quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A máscara, ainda que me esconda, tem o formato do meu rosto

Escrever um livro policial deve ser muito chato. Escrever um livro deve ser chato. Ok, chega de tergiversar: escrever é chato. Honestamente, poucas pessoas são tão chatas como os escritores. Veja só, um escritor que começa uma frase com “honestamente” talvez não deva mesmo ser levado a sério. Honestamente, acho meu trabalho um porre. Honestamente, caro chefe, vai se fuder. Honestamente, eu só queria te comer. Honestamente, honestamente, a palavra “honestamente”... Eis aí, um outro problema que é o do compromisso com a verdade. Honestamente, eu estou cagando. Mas de forma não tão honesta, como havemos de convir que é o modo como funcionam as relações humanas, podemos chegar em algum tipo de consenso sobre isso. Pois então, outro problema é o consenso. O escritor quando escreve talvez parte de uma premissa própria e lá vai ele querer que o leitor concorde com ele. Agora aconteceu uma coisa engraçada: meu eu-escritor e meu eu-leitor se encontraram aqui, tomaram um chopp e chegaram a um consenso sobre o consenso: ambos concordam que eles querem mais é que tudo se foda. Eu comecei dizendo que escrever é chato. Veja só, é chato mesmo. Eu já problematizei uns três lances aqui, em poucas linhas. Tá vendo só? Escrever é um problema, vai tudo virando problema. Se os problemas fossem solúveis, talvez tudo fosse mais fácil... Mas o problema da escrita é que vai tudo meio que caindo pro psicológico e pro filosófico, onde é tudo infinitamente mais chato, mais insolúvel. É tudo mais problemático mesmo, o buraco é sempre muito mais embaixo. Por falar em buraco mais embaixo, o buraco lá embaixo é sempre um tabu pra quem escreve. Na verdade, todos os buracos lá embaixo. Na verdade mesmo, qualquer buraco. O escritor pode ser meio pudico ou meio depravado. Essa questão às vezes se apresenta como um molecote indo pela primeira vez a um puteiro. O que pode e o que não pode? As palavras “babaca” e “cacete” são quase um consenso. A merda é uma questão de contexto e algumas outras palavras ficam restritas a uma classe liberalizada, que não vê problemas em “ir se fuder”, “ir tomar no cú”, essas coisas todas. Mas essas questões são mesmo complicadas. Às vezes, o problema é menos o nome e mais a coisa propriamente dita. Prestem atenção nessas frases e vejam a que causa mais constrangimento: Frase 1: “Ela deixou que ele visse os pelinhos da sua buceta”. Ou a frase 2: “Ela deixou que ele enfiasse os dedos pela sua vagina molhada, um por um, até que colocasse a mão completa e aí, sim, se sentisse seguro, para enfiar nela o seu enorme pênis”. Essa é a questão. Ni nguém está muito preocupado se a vagina é uma buceta. Todo mundo está preocupado mesmo é com os desígnios, com as ações em cima da coisa. Ou embaixo da coisa. Ou dentro da coisa. Ou dentro até da outra coisa. A coisa. É, a coisa do escritor é ótima. Se o escritor souber usar a coisa, a gente nunca vai saber do que ele está falando e, às vezes, deixar as coisas meio veladas pode ser interessante. Até mesmo porque pode ser que o leitor goste da coisa. Porque, sei lá, acredito mesmo que gosto é que nem cu, cada um tem o seu. Aliás, tem gente que tem dois cus. Honestamente (e a palavra honestamente reitera a minha honestidade, olha só, você quase acredita nela), não tem, não tem gente que tenha dois cus. Talvez a literatura médica registre alguns casos. Mas a literatura de verdade me dá os cus de forma muito livre, de forma que, olha só, dar vida a alguém que tenha dois cus é um problema só meu. Eis aí. Posso inventar alguém que tenha dois cus. Pronto. Posso inventar. Posso mentir também, não tenho compromisso com a verdade. Posso dizer que VOCÊ tem dois cus. E agora? Agora é você aí, lendo esse texto. Se você estiver lendo este texto em voz alta, vai ficar todo mundo sabendo que você tem dois cus. Posso dizer que um dos seus cus você usa pras suas necessidades fisiológicas e o outro... tchã-rã. Tchã-rã. Eu não disse o que você faz com o outro cu. Mas olha aí, todo mundo já sabe. Não que eu tenha dito. Mas essa é a vantagem dos escritores também. Às vezes, mas só às vezes, é possível presumir a inteligência dos seus leitores, é possível forçá-los a interpretar alguns fatos exatamente da forma que você queira, ou ainda, porque não, da forma que os fatos seja mesmo. Eu agora estou presumindo que meus leitores presumem o que você faz com o seu outro cu. E a verdade é que isto é um fato. Não apenas pelo fato de estar escrito, mas olha aí, olha a sua cara de quem não sabe o que fazer com o outro cu que lhe foi dado. Você pode até não saber bem o que fazer com esse cu, mas todo mundo sabe o que você faz. Obstinação. Mais da metade do texto até agora foi falando sobre o cu, especificamente sobre o seu. O escritor pode parecer um obsessivo compulsivo às vezes, e talvez ele até mesmo seja. Na dúvida, ou na falta de presunção de culpa, a gente atribuiu esse comportamento ao eu-lírico. O eu-lírico é ótimo. O eu-lírico é a minha máscara. A máscara, ainda que me esconda, tem o formato do meu rosto. O meu eu-lírico é parte do meu ego e parte do meu alter-ego, é algo que sou e não sou. Se eu continuar por essa linha, vou acabar entrando de novo nessa discussão do chato e do não-chato. E isso seria muito chato. Eu, por autor, talvez não tenha direitos, nem você, por leitor, deveres. Quando eu voltar pro que acabei de escrever, eu vou ler de novo aquela frase: “A máscara, ainda que me esconda, tem o formato do meu rosto.” É uma frase de efeito, muito bonita, olha só. Vê? Agora escuta: “A máscara, ainda que me esconda, tem o formato do meu rosto.”. De novo: “A máscara, ainda que me esconda, tem o formato do meu rosto.” Estou aqui pensando. Quantas vezes eu escrever, é esse o número de vezes que você vai ler... “A máscara, ainda que me esconda, tem o formato do meu rosto.”. Eu podia passar mais da metade do meu texto fazendo você ler essa frase indefinidamente, até que você se canse e desista ou até que ela se grude tanto na sua memória que você sonhe com isso durante a noite. Eu, como autor, tenho poderes. Eu tenho poderes sobre você. Eu tenho muitos poderes, sou poderoso. Posso voar. É só eu dizer assim: “o autor voa.” Viu? Simples assim, três palavras. Mas não tem o efeito daquela frase que eu disse antes. Frases de efeito são ótimas. No entanto, não basta só dizer, tem que dizer e ficar repetindo, ela tem que se grudar na mente das pessoas. Um belo dia essa frase vai estar lá, nos mais altos platôs da erudição e eu vou dizer que a frase é minha, só minha. Que frase? Ah, você já esqueceu? Não, eu não vou fazer com que você a leia mais uma vez. Fica sabendo que se até agora não a tem decorada na memória, é porque você não é digno. Receio que você me odeie. Sabe? Sei lá. A gente acaba criando meio que uma relação, né? Sabe como é... Enfim, você é uma pessoa esperta e vai vê que já está acabando. Todo leitor, por mais que goste de ler, ansia pelo espaço em branco. Sei que você talvez não deva estar gostando, mas tudo bem. Eu poderia perguntar o clássico: “foi bom pra você?”, mas não sei, tenho medo da resposta. A gente só pergunta o que quer que seja respondido. Eu gostei tanto daquela minha frase, que eu até já esqueci, por sinal, que eu vou colocá-la no título. Queria saber se você gosta. É sério. É que eu só estou pensando o título agora. Mas, enfim, agora que importa? O título foi a primeira coisa que você leu e eu fiquei falando de um monte de coisa, depois fiquei falando do cu e da buceta, e depois, agora que voltei pra uma discussão mais direita, pensei no título que já não tem mais nada a ver com aquele início. Mas enfim, o título vai ser aquela frase. Mas eu queria saber a sua opinião. Mesmo. De verdade. Eu vou fazer o seguinte. Vou deixar três linhas pra você se expressar. Mas, é sério, eu quero que você se expresse mesmo. Só não te dou mais espaço, porque sabe como é, daí já entra em regime de coautoria e aí já fica tudo mais complicado. Vou deixar aqui, três linhas pra você, quero que você se expresse, ok? Pode falar de qualquer coisa que você quiser (olha como eu sou legal), mas peço por favor que não deixe as linhas em branco... Ok, valendo a partir de agora: ________________________________________________________________________________
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Bom, espero que você tenha se divertido com as linhas que lhe foram dadas. Esse era o espaço para que você me xingasse. Se você me xingou, fico feliz. Naturalmente, não por ser xingado, mas era um espaço seu. E eu sei que te encho um pouco o saco. Enfim, caríssimo interlocutor (eu ia te chamar de leitor, mas nossa relação já está bem avançadinha), eu peço de verdade que você me desculpe. Eu ia começar falando que escrever romances policiais deve ser chato, mas viu só? Acabei nem desenvolvendo a idéia. Daí, acabei caindo pra esses lados da metalinguagem, que vou te falar, eu acho chatíssimos. É chato principalmente porque é muito difícil ser original. Fica uma coisa meio ciência do método, todo mundo falando sobre o ato de falar, escrevendo sobre o ato de escrever. Chato isso! E chato por chato a gente cai numa redundância no meio do texto, de forma que por aqui me calo. Agora vai, pode ir, agora você é livre. Pode ir, é isso: FIM, acabou, agora é cada um por si. Eu só quero te dizer que foi bom pra mim também. Se te apetece, fuma um cigarro ou come uma jujuba: de qualquer forma, vai; volta pros teus afazeres de antes, vai ser feliz.

Um comentário:

Rodrigo Colpo disse...

Acho o máximo a forma como você escreve. Consegues reproduzir magistralmente a oralidade, e isso me encanta.
Achei engraçado quando sugeristes que o leitor poderia estar fazendo a leitura em voz alta, pq era esse meu caso. Lia para mim e para um amigo pq quis dividir com ele um texto que sabia de antemão que teria qualidade.
Não decepcionastes.
Forte abraço,
Rodrigo