Estivesse vivo, Walter Benjamin
teria escrito um livro chamado “A linguagem na era de sua reprodutibilidade
técnica”.
Já é um clichê dizer que a
inteligência artificial chegou de roldão, e que vai mudar inequivocamente a
forma como pensamos, trabalhamos e nos divertimos. Isto posto, a pergunta que
urge fazermos, e que devemos tentar responder é: o que fazer?
Não é a primeira vez que o ser
humano é superado, e olhar paras as experiências pregressas talvez nos ajude a
pensar um pouco melhor na questão.
Na Revolução Industrial, vieram
as máquinas, que conseguiam fazer muito mais do que um ser humano em termos de
movimento, pensando em um processo produtivo. De certa forma, as máquinas
chegam para substituir o braço humano, e a escala humana de produção foi
superada. Uma coisa que era feita em dias, passou a ser feita em minutos. Uma
máquina de fiar passou a coser uma camisa rapidamente, de forma que para
produzir uma roupa, hoje, o parâmetro não é o quanto de tempo uma pessoa leva
tecendo ou bordando, mas em quanto tempo uma máquina consegue fazê-lo.
É importante colocar aqui que as
máquinas não substituíram de todo o trabalho do braço humano, que
continuaram a ocupar os galpões das fábricas com sua força de trabalho. Na
engenharia de produção, é comum que se fale sobre “o sistema homem-máquina”,
que é a operação conjunta desses dois entes, em um mesmo processo ou atividade,
que atuam de forma integrada no processo produtivo.
Como diria Marx, o trabalhador
ficou alienado de seu processo produtivo, mas não parou de trabalhar; ao menos
não na Revolução Industrial. Com o tempo, o desemprego estrutural começou a
afetar a população, que foi tendo seu emprego substituído pela máquinas e pelas
tecnologias, em um processo que segue em curso até hoje nos processos de
desmaterialização da economia e do avanço da indústria 4.0.
Diferente da Revolução
Industrial, que propôs a superação do braço humano, nas artes, o que vimos foi
a busca por uma superação do olho e, de certa maneira, das mãos.
Durante muito tempo, a pintura
foi uma forma de apreensão da realidade. O artista olhava para algo (uma
pessoa, uma paisagem) e o reproduzia na tela em branco. Seu valor era tão maior
quanto mais fidedignamente ele conseguia reproduzir, na tela, a imagem
observada.
Quando chega a fotografia (e
também o cinema, que reproduz, na tela, os movimentos que a vida é capaz de
gerar), as artes plásticas não morrem. E isso acontece por vários motivos.
O primeiro é que a fotografia da
pintura não é uma pintura: ela segue sendo uma fotografia. E, este é o ponto
que eu gostaria de chegar: a arte segue por outros caminhos.
Se até a era de sua
reprodutibilidade técnica (eu não li o livro do Benjamin, ok? talvez eu devesse
:P), o papel da pintura era muitas vezes o de representar a realidade, como se
vê na grande quantidade de retratos e de paisagens pré-fotografia, ou, o de
representar o belo, como nas pinturas religiosas do Renascimento, que se
preocupavam com a forma humana, com as proporções adequadas na construção das
cenas, com a simetria etc, etc, rapidamente as artes visuais encontram um outro
código para si.
Agora que a realidade pode ser
facilmente capturada com as lentes fotográficas, e, se nessas fotografias,
somos capazes também de buscar e de construir o belo, são justamente essa
beleza e essa realidade que entram em questão. Essa foi uma das razões pelas
quais o século XX viu movimentos fortes de ruptura com a realidade
(abstracionismo, surrealismo) e com a noção de beleza (minimalismo, pop art e, de certa forma, toda a arte
contemporânea pós-Duchamps).
Essas foram as saídas que
encontramos para continuarmos com a existência da arte. Falo aqui das artes
visuais, mas a arte toda apresentou esta ruptura. Deixou de ter valor a
reprodução fidedigna da realidade: o código que passa a vigorar é outro.
Na produção industrial, o que
vemos é um processo de natureza semelhante, mas com suas especificidades
próprias. Se a industrialização tornou tudo fácil de obter e produzir, o que
fizemos foi mudar nossos parâmetros para querer e desejar outras coisas. Por
isso, nunca esteve tão em alta entre nós o handcrafted,
o artesanal, o feito à mão.
Somos capazes de produzir
fermentos que fazem o pão crescer em meia hora, mas estamos dispostos a pagar
mais pelo pão de fermentação lenta, que fica 48h ou mais curtindo suas
leveduras. Temos uma miríade de insumos químicos agrícolas para produzir
alimentos de forma rápida e com frutos mais “bonitos”, mas estamos dispostos a
pagar mais caro pela alimentação orgânica, etc, etc.
Esses dois exemplos estão aí para
mostrar que a humanidade, em vez de competir com a tecnologia, é capaz de promover
uma espécie de retorno à escala humana caso queira, estando disposta a
pagar por isso.
Trazendo essa discussão para o
caso da Inteligência artificial, que possui uma série de interfaces mas que se
materializa mais efetivamente através do chatGPT, o que penso é que
encontraremos um caminho.
Esse caminho não passará pela
competição com a máquina, nos critérios de eficácia e precisão que ela
apresenta, porque certamente perderemos.
Ao contrário, acho que o nosso
modo de lidar com a inteligência artificial passa pela valorização do desvio.
Ainda que o Chat GPT seja capaz
de fazer corpo mole e de mentir deliberadamente caso não saiba responder a
algum questionamento, penso que é mesmo na dimensão mais humana do desvio que
nos sobrepujaremos à inteligência artificial, com destaque para duas de suas
faces: o erro e o fracasso.
O erro é a marca humana na
trama da técnica. Só o ser humano é capaz de produzir o erro (tomado aqui
como aquele que ocorre de maneira não-intencional). Na numismática, cada moeda
corrente vale exatamente o seu preço de face. As que possuem erros de cunhagem,
contudo, alcançam valores muito mais altos.
O futuro humano será um grande
catálogo de produtos com pequenos defeitos: a avaria como garantidora da mão e
do pensamento humano, as imperfeições textuais, a pontuação, desordenada, com,
pequenos erros, letras em dupplicidade, e o que mais o ser humano for capaz de
não atingir.
Nesse sentido, o acúmulo de erros
se traduz como fracasso, e este vem a ser outra característica humana,
demasiado humana.
Se a máquina não fracassará, é o
sucesso do fracasso que será responsável por nos reconectar à nossa própria
natureza, ao nosso próprio tamanho, à dimensão humana que já se perdeu há mais
de um século com os arranha-céus e que agora se afunda ainda mais com a
possibilidade de que as máquinas falem como nós.
O fracasso como paradigma só faz
sentido porque as máquinas não perdem e não fracassam (e, convenhamos, também
não obtêm sucesso, uma vez que sucesso e fracasso são medidas subjetivas de
adequação da realidade em função das expectativas que as máquinas, apesar de
inteligentes, não são capazes de ter).
Essa dimensão do fracasso retoma
um pouco a discussão que tivemos acima sobre a arte porque, da mesma forma que
os parâmetros de pensamento e avaliação sobre as artes mudaram em função de sua
reprodutibilidade técnica, também será necessário que mudemos a perspectiva
sobre as funções positivas ou negativas do sucesso e do fracasso para colocar
o ser humano novamente na vanguarda de si.
Dessa forma, o que faço aqui
nesse texto é recuperar a noção de experiência do sujeito que parece ter
se perdido na vida prática, mas sobre a qual há bastante tempo já se fala.
Retomo, portanto, o belo ensaio de Jorge Larrosa Bondía, intitulado “Notas
sobre a experiência e o saber da experiência”, no qual ele nos diz: “o que quero apontar aqui é que uma
sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a
experiência é impossível.”. No mesmo texto, Bondía também define o conceito
de experiência: “A experiência é o que
nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo
tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está
organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já
observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se
passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.”
Curioso como o ensaio de Larrosa
Bondía evoca um texto de Benjamin, que é o autor com o qual começamos esse
nosso texto aqui. Quando digo que não li “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, penso que deveria tê-lo feito.
A um só tempo a experiência de
não ter querido / podido / conseguido fazer essa leitura traz a mim algum grau
de fracasso, e o fracasso é a argamassa com a qual construiremos o futuro.
Isso pode ter me levado a erros conceituais também nessa construção textual,
mas o erro é o que nos humaniza.
Por fim, o ChatGPT acirra em
muita medida essa perda de experiência no mundo contemporâneo (que é o que nos
faz, a um só tempo, valorizar o artesanal e reinventar a arte) ao ponto de nos
questionarmos se se trata mesmo de uma diferença de grau ou de natureza em
relação ao que já acontecia antes.
Entretanto, ainda que ele possa
escrever por nós, ele jamais será capaz de ler por nós. O que devemos fazer,
então, talvez seja isso: ler.
Vamos começar por Walter
Benjamin, com “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Como
devemos fazer isso? Ora, da maneira mais humana possível: de forma errática,
desprogramada, intermitente, interrompida e inconclusiva.