domingo, 22 de julho de 2018

Meu circo




Fui no último final de semana à festa Vaca Profana, no Circo Crescer e Viver. Ele fica na Praça Onze, em frente à estação de metrô. Tão logo cheguei e adentrei o espaço, tive um sensação de familiaridade e espanto. Aquele era o ‘meu circo’. O lugar em que até os quatro anos de idade frequentei com alguma regularidade, e cujas lembranças estavam guardadas em algum lugar bem profundo, quase mofadas. Mas morei no Centro da cidade, no Bairro de Fátima, e frequentava muito aquele lugar.

Sim, mudaram a lona, a estrutura da arquibancada, o entorno; quase nada havia ali que lembrasse o antigo circo. Talvez nem eu mesmo me lembrasse ao certo. Havia, contudo, alguma coisa naquele lugar que remetia à criança que fui, à minha infância, aos quatro anos de idade em que eu já me percebia um pouco desencontrado no mundo, gauche na vida.

Toda essa memória foi puxada por um evento de que também não me lembro muito, mas que minha mãe sempre conta. Eu tinha quatro anos, ela estava fazendo aniversário e grávida da minha irmã, com oito meses. Em algum momento da festa eu insistia para que alguém me levasse ao ‘meu circo’. Tanto pedi e tanto perturbei as pessoas que, em dado momento, minha madrinha disse ‘Ai garoto, vai sozinho então.’  Sem entender as ironias de gente grande, acatei a solução. Sorrateiramente, desci as escadas, cruzei a portaria do prédio, dei um bom dia ao porteiro e segui, sabendo bem para onde ia, em direção ao circo.

Minha mãe conta que em algum momento notou que eu não estava mais na festa, e ao conversar com minha madrinha, percebeu que eu podia ter saído de casa. Desceu as escadas do prédio, grávida e assustada e, ao perguntar para o porteiro sobre o meu paradeiro, foi informada de que eu havia passado pela portaria do prédio e saído à rua. Tomou a direção do circo e finalmente me encontrou, dois quarteirões depois. Fiquei um pouco surpreso com o susto da minha mãe, apenas tinha acatado uma sugestão e feito o que achei que deveria: ir ao circo, sozinho, sem esperar por alguém que pudesse me levar.

Quase trinta anos se passaram e, no meio da madrugada do último final de semana, sob a lona do circo da praça onze (outro e o mesmo), fui tomado por essa lembrança e assaltado por uma perturbadora indagação. Se algo ainda em mim permanece o menino de quatro anos que decide ir ao circo por conta própria, onde foi parar essa segurança? Que fiz eu desta audácia?

Perturbado um pouco por esses questionamentos e por essas lembranças, e sóbrio demais para curtir uma festa cuja música não empolgava, fui embora para casa cedo, antes das duas da manhã. Pensei em escrever, mas logo dormi: só consegui fazê-lo alguns dias depois, reconstruindo com esmero esse passado algo esgarçado, que encontrou seus próprios meios de se impor e de dizer.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

O Rei da Vela


Acabo de voltar da última sessão da peça ‘O rei da Vela’, dirigida por José Celso Martinez e encenada na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca.

Em primeiro lugar, devo dizer que, para quem não está no eixo Zona Oeste, a Cidade das Artes é um local cuja viagem vale a pena. O lugar é lindo, a arquitetura é monumental e agradável, a acústica da sala de teatro é irretorquível (havia um evento de cerveja artesanal no vão livre do espaço, imperceptível para quem se mantinha dentro da sala). Não bastasse isso, fui em ótima companhia.

Foi minha primeira experiência com o teatro de José Celso Martinez, esse monstro sagrado do teatro brasileiro. Mesmo velhinho, ele nos brindou com sua presença atuando no palco, e também com um ótimo discurso ao final do espetáculo (que, como já dito, coincidiu com o encerramento da turnê carioca).

O texto, escrito por Oswald de Andrade, é modernista e antropofágico. A direção contribuiu para deixá-lo ainda mais doido.

Nas quatro horas de peça, com dois intervalos, foi contada a história do anti-herói, o rei da vela. Espécie de messias do atraso, o rei da vela é alguém que ganha tão mais quanto o povo perde. Ele tem a face do capitalista, do moralista, do lobista, do despachante.

A caracterização dos personagens foi adaptada para dar uma contemporaneidade às cenas, de maneira que aparecem vários elementos/arquétipos com atuação na política dos dias de hoje: o militar bronco e odioso, o gringo estadunidense, o oprimido, o índio, o feitor.

Há vários méritos na peça, e não é à toa que ela vem sendo um sucesso de público e de crítica. Escrachando a vida política brasileira, Zé Celso realiza uma montagem que encontra forte ressonância no público.

E é aí, a meu ver, que a peça perde. Resvalando muitas vezes para alguns clichês dos quais o público se sente parte, tudo acaba por cair num jogo fácil de dar a isca certeira aos que têm fome de política.
Quando digo fácil, quero dizer que o público que foi à peça, uma burguesia carioca intelectualizada de classe média identificada com os ideais da esquerda, aplaude sem sobressaltos um elenco que incita diretamente na plateia gritos de ‘Lula livre’, ‘Marielle presente’, etc...

Ao mostrar o discurso do capitalismo de maneira rasgada, apesar das nuances e camadas criadas pela direção, o espetáculo resvala no panfleto e no maniqueísmo.

Nesse sentido, minha principal crítica é ‘ter gostado demais’ da peça. Sinto que fui contemplado demais politicamente, que a peça disse o que eu gostaria de ouvir e/ou o que já tenho de antemão. Só que eu vou ao teatro para ser incomodado. E senti falta, sinceramente, de um conflito instaurado, de que minhas opiniões titubeassem, de que houvesse mais dúvida e menos grito de guerra.

Jogando contra o maniqueísmo maior, um dos elementos que colabora para esse ponto de vista mais dúbio é a personagem Heloísa, uma lésbica futurista que é oprimida por gênero e orientação sexual, mas opressora por riqueza material.

Outro ponto alto da peça é a introdução, no primeiro ato, da música ‘Envolvimento’, uma composição de MC Loma e as Gêmeas Lacração. Num rompante, quando um dos personagens fala sobre a tradição no Brasil, começa a tocar ‘Sento, sento, sento, sento, sento e quico devagar. Vou quicar e rebolar, vou quicar e rebolar.’

O funk de MC Loma e as Gêmeas Lacração é uma das mais novas expressões do kitsch brasileiro. E, diferente de todo discurso empolado sobre o capitalismo, a burguesia, os bolcheviques, e também diferente de toda sátira política dos dias atuais com os nomes dos políticos levemente alterados, ‘Envolvimento’ não teve o aplauso do público.

O funk, naquele teatro de intelectuais, foi uma das poucas coisas que parece ter criado algum incômodo na plateia, ainda que leve.

O incômodo contra o uníssono.

Mc Loma e as Gêmeas Lacração, na minha opinião, é o mais verdadeiro desbunde, a mais violenta das afrontas apresentadas por ‘O rei da vela’ (não ao establishment político, mas à plateia). É ali que está o teatro de Zé Celso.