Sou um brasileiro típico. Tenho a
cara de todos os lugares e de lugar nenhum. Dessa forma, é muito fácil apontar
para mim e dizer que pareço um indiano, um árabe, um boliviano, um egípcio. Sou
fruto da mais profunda miscigenação brasileira. Sou tão profundamente
brasileiro que tenho uma ancestralidade insondável: meus pais nasceram aqui,
meus avós nasceram aqui. Dos meus bisavós, há uma memória remota, onde a
memória e a vontade se confundem de forma bastante ardilosa: negros
escravizados da África, índios, colonos antigos estabelecidos nas Minas Gerais
e na Bahia, pretos forros, alguém remotamente português, mouros: ninguém sabe
ao certo. Na minha família, somos todos frutos dessa terra chamada Brasil.
Tenho dois irmãos de mesmo pai e
mesma mãe. No entanto, a genética, esse jogo de dados, fez com que nascêssemos
todos com a mesma cara, porém com cores diferentes. Sou o mais preto dos três.
Minha irmã é um pouco mais clara e meu irmão já bem mais claro, dos olhos cor
de mel.
Ocorre que sou um preto de
araque. Não fui premiado pela vida com uma cor e uma ancestralidade que me
remeta de forma inequívoca aos meus ancestrais de Angola ou de Moçambique. Meu
tipo, a minha cara, está sujeita a mudanças e nunca está pronta. A roupa que
uso e a barba que escolho para viver meus dias me deixam mais paquistanês, mais
iraniano, mais preto do sul da África ou mais marroquino.
Peço desculpas pelas possíveis
falhas de ortografia, mas passa de uma da manhã: é tarde, eu vim de um bar, e
embora as condições me conduzissem a um sono pesado e tranquilo, achei tão fundamental escrever esse texto que não pude deixar para depois.
Recentemente, tenho deixado a
barba crescer de uma forma meio desordenada. Trata-se não mais do que uma
vontade, um capricho, uma escolha estética. Desde que tomei essa decisão quanto
à barba, tenho ouvido em tom de chacota coisas do tipo “cuidado ao entrar nos
Estados Unidos”, “com essa cara você não entra na Europa”, etc. Essas chacotas
são escrotas e babacas, de forma geral, e vou explicar mais adiante o porquê.
Sempre tenho um certo orgulho de ‘não
ter sofrido preconceito na vida’. Sou preto, mas isso nunca foi muita questão
para mim. Por ter passado uma vida inteira não sendo ‘tão preto assim’, fui
vivendo à margem desse conflito. Ademais, também sou gay e vivo com meu
companheiro, mas como sou muito pouco afeminado, vou levando uma vida em que
todo o preconceito lançado contra mim vai sendo jogado para debaixo do tapete
tão subrepticiamente que eu nem vejo.
Acabo de voltar de uma
maravilhosa de Carnaval em Cuba. Foi um tempo incrível. Cuba é maravilhosa e
convive de forma harmônica com seus paradoxos. Tenho para mim que faço post em
breve sobre a experiência que tive na ilha, vamos ver se cumpro.
Por puro diletantismo, deixei a
barba ir crescendo antes da viagem. Cheguei a uma barba que se podia cofiar, e
o ato de cofiar a barba traduz como poucas coisas a expressão que quero
transmitir às vezes. Minha ideia, inocente, era a e fazer a barba em Cuba, de
preferência em um barbearia tradicional cubana, de forma que eu pudesse passar
metade da viagem com uma barba à la Fidel e a outra metade com a barba mais ou
menos comportada. Ao fim e ao cabo, foi bem isso o que aconteceu.
Chegamos em quatro no aeroporto
de Havana. Eu, meu companheiro, e um casal de amigos (Joana e Pedro). Enquanto
esperávamos na fila da imigração, um policial veio e nos abordou. Perguntou
nossas intenções e Cuba (turismo) e nossas profissões (três engenheiros de
produção e um médico). Pouco depois, quando Joana e Pedro já haviam passado
pela imigração, uma outra policial nos abordou. Novamente perguntou as nossas
intenções em Cuba (turismo) e se eu tinha nacionalidade turca ou árabe (não),
se eu tinha parentes lá (não, não tinha) e que minha fisionomia se parecia com
a deles (ao que eu disse que sim, apenas a fisionomia se parecia). Algum dos
policiais certamente gravou meu nome e, embora eu não tenha disso parado na
imigração, minha mala voltou com o fecho-eclair quebrado. A mala foi levemente
revirada, e (evidentemente), não acharam nada demais, nada que não condizesse
com um turista que passaria seis dias na ilha.
Até nem ia mencionar quando no
voo São Paulo – Havana a aeromoça perguntou se eu comia presunto, ao que eu
disse que, sim, que comia. Tenho cara de cidadão de país muçulmano, talvez. É
phoda ter a cara de um lugar que não é o seu, passar por cidadão de um lugar
que não te representa em absoluto.
O motivo desse post é que acabo
de voltar de um bar, onde estava com meu companheiro, um amigo e uma amiga. Contamos
essa história. O que ouvi do Gabriel (meu companheiro), após contá-la é que eu
deveria ter feito a barba antes de entrar em um outro país, que eu cori um
risco muito grande de passar por um interrogatório bizarro na imigração, etc.
Esse discurso foi, em certa medida, corroborado pelos meus outros dois amigos
que estavam no bar. Seguiu-se a isso um apontamento quanto ao fato de eu correr
no Aterro do Flamengo sem documentos. Que eu corro riscos de ser achacado por
policiais, de ser torturado, etc.
Existem casos que já vim em blogs
de caras que foram interrogados ou presos enquanto corriam só por serem pretos.
E de gente com cara de árabe ou com algum adereço muçulmano que foi parado no
aeroporto e teve que ‘dar explicações’.
Embora a dimensão do ‘ser preto’
quase não apareça muito na minha vida, eu já fui parado pela polícia duas
vezes. E por esse motivo. O post que conta essas histórias pode ser visto aqui.
E a dimensão do ‘ser árabe’ aparece quando falam em turco comigo na rua, quando
perguntam a minha procedência.
Essas pessoas com as quais eu
estava no bar me amam muito. E fizeram esses comentários e me deram essas ‘dicas’
no intuito de me proteger, por não quererem que eu sofra.
Só que proteger também oprime.
É claro que eu não quero ser
mártir de porra nenhuma. Eu adoro poucas coisas na vida quanto a condição de
estar vivo, acho a vida incrível e mágica.
No entanto, dizer para que eu
mantenha a barba feita é (quase) tão opressor quanto me revistarem no aeroporto
porque eu deixei de fazê-la.
É pedir para que a filha não ande
com uma saia muito curta, porque os lugares são perigosos. É pedir para que o
filho não ande de mãos dadas com o namorado na rua porque a homofobia está
violentíssima.
Entendo isso como uma forma
enorme de amor, mas esse amor reforça as condições de opressão.
Eu não tenho que pedir desculpas
a ninguém por ser preto. Eu não tenho que mudar os meus atos por ‘ter cara de
árabe’ ou ter uma barba aparada por esse motivo.
De certa forma, é fácil para quem
é branco pedir para que eu mude a minha aparência ou a minha conduta para que
eu me encaixe num tipo de ordem que acham que eu devo seguir (e que, de fato,
existe). Só que eu não posso ser outra coisa. Eu posso raspar a barba, cortar o
cabelo de uma outra forma, mas eu continuo tendo ‘cara de árabe’, eu continuo
sendo preto. Eu simplesmente não posso ser outra coisa, e portanto, não serei!
É claro que querem que eu sofra
menos, que eu cora menos riscos, mas eu não tenho como não corrê-los. Eu corro
mais riscos por ser preto. Só que eu não tenho como deixar de ser isso que eu
sou. É claro que eu tenho cara de suspeito, mas toda suspeição é, nada mais
nada menos, do que um aparato legal, mas ilegítimo, para que a as forças de ordem
possam destilar seus preconceitos.
Eu até posso deixar uma barba
curta, evitar usar roupas que me remetam ao mundo do crime ou que me façam ter ‘cara
de bandido’, andar sempre com dinheiro e um comprovante de renda no bolso para
mostrar que sou ‘cidadão honesto e trabalhador’.
Só que eu não quero pagar nenhum
preço por ser preto, essa não é uma escolha que eu tenha feito e eu não vou
pedir a desculpas a ninguém. Sim, eu corro mais riscos do que vocês brancos,
mas a menos que eu me recuse a sair à rua, tenho que aceitar que sim, corro
esses riscos.
E também tenho que aceitar e
entender que essas coisas só vão parar quando as pessoas pararem de se
sujeitar. Só vai ser possível que a mulher não precise alisar o cabelo para ir
ao trabalho quando as mulheres, de fato, pararem de alisá-lo para ir ao
trabalho. Se todo mundo ficar em casa ouvindo suas mães dizerem que ‘minha
filha, se arruma direitinho pra trabalhar, penteia esse cabelo’, ou ‘filha, é
feio para uma mulher ficar falada no bairro’, ou então, ‘filho, tudo bem você
namorar o fulano, mas não beija em público não porque as pessoas são muito
perigosas’, enfim, se todo mundo ficar nessa inércia de merda e nao jogar a
realidade na cara das pessoas, vamos continuar achando que somos um país
hétero-branco-masculino-cisgênero como as novelas da Globo fazem crer a
qualquer pessoas que as assista em qualquer lugar do mundo.
Ser preto ‘não tão preto’, ser
gay ‘não afeminado’, ter cara de árabe ‘de barba feita’, embora sejam todas
coisas que pareçam naturais em mim, foram todas fruto de uma escolha
completamente inconsciente, alimentados por medo e pelas neuroses mais
diversas.
Assim como a sociedade não muda
com uma canetada, a vida também não muda com um arroubo da vontade durante a
madrugada. É claro que as coisas muito provavelmente continuarão sendo do jeito
que são, mas conseguir enxergar a coisa e falar/escrever sobre a coisa é quase
um atestado de que essa coisa realmente existe, de que ela está lá.
Digo isso porque a minha vontade
nesse momento é a de recuperar em mim uma pretitude que se esconde em algum
lugar que já não sei bem onde, ao mesmo tempo em que quero ser a bicha mais
afeminada que eu conseguir ser. E claro, sair por aí com um turbante na cabeça.
Esse texto foi escrito num átimo,
sem revisões. É quase duas e meia e eu preciso dormir. Agradeço a paciência dos
que me leram até aqui.
A revolução que Cuba me trouxe,
ao chegar no aeroporto de Havana, não foi comunista.