Não há uma grande reviravolta, um grande acontecimento. O filme não se estrutura em cima de uma morte, um grande amor, uma separação repentina. É uma história sobre o encanto mesmo da vida, de encontrar a beleza das coisas no dia-a-dia. Penso se tratar de um libelo existencialista: a preocupação com a verdade (e com a beleza) das coisas do mundo: um retorno às coisas mesmas.
Um de seus traços fundamentais é a presença integral do protagonista nas cenas cotidianas em que ele se coloca. O protagonista se implica em tudo o que faz. Ele está ali, de verdade, na inteireza do aqui-agora, seja limpando banheiros, conversando com seus funcionários, ou organizando suas fotos. Sua atenção está sempre direcionada ao presente, ao que ele se dedica em fazer.
A presença e a atenção são algo que parece termos perdido nas sucessivas revoluções digitais a que fomos expostos. Estamos conversando com alguém olhando o celular, lavando louça ouvindo podcast, curtindo uma festa olhando, pelo instagram, a festa em que o outro amigo está, e que perdemos. Parece que não estamos em lugar algum nunca, e estamos também em todos os lugares ao mesmo tempo. Nossa presença fragmentada no mundo não é uma novidade para ninguém, mas o filme escancara isso de uma forma que nos faz pensar: “o que fazemos da nossa própria vida, afinal?” É bonito ver alguém que está de fato onde está, e essa reflexão nos toma de assalto, nos fazendo olhar, em retorno, para nossas próprias vidas.
Outro ponto de interesse: a materialidade das coisas. Vivemos em um mundo em que parece estar tudo nas nuvens: tudo é digital, online, guardado em repositórios obscuros que nos fazem apenas acessar, e não de fato possuir aquilo que, na verdade, nos pertence. As fotos impressas que ele guarda e data em sua própria casa nos parece saudosista, mas as fitas k7 soam quase folclóricas. Parece besta guardar essas coisas quando há uma ética e uma estética minimalista que teimam em reger o mundo, dizendo que não precisamos de nada disso, e que o mundo em breve se torna todo imaterial. Mas, a contrapelo desse projeto (que filme bom!), o protagonista se vê todos os dias limpando banheiros. Todos os dias (ou quase) as pessoas cagam. Enquanto formos humanos, demasiado humanos, não haverá o cocô virtual. É real, o mundo real é feito de matéria, de coisas físicas, com densidade, palpáveis, que terão de ser processadas sob a forma de trabalho por outros seres humanos (e eventualmente não-humanos). Na pandemia, ficou nítida essa percepção. Limpar banheiros é um trabalho essencial, e todo o maquinário digital quer nos fazer crer que vamos resolver nossas vidas com Netflix e drives compartilhados (que, creiam: dependem de telas, teclados, chips, e muita matéria para existir; o virtual só tem condição e possibilidade de existência na fisicalidade mesma do mundo).
E aí, vemos que não é besta guardar fitas k7. Ou fotografias. Há quem guarde livros, quem junte copinhos de cachaça, quem esconda, nos seus arquivos, cartas de amor. A materialidade do que guardamos é nosso rastro de presença no mundo. É evidente que ponderamos o volume desse rastro em oposição à disponibilidade de espaço físico e da produção de coisas. Vivemos em apartamentos cada vez menores, em um mundo com capacidade limitada de recursos naturais. Mas é importante lembrar que existimos também por meio das nossas coisas. As nossas coisas, mais do que isso, as nossas coisinhas, é que dão ao mundo a notícia de nossa existência.
Mas não só elas: também nossas relações povoam o mundo. E essas relações se dão no território. Junto à ideia do minimalismo, advém também a idéia de uma desterritorialização. O hype é ser de lugar nenhum. Mas, para a maioria de nós, o mundo habitado é um espaço pequeno. Costuma se resumir a uma única cidade, e dentro dela, a um pequeno conjunto de bairros: casa, trabalho, estudos. Nossa circulação no diminuto território que habitamos também constitui esse território. Estamos no território, mas ele também se faz a partir da nossa presença. Por isso, são muito bonitas as cenas em que ele vai ao restaurante de sempre, e a dona sabe o pedido que ele costuma fazer. Ou quando ele vê sempre o mesmo mendigo, no mesmo lugar (até que o vê em outro, dando noção de um certo esfacelamento do mundo tal como o conhecemos). Mas a grande marca da relação com o território é o jogo-da-velha. Ali, Win Wenders retirou a presença do outro-que-interage para marcar justamente esse ponto: a relação com o território. O jogo-da-velha não é outra coisa senão isto: uma relação lúdica com nosso espaço de circulação, de vivência. A convivialidade, o civismo das relações cotidianas, passa por esse ato de reconhecer o outro, de saber que há algo da vida que se compartilha neste lugar.
Por último, o encanto. Komorebi, essa palavra japonesa que define o momento fugaz em que o sol cruza a copa das árvores e ilumina o mundo, dá o tom do filme. Há uma cena bem curta após os créditos que mostra esse conceito. São essas as cenas que o protagonista tenta reter nas fotografias que imprime. A capacidade de se encantar é algo que nos é paulatinamente roubada desde que saímos da infância. É um processo contínuo e que dura uma vida inteira, mas reversível, quando opomos a ele uma resistência sincera. Parte relevante de se encantar (ou de se apaixonar, ou de se surpreender com as coisas da vida etc) é querer se encantar. Todos os dias o mundo dá provas de sua imensa beleza, que se derrama nos komorebi, no pôr-do-sol, no barulho do vento. Todos os dias. O encanto é, existe e está, mas só para quem se dispõe a querê-lo.
Os dias são perfeitos, mesmo nas suas pequenas imperfeições, ou talvez justamente por causa delas. E escoam, como num fluxo, em direção à morte (como alguns poderiam dizer), mas, sobretudo, em direção aos novos e futuros encantos. O encanto do mundo se auto-engendra.
A cena final, não preciso dizer, é digna de todos os prêmios de atuação que poderiam ser concedidos a alguém. E a trilha sonora nos embala para muitos dias depois de termos visto essa obra-prima de Win Wenders.
“Dias Perfeitos” é um filme denso, profundo, e ao mesmo tempo leve, sem cair em nenhuma auto-ajuda barata. Ele nos entrega um manifesto, não do bem-viver, mas da liberdade e da beleza do que somos capazes de fazer de nossas próprias vidas, a partir dos nossos desejos e dos recursos de que dispomos.