A contemporaneidade nos presenteia o tempo inteiro com
coisas, conceitos e sentimentos novos. É sabido que a cada geração ficamos mais
egoístas (mais egóicos mesmo), mais nos achando o último trakinas do pacote,
mais superficiais, mais rápidos. Sim, o tempo passa e é evidente que as
pessoas, individualmente, e em grupo, vão mudando.
E uma dessas coisas que tem surgido recentemente, e que a
cada vez ganha contornos maiores, é isso a que chamamos vergonha alheia.
A vergonha é um sentimento que acompanha a humanidade há
muito tempo. A vergonha da própria genitália, que é uma das primeiras vergonhas
conhecidas pelo homem, alastrou-se e cresceu muito nas sociedades cristãs.
Dessa vergonha primeva, vieram o pudor e o recato, o excesso de roupas, a moral,
os ritos da côrte, e uma série de outras coisas (naturalmente, não com uma
causalidade tão direta quanto coloco aqui; há muitos outros fatores além da
vergonha que contribuíram para essas estruturas). Não dá nem para dizer que
esse é um sentimento ruim, já que é algo que nos acompanha há tanto tempo, e
está intrinsecamente arraigado a cada um de nós.
No entanto, existe uma mudança rápida em curso, que altera a
forma como lidamos com esse sentimento. Sempre sentimos vergonha de nós mesmos:
por termos feito ou falado bobagem, por estar com uma roupa inadequada, por ter
uma voz esganiçada, enfim, por estar fora dos padrões de alguma forma.
Mas chegou a vez da vergonha alheia. Isto significa que eu
sinto vergonha de algo que não diz respeito a mim. Tenho vergonha pelo que os
outros estão fazendo. A roupa do outro é que está inadequada, o penteado do
outro é que está feio, é o outro que está fora dos padrões, e isso passa a me
dizer respeito de alguma forma.
Esse é um sentimento extremamente nocivo e perigoso. Em
primeiro lugar, porque ele não existe. Ninguém sente, de fato, vergonha por uma
outra pessoa. O que as pessoas fazem, o tempo todo, é julgar as outras pessoas,
e transformar, apenas no discurso, seus próprios conceitos e preconceitos em “vergonha
alheia”. Trata-se, em última instância, de um grande eufemismo.
A vergonha alheia parece mostrar também que, por mais
modernidade que tenhamos, somos essencialmente os mesmos nos últimos dois mil
anos: seres que julgam o tempo inteiro, e que se preocupam demais com a vida
dos outros. A revolução francesa, a cubana, a chinesa, a feminista, a digital:
nada disso foi capaz de mudar a grande força moral que paira sobre a humanidade;
é como se o homem não tivesse conseguido se libertar.
Ainda temos medo do ridículo, e por isso nossas próprias
vergonhas; ainda somos preconceituosos, por isso a vergonha alheia.
Eu me sinto esquisito todos os dias (todos os dias!) quando
vejo pessoas que dizem ter vergonha alheia por causa da Miley Cyrus dançando
Wrecking Ball, por causa do rolezeiro que quer colocar aparelho colorido nos
dentes, por causa daquele menino que é super afetado e fala com trejeitos
femininos.
Juro que não consigo mesmo entender essa necessidade de
julgar os outros. A cada dia, tenho mais certeza (se é que se pode tê-las nessa
vida) de que devemos deixar as pessoas livres para ser o que elas quiserem, para
fazerem o que elas quiserem, da forma delas, do jeito delas, com as roupas e os
cabelos delas. SET THEM FREE!
Se eu posso pedir uma coisa, o pedido é: POR FAVOR, PAREM.
Em vez de olhar o tempo todo para os outros, talvez seja a hora de olharmos um
pouco mais para nós mesmos, na ideia de recuperar aquela vergonha antiga (a própria),
e poder sacar o quanto somos ridículos fazendo essas coisas. E se julgar, e se
questionar, e se propor a melhorar. De si para si. E os outros, ah, os outros
que entendam e questionem a si mesmos.
Aos que tentarem a mudança, vocês verão o quanto é
libertador saber que a única vida com a qual você precisa se preocupar é a sua!