quarta-feira, 10 de junho de 2009

Verso do caderno, em 30/03/2009


Que saudade daqueles tempos nos quais eu escrevia qualquer coisa no verso da última folha do caderno e aquelas horas passavam lépidas, ligeiras, a aula sempre muito inútil do lado de lá, ali, no conhecimento projetado à frente com tanta intenção acreditando ainda que os alunos dos cursos superiores são diferentes daqueles do colégio e vão estar muito preocupados em aprender aquilo que se dá, mas na verdade, no fundo mesmo, ninguém está nem aí, talvez porque as aulas sejam mesmo desinteressantes ou porque as pessoas estão preocupadas demais com o futebol de amanhã e a menina de saia curta que passou. Mas a verdade é que os tempos idos são os mesmos de agora, salvo algumas pequenas mudanças de contexto, mas estão aí o trabalho, as mesmas pessoas gelatinosas que povoam o espaço, os mesmos traços, as mesmas letras; ainda essas pessoas presas nessas vidas de pão e circo e que vão casar e ter filhos e ser felizes para sempre, e tanto faz que se mudem os rostos e os nomes, não importa, é esse mesmo espírito vazio e essa falta de cultura que faz com que não se possam distinguir os medos de agir, de pensar e de ser, uniformíssimos. Mas hoje, apesar de tudo, já há muita coisa sólida para além de toda falta de coragem e para além de todo conformismo: há estrelas no céu. Há liberdade e há verdade. Não há medo, ou quase. Não há o eterno, não há o pra sempre. Não há o incurável, não há o crônico, há só o presente, e que presente. Há tanta coisa dentro para além do que se vê e para além do que se pensa, mas agora já não há essa necessidade torpe e crônica do travar-se, não há fronteiras para o corpo, não há o pensamento paralítico. Porque a coisa crônica não passa de um monte de letras no papel; e é quase conto e, sendo conto, já é quase poesia; e sendo poesia já é quase bela, sem que haja meio de fugir da beleza porque ela está em todo lugar; para onde quer que se olhe lá está a beleza, para além do aparente e para além do turvo, para além do próprio belo. Essa necessidade de transcender, de querer acreditar que há algo que transcende e que transcende de verdade já é tão passado, já é tão anteontem, já é tão cheia de ilusão e de mentira que já não faz mais sentido; a libertação, a liberdade, nada disso é uma questão transcendental, é uma questão de aqui e agora, pura e simplesmente, de se livrar dos medos e de tudo que não presta porque, olha, ser feliz é simples, ou ainda que não seja, vá lá, mas é tanta beleza, tanta beleza desperdiçada nos raios de sol, na cidade que brilha aqui, na cidade que brilha do lado de lá, na cidade poluída, pequena, industrial, megalopolizada, cinza,turva, limpa, desacreditada, segura, violenta, luxuosa, popular, hospitaleira, nessa cidade na qual nada transcende, na qual as coisas são harmônicas por si mesmas ou não, na outra cidade também, em qualquer cidade, em todas as cidades onde há prédios e essa necessidade vital que é mais que existir, que é ainda mais que contemplar e mais que estar, tudo tão real, tudo tão ao vivo e pleno de sentido em si mesmo e tudo belo, belo, insuportavelmente belo. E essa beleza já não fica encalacrada numa redoma de sinapses desconexas, já se expande para além do limite do pensamento, já se deixa entrever nuns olhos que brilham e num sorriso desmedido, real, sincero, que não transcende e que não se propõe a transcender nada, não se propõe a ser qualquer outra coisa que não um sorriso real e sincero, ocupando um lugar no espaço, um lugar cartesiano, ou ainda que não, mas um lugar real, puro, sólido, concreto. As coisas no mundo emanam uma vontade natural de essência, ou é preciso que emanem, ou não, mas é o que se vê; no fundo, são as coisas sendo, existindo, ocupando o espaço, um átomo, um lápis, uma cidade, uma necessidade inexpugnável de ser e de seguir sendo. O mundo, ou ainda que eu, através dos olhos do mundo, sorri, sorri porque acha graça de si mesmo quando tropeça ou quando chove, ou ainda quando morre a flor e quando nasce o rato até que o rato morra e que outra flor nasça, sem que nada transcenda, mas que tudo seja riso, ainda, de uma forma ou de outra, de preferência largo, mas às vezes discreto, entre os dentes, mas sempre sincero e sempre riso, porque as coisas são e vão continuar sendo, desta forma ou de outra, flores e ratos nascendo e morrendo o tempo inteiro, as cidades crescendo e existindo, as pessoas remoendo suas vidas, chorando suas mágoas, comprando carros, casando, tendo filhos, fingindo que lêem, achando que podem e achando que sabem, derrubando muros, pulando cercas, tramando teias e um riso honesto por cima de tudo isso não pela mudança, pela revolução ou pela transcendência, mas pelo simples e pelo cotidiano, pela beleza e pelo nada, pela aula que segue fluida enquanto escrevo.

2 comentários:

Anônimo disse...

vc é tão.. tão.. tão intenso.



obs: Isso é positivo.

B. Pina disse...

...quanta leveza em tanta beleza e imagine, na última página do caderno.
Reforço o comentário acima (depois desse, acho que ficará abaixo, será? ptsss...)
Eu gosto desse olhar imenso sobre as coisas da vida sabe, um dia me disseram que a beleza da vida tá no cotidiano, tá no que ninguém nunca repara, porque é efêmero e corriqueiro.
seu blog é daqueles que você lê o primeiro post e não consegue mais parar de ler. Muito bom, mesmo.