sábado, 22 de maio de 2010
Paixões
Eu era um cara normal. Tinha meus amigos, meus estudos, minha cerveja no final de semana e umas contas pra pagar. Mas prestem atenção na história que eu vou contar.
Um dia eu me apaixonei pela Mariana. A Mariana era dessas mulheres normaizinhas, cabelos castanho-claros, olhos cor de mel, nariz fino e boca rosada. Não usava vestidos curtos nem saias apertadas, prendia os cabelos sempre do mesmo jeito e falava baixo. Tinha um quê de aeromoça e um olhar de esposa fiel; era pura graça e recato, a Mariana.
Um dia eu me apaixonei pela Fernanda. A Fernanda era uma mulher meio porra-louca, ruiva hoje e loira amanhã, e ouvia um rock só pra descontrair. A Fernanda era bissexual, e talvez até preferisse as meninas. Me contaram que ela tinha um piercing no mamilo, mas eu nunca soube se era verdade. Ouvi dizer que ela puxava um baseado e ia prumas festas moderninhas, mas eu também nunca soube; era mesmo extravagante essa menina.
Um dia eu me apaixonei pelo Pedro. O Pedro era um cara simpático e divertido. Era meio undergound, mas sem forçar a barra. Tinha lá os seus vícios pequeno-burgueses, comia quindim no café da manhã. O Pedro tinha gostos monocromáticos e uma cara de menino travesso; havia algo de mistério nele, um quê de indecifrável; interessante mesmo esse rapaz.
Um dia eu me apaixonei por um casal de japoneses. Eu os vi saindo de uma casa de swing no Jardim Botânico. Eles saíram a pé e pararam numa lanchonete pra tomar um café como se estivessem saindo de uma livraria. A minha paixão não estava em um, nem estava no outro. Eu me apaixonei pelo casal, pela unidade, por essa coisa que só existia quando os dois estavam juntos. Ademais, eu nunca soube distinguí-los.
Um dia eu me apaixonei por uma senhora cega que tocava um chocalho na esquina movimentada da Av. Rio Branco com Rua do Ouvidor. Ela devia beirar os 80 anos, uma pele enrugada do trabalho eterno. Parecia uma dessas senhoras de Minas Gerais que aparecem nos livros de arte fazendo artesanato ou dançando qualquer coisa folclórica; era tão doce essa senhora.
Um dia eu me apaixonei por um pato. Eu estava na Quinta da Boa Vista, e passou um pato que rebolava de uma maneira bastante sensual em torno da lagoa. Eram patas, penas, bico. E uma inaptidão pro nado e pro vôo, uma desesperança; mas andava e rebolava, mexia a cloaca de um lado pro outro, tinha aquela sensualidade que só os patos têm.
Um dia eu me apaixonei por uma cabra morta. Estava ali a cabra sem vida, as moscas rondando as vísceras e pousando suavemente nos pedacinhos ensanguentados dos tecidos enegrecidos, os ollhinhos que pendiam do rosto se decompondo e o sol iluminando o pasto, alheio a essas coisas todas; era meio Vidas Secas esse lance da cabra.
Um dia eu me apaixonei por um poste de luz. Depois por um vaso sanitário. Depois por uma pedra, por uma pedra que tinha no meio do caminho. Depois por uma barata agonizante. Depois por um plâncton. E por um grão de poeira grudado na vassoura. E por um incenso. E por um caco de vidro. E pela cor amarelo. E pelo número 912. E então eu me apaixonei pelo vento, pelo mar, pelo sabor do chocolate, pela cruz de Cristo, pelo parêntese que abre e pelo colchete que fecha; eu me apaixonei pela rosa em botão, pelo nitrogênio líquido, pela gravidade, pelo efêmero, pelo etéreo; eu me apaixonei pelo sobrenatural, pelo rabisco, pela coincidência e pelo não-dito.
Um dia eu era só paixão. Nada de amor, sexo, dedicação, carinho. Paixão! Eu era só paixão e mais nada. E nesse dia eu decidi me matar. Tomei essa decisão súbita por apenas um motivo: eu era só paixão, mas de todas as paixões que eu tinha, não havia uma, uma sequer, que fosse correspondida.
Agora eu sou carne putrefata, sou pele morta e sangue seco; agora eu sou água pútrida, eu sou necrochorume, sou água de adubo alimentando o lençol freático; sou o osso esnobe que restou da carne que ninguém quis; agora eu sou esse amontoado de órgãos sob a terra, eu sou essa espera e esse vácuo; eu optei por ser esse nada, ah, esse nada que eu sou que é tão tudo: porque eu agora sou Mariana, Fernanda, Pedro, japoneses, senhora do chocalho, pato, cabra morta, poste de luz e mais um pouco; eu sou um pouco de vocês todos agora, eu sou fantasma, sou assombração, sou o seu passado e a sua consciência.
Eu sou a sua última chance de se apaixonar por mim.
terça-feira, 11 de maio de 2010
Pequena elucubração lógico-matemática sobre as relações humanas e o amor
A diz para B: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
E então, como um cachorro mordendo o próprio rabo,
B diz para C: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
E então, como uma cobra provando o próprio veneno,
C diz para D: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
E então, como um ferreiro sendo ferido com o próprio ferro,
D diz para E: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
F, G, H, I, J...
Pode-se presumir que em um dado momento,
o α-ésimo elemento vai fechar o ciclo,
dizendo para A: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
Pois que dessa ciranda,
da qual todos fazemos parte,
se depreendem três grandes verdades,
absolutas, dogmáticas, universais.
1ª) Ninguém vai viver a sua vida.
2ª) Ninguém relaxa.
3ª) Ninguém nunca está.
E então, como um cachorro mordendo o próprio rabo,
B diz para C: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
E então, como uma cobra provando o próprio veneno,
C diz para D: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
E então, como um ferreiro sendo ferido com o próprio ferro,
D diz para E: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
F, G, H, I, J...
Pode-se presumir que em um dado momento,
o α-ésimo elemento vai fechar o ciclo,
dizendo para A: "Vive a sua vida, relaxa. Eu vou estar aqui."
Pois que dessa ciranda,
da qual todos fazemos parte,
se depreendem três grandes verdades,
absolutas, dogmáticas, universais.
1ª) Ninguém vai viver a sua vida.
2ª) Ninguém relaxa.
3ª) Ninguém nunca está.
domingo, 9 de maio de 2010
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