Fui no último final de semana à
festa Vaca Profana, no Circo Crescer e Viver. Ele fica na Praça Onze, em frente
à estação de metrô. Tão logo cheguei e adentrei o espaço, tive um sensação de
familiaridade e espanto. Aquele era o ‘meu circo’. O lugar em que até os quatro
anos de idade frequentei com alguma regularidade, e cujas lembranças estavam guardadas
em algum lugar bem profundo, quase mofadas. Mas morei no Centro da cidade, no Bairro
de Fátima, e frequentava muito aquele lugar.
Sim, mudaram a lona, a estrutura
da arquibancada, o entorno; quase nada havia ali que lembrasse o antigo circo. Talvez
nem eu mesmo me lembrasse ao certo. Havia, contudo, alguma coisa naquele lugar
que remetia à criança que fui, à minha infância, aos quatro anos de idade em
que eu já me percebia um pouco desencontrado no mundo, gauche na vida.
Toda essa memória foi puxada por
um evento de que também não me lembro muito, mas que minha mãe sempre conta. Eu
tinha quatro anos, ela estava fazendo aniversário e grávida da minha irmã, com
oito meses. Em algum momento da festa eu insistia para que alguém me levasse ao
‘meu circo’. Tanto pedi e tanto perturbei as pessoas que, em dado momento,
minha madrinha disse ‘Ai garoto, vai sozinho então.’ Sem entender as ironias de gente grande, acatei
a solução. Sorrateiramente, desci as escadas, cruzei a portaria do prédio, dei
um bom dia ao porteiro e segui, sabendo bem para onde ia, em direção ao circo.
Minha mãe conta que em algum momento
notou que eu não estava mais na festa, e ao conversar com minha madrinha, percebeu
que eu podia ter saído de casa. Desceu as escadas do prédio, grávida e
assustada e, ao perguntar para o porteiro sobre o meu paradeiro, foi informada
de que eu havia passado pela portaria do prédio e saído à rua. Tomou a direção
do circo e finalmente me encontrou, dois quarteirões depois. Fiquei um pouco
surpreso com o susto da minha mãe, apenas tinha acatado uma sugestão e feito o
que achei que deveria: ir ao circo, sozinho, sem esperar por alguém que pudesse
me levar.
Quase trinta anos se passaram e,
no meio da madrugada do último final de semana, sob a lona do circo da praça
onze (outro e o mesmo), fui tomado por essa lembrança e assaltado por uma perturbadora
indagação. Se algo ainda em mim permanece o menino de quatro anos que decide ir
ao circo por conta própria, onde foi parar essa segurança? Que fiz eu desta audácia?
Perturbado um pouco por esses
questionamentos e por essas lembranças, e sóbrio demais para curtir uma festa
cuja música não empolgava, fui embora para casa cedo, antes das duas da manhã.
Pensei em escrever, mas logo dormi: só consegui fazê-lo alguns dias depois, reconstruindo
com esmero esse passado algo esgarçado, que encontrou seus próprios meios de se
impor e de dizer.