eu não sei. E tudo bem não
sabê-las." Ele ficou muito incrédulo e desconfiado com o fato de eu não ter um
livro sagrado que desse conta de explicar o mundo, fosse ele a Bíblia, o
Alcorão o Capital ou o livro do Stephen Hawking.
As pessoas não estão prontas para
se assumirem ignorantes, para assumir que não sabem. E ficam lá esperando a
ciência 'evoluir' para que possamos explicar porque existe um cometa que toca música ou porque focas estupram pinguins.
Acreditar que as coisas ainda não
foram explicadas é, certamente, muito mais reconfortante do que aceitar que
para algumas coisas (talvez para a maioria delas), não existe qualquer tipo de
explicação.