quinta-feira, 2 de maio de 2024

Dias Perfeitos - um libelo existencialista


“Dias Perfeitos” é um filme lindo. Não há outra palavra para descrevê-lo. A beleza está justamente na proposta de ser um filme singelo, que retrata os acontecimentos do cotidiano de um limpador de banheiros públicos em uma das maiores megalópoles do planeta.

Não há uma grande reviravolta, um grande acontecimento. O filme não se estrutura em cima de uma morte, um grande amor, uma separação repentina. É uma história sobre o encanto mesmo da vida, de encontrar a beleza das coisas no dia-a-dia. Penso se tratar de um libelo existencialista: a preocupação com a verdade (e com a beleza) das coisas do mundo: um retorno às coisas mesmas.

Um de seus traços fundamentais é a presença integral do protagonista nas cenas cotidianas em que ele se coloca. O protagonista se implica em tudo o que faz. Ele está ali, de verdade, na inteireza do aqui-agora, seja limpando banheiros, conversando com seus funcionários, ou organizando suas fotos. Sua atenção está sempre direcionada ao presente, ao que ele se dedica em fazer.

A presença e a atenção são algo que parece termos perdido nas sucessivas revoluções digitais a que fomos expostos. Estamos conversando com alguém olhando o celular, lavando louça ouvindo podcast, curtindo uma festa olhando, pelo instagram, a festa em que o outro amigo está, e que perdemos. Parece que não estamos em lugar algum nunca, e estamos também em todos os lugares ao mesmo tempo. Nossa presença fragmentada no mundo não é uma novidade para ninguém, mas o filme escancara isso de uma forma que nos faz pensar: “o que fazemos da nossa própria vida, afinal?” É bonito ver alguém que está de fato onde está, e essa reflexão nos toma de assalto, nos fazendo olhar, em retorno, para nossas próprias vidas.

Outro ponto de interesse: a materialidade das coisas. Vivemos em um mundo em que parece estar tudo nas nuvens: tudo é digital, online, guardado em repositórios obscuros que nos fazem apenas acessar, e não de fato possuir aquilo que, na verdade, nos pertence. As fotos impressas que ele guarda e data em sua própria casa nos parece saudosista, mas as fitas k7 soam quase folclóricas. Parece besta guardar essas coisas quando há uma ética e uma estética minimalista que teimam em reger o mundo, dizendo que não precisamos de nada disso, e que o mundo em breve se torna todo imaterial. Mas, a contrapelo desse projeto (que filme bom!), o protagonista se vê todos os dias limpando banheiros. Todos os dias (ou quase) as pessoas cagam. Enquanto formos humanos, demasiado humanos, não haverá o cocô virtual. É real, o mundo real é feito de matéria, de coisas físicas, com densidade, palpáveis, que terão de ser processadas sob a forma de trabalho por outros seres humanos (e eventualmente não-humanos). Na pandemia, ficou nítida essa percepção. Limpar banheiros é um trabalho essencial, e todo o maquinário digital quer nos fazer crer que vamos resolver nossas vidas com Netflix e drives compartilhados (que, creiam: dependem de telas, teclados, chips, e muita matéria para existir; o virtual só tem condição e possibilidade de existência na fisicalidade mesma do mundo).

E aí, vemos que não é besta guardar fitas k7. Ou fotografias. Há quem guarde livros, quem junte copinhos de cachaça, quem esconda, nos seus arquivos, cartas de amor. A materialidade do que guardamos é nosso rastro de presença no mundo. É evidente que ponderamos o volume desse rastro em oposição à disponibilidade de espaço físico e da produção de coisas. Vivemos em apartamentos cada vez menores, em um mundo com capacidade limitada de recursos naturais. Mas é importante lembrar que existimos também por meio das nossas coisas. As nossas coisas, mais do que isso, as nossas coisinhas, é que dão ao mundo a notícia de nossa existência.

Mas não só elas: também nossas relações povoam o mundo. E essas relações se dão no território. Junto à ideia do minimalismo, advém também a idéia de uma desterritorialização. O hype é ser de lugar nenhum. Mas, para a maioria de nós, o mundo habitado é um espaço pequeno. Costuma se resumir a uma única cidade, e dentro dela, a um pequeno conjunto de bairros: casa, trabalho, estudos. Nossa circulação no diminuto território que habitamos também constitui esse território. Estamos no território, mas ele também se faz a partir da nossa presença. Por isso, são muito bonitas as cenas em que ele vai ao restaurante de sempre, e a dona sabe o pedido que ele costuma fazer. Ou quando ele vê sempre o mesmo mendigo, no mesmo lugar (até que o vê em outro, dando noção de um certo esfacelamento do mundo tal como o conhecemos). Mas a grande marca da relação com o território é o jogo-da-velha. Ali, Win Wenders retirou a presença do outro-que-interage para marcar justamente esse ponto: a relação com o território. O jogo-da-velha não é outra coisa senão isto: uma relação lúdica com nosso espaço de circulação, de vivência. A convivialidade, o civismo das relações cotidianas, passa por esse ato de reconhecer o outro, de saber que há algo da vida que se compartilha neste lugar.

Por último, o encanto. Komorebi, essa palavra japonesa que define o momento fugaz em que o sol cruza a copa das árvores e ilumina o mundo, dá o tom do filme. Há uma cena bem curta após os créditos que mostra esse conceito. São essas as cenas que o protagonista tenta reter nas fotografias que imprime. A capacidade de se encantar é algo que nos é paulatinamente roubada desde que saímos da infância. É um processo contínuo e que dura uma vida inteira, mas reversível, quando opomos a ele uma resistência sincera. Parte relevante de se encantar (ou de se apaixonar, ou de se surpreender com as coisas da vida etc) é querer se encantar. Todos os dias o mundo dá provas de sua imensa beleza, que se derrama nos komorebi, no pôr-do-sol, no barulho do vento. Todos os dias. O encanto é, existe e está, mas só para quem se dispõe a querê-lo.

Os dias são perfeitos, mesmo nas suas pequenas imperfeições, ou talvez justamente por causa delas. E escoam, como num fluxo, em direção à morte (como alguns poderiam dizer), mas, sobretudo, em direção aos novos e futuros encantos. O encanto do mundo se auto-engendra.

A cena final, não preciso dizer, é digna de todos os prêmios de atuação que poderiam ser concedidos a alguém. E a trilha sonora nos embala para muitos dias depois de termos visto essa obra-prima de Win Wenders.

“Dias Perfeitos” é um filme denso, profundo, e ao mesmo tempo leve, sem cair em nenhuma auto-ajuda barata. Ele nos entrega um manifesto, não do bem-viver, mas da liberdade e da beleza do que somos capazes de fazer de nossas próprias vidas, a partir dos nossos desejos e dos recursos de que dispomos.