sábado, 21 de fevereiro de 2015

Meio preto, meio árabe – as faces ocultas do preconceito e da opressão



Sou um brasileiro típico. Tenho a cara de todos os lugares e de lugar nenhum. Dessa forma, é muito fácil apontar para mim e dizer que pareço um indiano, um árabe, um boliviano, um egípcio. Sou fruto da mais profunda miscigenação brasileira. Sou tão profundamente brasileiro que tenho uma ancestralidade insondável: meus pais nasceram aqui, meus avós nasceram aqui. Dos meus bisavós, há uma memória remota, onde a memória e a vontade se confundem de forma bastante ardilosa: negros escravizados da África, índios, colonos antigos estabelecidos nas Minas Gerais e na Bahia, pretos forros, alguém remotamente português, mouros: ninguém sabe ao certo. Na minha família, somos todos frutos dessa terra chamada Brasil.

Tenho dois irmãos de mesmo pai e mesma mãe. No entanto, a genética, esse jogo de dados, fez com que nascêssemos todos com a mesma cara, porém com cores diferentes. Sou o mais preto dos três. Minha irmã é um pouco mais clara e meu irmão já bem mais claro, dos olhos cor de mel.

Ocorre que sou um preto de araque. Não fui premiado pela vida com uma cor e uma ancestralidade que me remeta de forma inequívoca aos meus ancestrais de Angola ou de Moçambique. Meu tipo, a minha cara, está sujeita a mudanças e nunca está pronta. A roupa que uso e a barba que escolho para viver meus dias me deixam mais paquistanês, mais iraniano, mais preto do sul da África ou mais marroquino.

Peço desculpas pelas possíveis falhas de ortografia, mas passa de uma da manhã: é tarde, eu vim de um bar, e embora as condições me conduzissem a um sono pesado e tranquilo, achei tão fundamental escrever esse texto que não pude deixar para depois.

Recentemente, tenho deixado a barba crescer de uma forma meio desordenada. Trata-se não mais do que uma vontade, um capricho, uma escolha estética. Desde que tomei essa decisão quanto à barba, tenho ouvido em tom de chacota coisas do tipo “cuidado ao entrar nos Estados Unidos”, “com essa cara você não entra na Europa”, etc. Essas chacotas são escrotas e babacas, de forma geral, e vou explicar mais adiante o porquê.

Sempre tenho um certo orgulho de ‘não ter sofrido preconceito na vida’. Sou preto, mas isso nunca foi muita questão para mim. Por ter passado uma vida inteira não sendo ‘tão preto assim’, fui vivendo à margem desse conflito. Ademais, também sou gay e vivo com meu companheiro, mas como sou muito pouco afeminado, vou levando uma vida em que todo o preconceito lançado contra mim vai sendo jogado para debaixo do tapete tão subrepticiamente que eu nem vejo.

Acabo de voltar de uma maravilhosa de Carnaval em Cuba. Foi um tempo incrível. Cuba é maravilhosa e convive de forma harmônica com seus paradoxos. Tenho para mim que faço post em breve sobre a experiência que tive na ilha, vamos ver se cumpro.

Por puro diletantismo, deixei a barba ir crescendo antes da viagem. Cheguei a uma barba que se podia cofiar, e o ato de cofiar a barba traduz como poucas coisas a expressão que quero transmitir às vezes. Minha ideia, inocente, era a e fazer a barba em Cuba, de preferência em um barbearia tradicional cubana, de forma que eu pudesse passar metade da viagem com uma barba à la Fidel e a outra metade com a barba mais ou menos comportada. Ao fim e ao cabo, foi bem isso o que aconteceu.

Chegamos em quatro no aeroporto de Havana. Eu, meu companheiro, e um casal de amigos (Joana e Pedro). Enquanto esperávamos na fila da imigração, um policial veio e nos abordou. Perguntou nossas intenções e Cuba (turismo) e nossas profissões (três engenheiros de produção e um médico). Pouco depois, quando Joana e Pedro já haviam passado pela imigração, uma outra policial nos abordou. Novamente perguntou as nossas intenções em Cuba (turismo) e se eu tinha nacionalidade turca ou árabe (não), se eu tinha parentes lá (não, não tinha) e que minha fisionomia se parecia com a deles (ao que eu disse que sim, apenas a fisionomia se parecia). Algum dos policiais certamente gravou meu nome e, embora eu não tenha disso parado na imigração, minha mala voltou com o fecho-eclair quebrado. A mala foi levemente revirada, e (evidentemente), não acharam nada demais, nada que não condizesse com um turista que passaria seis dias na ilha.

Até nem ia mencionar quando no voo São Paulo – Havana a aeromoça perguntou se eu comia presunto, ao que eu disse que, sim, que comia. Tenho cara de cidadão de país muçulmano, talvez. É phoda ter a cara de um lugar que não é o seu, passar por cidadão de um lugar que não te representa em absoluto.

O motivo desse post é que acabo de voltar de um bar, onde estava com meu companheiro, um amigo e uma amiga. Contamos essa história. O que ouvi do Gabriel (meu companheiro), após contá-la é que eu deveria ter feito a barba antes de entrar em um outro país, que eu cori um risco muito grande de passar por um interrogatório bizarro na imigração, etc. Esse discurso foi, em certa medida, corroborado pelos meus outros dois amigos que estavam no bar. Seguiu-se a isso um apontamento quanto ao fato de eu correr no Aterro do Flamengo sem documentos. Que eu corro riscos de ser achacado por policiais, de ser torturado, etc.

Existem casos que já vim em blogs de caras que foram interrogados ou presos enquanto corriam só por serem pretos. E de gente com cara de árabe ou com algum adereço muçulmano que foi parado no aeroporto e teve que ‘dar explicações’.

Embora a dimensão do ‘ser preto’ quase não apareça muito na minha vida, eu já fui parado pela polícia duas vezes. E por esse motivo. O post que conta essas histórias pode ser visto aqui. E a dimensão do ‘ser árabe’ aparece quando falam em turco comigo na rua, quando perguntam a minha procedência.

Essas pessoas com as quais eu estava no bar me amam muito. E fizeram esses comentários e me deram essas ‘dicas’ no intuito de me proteger, por não quererem que eu sofra.

Só que proteger também oprime.

É claro que eu não quero ser mártir de porra nenhuma. Eu adoro poucas coisas na vida quanto a condição de estar vivo, acho a vida incrível e mágica.

No entanto, dizer para que eu mantenha a barba feita é (quase) tão opressor quanto me revistarem no aeroporto porque eu deixei de fazê-la.

É pedir para que a filha não ande com uma saia muito curta, porque os lugares são perigosos. É pedir para que o filho não ande de mãos dadas com o namorado na rua porque a homofobia está violentíssima.

Entendo isso como uma forma enorme de amor, mas esse amor reforça as condições de opressão.
Eu não tenho que pedir desculpas a ninguém por ser preto. Eu não tenho que mudar os meus atos por ‘ter cara de árabe’ ou ter uma barba aparada por esse motivo.

De certa forma, é fácil para quem é branco pedir para que eu mude a minha aparência ou a minha conduta para que eu me encaixe num tipo de ordem que acham que eu devo seguir (e que, de fato, existe). Só que eu não posso ser outra coisa. Eu posso raspar a barba, cortar o cabelo de uma outra forma, mas eu continuo tendo ‘cara de árabe’, eu continuo sendo preto. Eu simplesmente não posso ser outra coisa, e portanto, não serei!

É claro que querem que eu sofra menos, que eu cora menos riscos, mas eu não tenho como não corrê-los. Eu corro mais riscos por ser preto. Só que eu não tenho como deixar de ser isso que eu sou. É claro que eu tenho cara de suspeito, mas toda suspeição é, nada mais nada menos, do que um aparato legal, mas ilegítimo, para que a as forças de ordem possam destilar seus preconceitos.

Eu até posso deixar uma barba curta, evitar usar roupas que me remetam ao mundo do crime ou que me façam ter ‘cara de bandido’, andar sempre com dinheiro e um comprovante de renda no bolso para mostrar que sou ‘cidadão honesto e trabalhador’.

Só que eu não quero pagar nenhum preço por ser preto, essa não é uma escolha que eu tenha feito e eu não vou pedir a desculpas a ninguém. Sim, eu corro mais riscos do que vocês brancos, mas a menos que eu me recuse a sair à rua, tenho que aceitar que sim, corro esses riscos.

E também tenho que aceitar e entender que essas coisas só vão parar quando as pessoas pararem de se sujeitar. Só vai ser possível que a mulher não precise alisar o cabelo para ir ao trabalho quando as mulheres, de fato, pararem de alisá-lo para ir ao trabalho. Se todo mundo ficar em casa ouvindo suas mães dizerem que ‘minha filha, se arruma direitinho pra trabalhar, penteia esse cabelo’, ou ‘filha, é feio para uma mulher ficar falada no bairro’, ou então, ‘filho, tudo bem você namorar o fulano, mas não beija em público não porque as pessoas são muito perigosas’, enfim, se todo mundo ficar nessa inércia de merda e nao jogar a realidade na cara das pessoas, vamos continuar achando que somos um país hétero-branco-masculino-cisgênero como as novelas da Globo fazem crer a qualquer pessoas que as assista em qualquer lugar do mundo.

Ser preto ‘não tão preto’, ser gay ‘não afeminado’, ter cara de árabe ‘de barba feita’, embora sejam todas coisas que pareçam naturais em mim, foram todas fruto de uma escolha completamente inconsciente, alimentados por medo e pelas neuroses mais diversas.

Assim como a sociedade não muda com uma canetada, a vida também não muda com um arroubo da vontade durante a madrugada. É claro que as coisas muito provavelmente continuarão sendo do jeito que são, mas conseguir enxergar a coisa e falar/escrever sobre a coisa é quase um atestado de que essa coisa realmente existe, de que ela está lá.

Digo isso porque a minha vontade nesse momento é a de recuperar em mim uma pretitude que se esconde em algum lugar que já não sei bem onde, ao mesmo tempo em que quero ser a bicha mais afeminada que eu conseguir ser. E claro, sair por aí com um turbante na cabeça.

Esse texto foi escrito num átimo, sem revisões. É quase duas e meia e eu preciso dormir. Agradeço a paciência dos que me leram até aqui.


A revolução que Cuba me trouxe, ao chegar no aeroporto de Havana, não foi comunista.