Vi em algum lugar e já não me
lembro exatamente onde, tamanha a profusão de textos sobre o assunto, de que o
Somos Todos Charlie tem uma certa semelhança com o “Somos Todos Macacos”, que
surgiu aqui no Brasil no caso Daniel Alves, e que foi rapidamente vilipendiado
pelos movimentos sociais. No entanto, à parte o fenômeno da rápida comoção das
pessoas, e de eventuais mudanças de postura após esta rápida comoção, existe
uma diferença entre os dois casos que talvez nos ajude a elucidar o que está
acontecendo hoje, na França e no mundo.
Este elemento é a ausência de
maniqueísmo. Enquanto no caso Daniel Alves existia uma clara noção de
certo-e-errado, uma clara de noção de quem era o opressor e de quem era o
oprimido, já não se pode dizer o mesmo no caso do atentado ao jornal francês.
Uma coisa que se viu naquele
exemplo, e que não pode ser visto agora é a existência de um coro. Uma única
voz em uníssono a dizer que éramos todos macacos, seguidos de uma outra voz,
mais à esquerda, também um coro, a nos dizer que não, que não éramos. No caso
de agora, pessoas à direita e à esquerda, ora dizem que são Charlie Hebdo, ora
dizem que são Ahmed, o policial islâmico que morreu em decorrência do atentado.
Não parece haver um consenso, em última instância, um coro, a guiar a massa de
pessoas para um lado ou para o outro. De acordo com o que tenho visto (e cabe
lembrar que cada um de nós tem acesso a um espectro da realidade, um percentil
ínfimo; no nosso caso, que ainda estamos a um oceano de distância dos fatos,
mais ainda), a sensação é de que as cartas na mesa do jogo político estão todas
embaralhadas. A religião embaralhou a política.
No caso do Brasil, embora não
tenhamos a questão muçulmana aparecendo de forma efetiva nos principais centros
urbanos do país, temos também as nossas questões religiosas. Somos um país
extremamente católico, temos um conjunto de evangélicos com grande
representatividade no congresso (embora não representem todo o conjunto dos
evangélicos), e religiões afro-brasileiras, além do crescente movimento ateu.
E, por aqui, não, não podemos falar abertamente sobre religiões. Religião no
Brasil é um tabu muito maior do que na França.
Nós somos o país que proibiu o
desfile do Cristo Redentor no desfile da escola-de-samba Beija-Flor em 1989.
Nós somos o país que tem medo dos ‘macumbeiros’ e os demoniza. Nós somos o país
em que se declarar ateu é colocar em xeque a própria reputação e a própria
dignidade. Ou, como diz o Laerte, o Brasil é o país em que o Hebdo não poderia
existir. Nesse sentido, causa bastante estranheza que muitos brasileiros
advoguem à favor da liberdade de imprensa quando qualquer piada com jesus
cristo seria crucificada em terras tupiniquins (com trocadilho, por favor). É
claro que todos condenam o atentado, a violência, etc. Mas em termos de
liberdade de imprensa, tem muita gente por aí que é extremamente egoísta e só
defende o ponto de vista da liberdade de imprensa porque se trata da religião
do outro.
A discussão sobre o respeito às
religiões é virtualmente infinito, de forma que não gostaria de me alongar
sobre ele, até mesmo porque essa discussão está longe de ser o cerne da
argumentação que pretendo desenvolver. O que deixo como minha opinião é de que
toda religião é sim, profanável. Que eu não entendo exatamente porque todas as
pessoas têm que ter respeito às religiões quando as religiões nem de longe têm
respeito por todas as pessoas. Em última instância, acho que a profanação é um
DIREITO de todas as religiões. Poder ser criticado significa ser reconhecido,
ser percebido, estar no mundo, existir. Mas, enfim, embora eu seja a favor da
liberdade da profanação, eu mesmo não as profano e as respeito todas.
Sinceramente, mais por uma questão de convivibilidade do que por princípios. É
importante ressaltar que ‘profanar’, da maneira que estou usando aqui, não tem
a ver com incitação de ódio, tem a ver apenas com dessacralização. (ei, você!
você pode não concordar com este parágrafo, mas por favor, continue lendo. :-]
)
Mas essa questão religiosa da
profanação é, na verdade, uma fatia de uma outra questão, maior: Que coisas podem
ser ‘profanadas’? O que pode ser objeto de piada?.
A cultura brasileira assentou
suas bases no humor de ódio, intolerância e deboche ao diferente, ao que fugia
dos padrões, a tudo que era percebido como menor. Aí estão inclusos os negros,
os gays, os índios, as religiões afro-brasileiras. Era o humor do opressor
contra o oprimido. De uns dez anos para cá, com a popularização da internet e,
especialmente, com a reverberação da voz dos movimentos sociais em decorrência
das novas mídias, esse tipo de humor ‘politicamente incorreto’ passou a ser
quase proibido, ao passo em que emergiu um novo tipo de humor de matiz oposta:
o humor do oprimido contra o opressor. Esse tipo de humor que, no Brasil,
sacaneia a Igreja Católica, os políticos, e gente muito rica (tipo o ‘Rei do
Camarote’) fez e faz cada vez mais sucesso e muito disso se deve ao grupo
‘Porta dos Fundos’. Então, enquanto construímos nossa vivência
histórico-cultural com charges do opressor contra o oprimido, hoje só vale o
oposto, do oprimido contra o opressor.
E é nisso que reside a grande
questão do problema. Enquanto há grupos, no Brasil, tradicionalmente opressores
(Igreja Católica, homens brancos, latifundiários) e outros tradicionalmente
oprimidos (negros, gays, quilombolas), o que se vê hoje, tanto no Brasil,
quanto no mundo, a construção de um cenário onde esses modelos de ‘oprimido’ e
‘opressor’ podem não mais servir para enquadrar os grupos sociais.
É precisamente essa a questão das
charges que retratam Maomé e do atentado ao Charlie Hebdo. O povo islâmico é AO
MESMO TEMPO opressor, porque oprime suas mulheres e as relega a uma condição de
dependência e subserviência aos homens (além de ser a religião dominante no
planeta), e oprimido, porque ocupa um lugar periférico e marginal na composição
da atual população europeia.
Ao mesmo tempo, os judeus,
historicamente um povo oprimido, em especial se considerarmos a Segunda Guerra
Mundial, pode ser visto também como um povo que oprime os palestinos (embora
sempre haja outros pontos de vista). Se falarmos de grupos brasileiros, mesmo
entre grupos historicamente oprimidos, podemos observar situações semelhantes.
Mulatos oprimem pretos, gays oprimem trans. Mas mulatos são oprimidos por
brancos, gays são oprimidos por heterossexuais. Onde, exatamente, está a
relação de opressão entre ateus e evangélicos?
O fato é que as relações de
opressão têm se tornado mais complexas. Isso se deve tanto ao empoderamento de
grupos oprimidos quanto à dinâmica de formação e crescimento dos grupos
sociais. As relações de opressão também têm a sua classe média, o seu nível
gerencial (que recebe ordens do patrão e ordena ao empregado).
O que falar, então, do caso da
polícia? A polícia, que no Brasil sempre é citada como um grupo extremamente
truculento e opressora dos movimentos sociais, é também um grupo oprimido, de
salários baixos. O Somos todos Ahmed é uma resposta interessante da sociedade
francesa ao Somos todos Charlie. No entanto, essa polícia oprimida (e neste
caso, ainda mais, por ser justamente um muçulmano) é exatamente a mesma polícia
que, no dia seguinte, pode lançar bombas de efeito moral para dispersar uma manifestação
(embora, na França isso fosse menos provável; mas mesmo assim, possível).
Enfim, esse texto termina de uma
maneira inconclusiva, mas acho importante remeter ao título. Nessas horas, mais
do que ser Charlie Hebdo, ou de ser Ahmed, é importante não ser essas coisas,
mas pensar sobre essas coisas dentro de um mundo que dificilmente comporta
respostas maniqueístas para as questões contemporâneas.
Por fim, creio que tal como nas
manifestações de junho de 2013, só a história será capaz de entender exatamente
o que aconteceu. Enquanto isso, exatamente como nas manifestações de junho de
2013 (que têm muito mais a ver com o atentado do que o Somos todos macacos),
mais importante do que ter uma opinião de pronto é questionar, em primeiro
lugar, a opinião que querem que você tenha.