sábado, 23 de novembro de 2019

Destinos livres




‘O Atlântico Negro’, de Paul Gilroy é o livro que me fez me sentir mais verdadeiramente negro. Ora, poderiam dizer, mas a identidade não é algo que se sente, se sabe e se é? Por que um livro poderia ter, então, essa força de reafirmar uma posição identitária? Precisamente porque ele as discute.

‘O Atlântico Negro’, publicado em 1993, é um livro que pensa a identidade negra e a discute, entendendo suas nuances, desvios, singularidades e percursos. Este livro é um marco nos estudos sobre identidade racial porque contrapõe a ideia de afrocentricidade à ideia de diáspora, optando por esta última como uma via interpretativa de se pensar a negritude.

Para Gilroy, o Oceano Atlântico é muito mais relevante para a compreensão das identidades negras do que a África. Somos mais rotas e percursos do que raízes. A compreensão de ser negro no mundo tem, portanto, mais a ver com esses fluxos oceânicos, desde os navios negreiros às trocas culturais transatlânticas contemporâneas entre Europa, África e as Américas, do que com uma vinculação ao território africano.

O livro de Gilroy é riquíssimo porque discute a experiência de ser negro na filosofia, na música e na literatura, considerando esses fluxos e as trocas, tanto entre os negros de todos os continentes, quanto também entre negros e brancos. Não há e não haverá um mundo só de negros e, se um dia as trocas entre negros e brancos foram brutalmente desiguais (e ainda são), considerando em particular a experiência da escravidão, urge brigar por um novo mundo.

‘O  Atlântico Negro’ é um estudo denso e bem escrito. Meu exemplar do livro está todo marcado com pontos de exclamação sobre itens de destaque, mas acho que não conseguiria fazer um texto esmiuçando todos eles em detalhes. Vou tentar falar, então, mais de sentimentos do que de ideias.

O que senti após ler Gilroy foi uma liberdade imensa, e vou explicar porquê. Sou fruto de uma família muito racializada (mãe, irmão e irmã; meu pai, pouco). Muitos de meus almoços em família acabam sempre em discussões étnico-raciais. Apesar de ser o mais fenotipicamente negro dentre todos eles (pele mais escura, boca mais grossa), sou o menos racializado Isso significa que não faço parte de nenhuma religião afro-brasileira, não uso palavras do yorubá no meu dia-a-dia, não estudo questões étnico-raciais de maneira sistematizada, não frequento grupos em que se discute a negritude, não me visto com roupas coloridas que remetem a uma suposta ancestralidade africana e a maior parte de meus amigos são brancos.

Tenho um interesse pela discussão étnico-racial e identitária porque sou negro, e também porque gosto das discussões que as ciências humanas trazem para a forma de ver (e ser visto n’) o mundo. Entretanto, sei que todos me olham de soslaio porque esperam o dia em que eu finalmente ‘me descubra negro’.

A questão é que, até aqui, esse ‘descobrir-se negro’, que paranoicamente penso ser o que esperam de mim, tem muito a ver com o que chega para mim sobre os rolês raciais (especialmente através da minha família, dado que não os frequento muito): reverenciar uma certa África mítica, que pouco tem a ver com a África de hoje, e de se pensar na ancestralidade e nas religiões e nos modos de ser-e-viver africanos.

Essa afrocentricidade me cansa, essa é que é a verdade. Eu sou um ocidental. Sou um homem ateu, gay e negro. Mas caramba, Igor, quando você se diz um ocidental você está dizendo que adotou um modo de ser-e-viver que é originalmente branco, patriarcal, eurocêntrico, colonizador e que quer destruir a tradição de matriz africana através da expansão de uma política de dominação racista sobre os corpos negros no mundo? Não. A resposta é não, e precisamente, porque sou negro. Quero reivindicar aqui a minha identidade de negro e ocidental.

Sou negro no Brasil, um país que, talvez mais do que qualquer outro, tenha sido o destino atlântico de tanta gente. Como a população original do nosso território brasileiro foi dizimada ao longo de séculos de colonização, e como nossas fronteiras terrestres também não foram particularmente ocupadas através do estrangeiro, quase tudo o que somos veio do mar. O Atlântico é a origem negra (e também branca) do Brasil.

Ser negro no Brasil me leva a um entendimento de que sou negro, e como disse, também ocidental. Mas não me faz africano. E, resgatando o argumento inicial, acho que é por isso que a afrocentricidade me cansa. Não me sinto particularmente vinculado à África. Esse africanismo a mim soa falso. Entendo que faça sentido a muita gente, mas a mim, não é algo que me vincule, que me toque de maneira peculiar.

E é por isso que Gilroy me traz essa grande sensação de liberdade. Porque descobri que não preciso reivindicar a África para me sentir negro. Que a experiência de ser negro na diáspora tem a ver com uma espécie de descentramento, de desterritorialização. É evidente que esse processo foi bastante violento, e entendo que hoje parte dos movimentos negros busque esse reconexão, essa busca de raízes.

Mas também não podemos negar a força e a potência de se pensar fora de um centro. A experiência diaspórica colonial castrou essa força e essa potência através da escravidão e das práticas racistas que ainda hoje permanecem em atos e discursos. Mas penso ser possível retomar essa força e essa potência através de um entendimento decolonial da diáspora.

Acho que a gente tem é que aproveitar o descentramento e a desterritorialização para poder pensar que nosso território é o todo, que somos o hoje: engendrar essa potência na criação de novas formas de ser-e-viver, imiscuir-se no mundo.

É verdade que o racismo irmana a todos nós, e a luta antirracista é urgente. É bem mais urgente que a criação de um novo mundo ou do aproveitamento de potencialidades desterritorializadas. O racismo nos une a todos aqui e agora, e constitui parte importante da experiência de ser negro.

Ele está indissociavelmente ligado ao dever de se pensar o que é feito da população negra hoje, em particular no Brasil. Quais são os mecanismos de silenciamento das vozes negras? Como funciona a política que se orienta para a morte de pessoas negras e o que devemos fazer para combatê-la? Como se colocar frontalmente contra o racismo e como orientar as pessoas brancas e de todas as cores a apoiarem a luta antirracista?

Talvez, no Brasil, a experiência do racismo seja o fiel da balança na construção das identidades negras, aqui nesta terra onde houve miscigenação e onde muita gente se pensa preta, branca, parda e misturada. Isso revela também que nem tudo que Gilroy diz tem aplicabilidade para essas terras. A experiência de ser um homem negro inglês é decerto diferente da experiência de ser um homem negro brasileiro, ou de ser um homem negro norte-americano.

São também diferentes as construções da identidade a partir do gênero, da religiosidade, da orientação sexual, enfim: há muitas formas de ser-e-viver. Há também muitas formas de mostrar-se.
E aí entramos no terreno pantanoso da questão da identidade como performance. Entendo que as performances são elementos constitutivos das lutas identitárias. Mulheres negras de turbantes coloridos, homens gays com roupas espalhafatosas e postura afeminada, homens judeus com seu quipá.

Ser e se mostrar o que se é. Existe um orgulho afirmativo na performance, no vestir-se, no entregar aos olhos do outro uma mensagem de vinculação e de pertencimento. Algumas pessoas gostam disso, e usam essa performance como elemento de uma luta coletiva.

Cabe aqui uma digressão. Penso que talvez essa questão não pudesse ser tratada em língua inglesa. Vejo um pouco a questão das identidades como um tênue equilíbrio entre o ser o estar (to be and to be). É-se, mas também está-se. Se ser se associa a uma ideia de essência, de ethos, estar se associa a uma ideia de transitoriedade. O ser é o corpo, o estar a vestimenta. O ser é o dado, o estar o construído. É-se natureza, está-se na cultura.

A construção das identidades e das subjetividades é uma oscilação, um pêndulo entre ser e estar. Nenhuma mulher escolhe ser negra, mas pode escolher estar com um turbante colorido na cabeça. Um homem gay afeminado não escolhe ser afeminado, mas pode escolher estar afeminado. As pessoas são e estão. A construção identitária, no fundo, é uma grande performance de si mesmo.

A afrocentricidade me cansa, então, porque não tenho paciência para uma performance de mim mesmo como esse negro identificado com a África. Minha construção subjetiva e identitária passa por outras performances, dentre as quais a de um pretenso intelectual, que pode parecer ostentar por vezes um olhar blasé sobre o mundo e as coisas.

A perspectiva diaspórica, por outro lado, permite que eu me entenda como uma pessoa negra sem que eu precise pagar nenhum tributo à grande mãe africana. Não preciso me adornar, não preciso deixar meu cabelo black power, não preciso.

Posso me entender um homem negro a partir da perspectiva de que sou fruto de um grande fluxo migratório, que inclui homens e mulheres brancos e negros, que chegaram ao Brasil através do oceano, e que inclui também homens e mulheres que já pertenciam a essa terra e, que no fim, ao fim e ao cabo, a minha origem, como a de muitos, é mesmo insondável, e, ainda que essa incognoscibilidade se deva a um apagamento brutal e violento das marcas de origem através de políticas de separação de famílias, violências sexuais e aculturamento, ainda assim, penso que ser livre e que não ter, nas gerações anteriores, o quê ou a quem pagar qualquer tributo em relação à própria existência, de não ter de satisfazer qualquer expectativa em relação à pátria ou à etnia ou a uma grande mãe continental além-mar, penso que essa liberdade, essa deriva, esse direito e esse dever de construir um futuro novo com o que somos, a partir do que somos, é uma imensa alegria.

Entendo que a retomada do controle do discurso e a construção de narrativas étnicas sobre um passado de glórias pode fazer parte dessa construção subjetiva positiva para algumas pessoas. Retomar as raízes é uma forma possível de se encontrar, mas penso ser mais interessante prescindir delas: menos raiz e mais rizoma.

Nosso território é o todo. Somos o hoje!

Somos e estamos, afinal, livres. Livres, de todo livres. Não era, afinal, o que queríamos?

segunda-feira, 15 de julho de 2019

FLIP 2019: Identidades em construção, territórios em disputa




Acabo de chegar da Festa Literária Internacional de Paraty - FLIP 2019, evento a que fui pela quarta vez. Estive em Paraty também nos anos de 2015, 2016 e 2017.

Percebo com clareza o quanto a festa tem mudado neste breve espaço de tempo.

Em 2015, o evento trouxe como homenageado Mário de Andrade. A FLIP era então uma festa majoritariamente branca, elitizada, cujo público era formado por uma casta intelectual mezzo aristocrata, mezzo pequeno-burguesa, que usava o evento para encontrar seus pares do eixo Rio-São Paulo em um aprazível fim de semana de inverno na idílica cidade colonial de Paraty. Mário de Andrade era homem, branco, paulista. Embora sua sexualidade sempre tenha sido alvo de polêmicas, o evento promoveu maiores discussões em relação à sua contribuição estética ao modernismo e à Semana de 22. Perdeu-se o timing de uma conversa sobre sexualidade e literatura, gênero e produção intelectual. Mas, enfim: tratava-se de 2015. O Brasil era governado por um governo de esquerda, e ainda pairava no ar alguma esperança sobre os caminhos da política pós-2013. Podia-se dizer com tranquilidade: era um tempo de paz.

Em 2016, pressionada por movimentos de mulheres que se viam sub-representadas nas homenagens da FLIP (apenas Clarice Lispector em mais de 10 anos de evento), a organização decidiu por homenagear Ana Cristina César, poeta vinculada ao movimento da Poesia Marginal dos anos 1970, que teve uma vida curta e uma obra pouco prolífica. Se, considerando o destaque concedido pelo evento à autora, a contribuição estética de Ana Cristina César à literatura nacional possa ser questionada, é representativa a contribuição política que a escolha de seu nome trouxe ao evento. Estávamos na época do impeachment de Dilma Rousseff, e as conversas e discussões sobre o feminismo avançavam. Mulheres brancas deram o tom do evento. A política começava a chegar, tímida, não apenas às discussões, mas à realidade da festa.

O ano de 2017 foi um ano especial para a FLIP. À mudança que houve na política brasileira, de substituição de uma mulher do campo democrático-popular por um homem do patronato industrial paulista na liderança do país, correspondeu outra, em sentido inverso, no público do evento. Lima Barreto foi o primeiro escritor negro a ser homenageado na FLIP (desconsiderando Machado de Assis, cuja filiação étnico-racial é, ainda hoje, fruto de acalorados debates). Tratava-se também de um escritor dos subúrbios do Rio de Janeiro, que fez destes o cenário de sua literatura. Lima Barreto era ainda um entusiasta do Brasil, e ter sido homenageado neste ano contrastava com o presidente da república apequenado que ora tínhamos, dos menos populares de nossa história republicana. A FLIP de 2017 é a prova material de que representatividade importa. Não é uma coincidência que justo no ano em que o primeiro autor negro fora homenageado, Paraty exibia um público colorido nos seus quatro dias de festa. Nunca houvera tantos negros na FLIP, de forma que a questão racial se fez sentir na maior parte das discussões. Com as mesas principais ocorrendo na Igreja da Matriz (fato que não havia acontecido antes e, ao que tudo indica, não acontecerá depois, contribuindo para dar uma verdadeira aura singular ao evento de 2017), homens e mulheres; brancos, pardos e pretos; ricos, não tão ricos e quase pobres, construíram juntos esse evento bonito, tomado pela diversidade. Em um dos momentos mais icônicos da FLIP 2017, Ana Maria Gonçalves (escritora de ‘Um defeito de cor’) mediava um encontro com Conceição Evaristo, ao passo em que esta dizia, dentro da igreja ‘Este espaço que nós ocupamos este ano na FLIP não é nenhum favor. Nós devemos ocupar este espaço, que é nosso por direito!’. Foi ovacionada.

Em 2018, ano em que a homenageada foi Hilda Hilst, não consegui ir ao evento. O ano de 2019, contudo, mostra que as transformações políticas pelas quais a FLIP tem passado seguem seu curso. O homenageado foi Euclides da Cunha. Em sua opera magna, ‘Os sertões’, Euclides traz à baila a temática dos sertanejos, dos pobres, dos despossuídos, dos oprimidos pelo Estado. O público, mais uma vez, mudou. Se a casta intelectual dos elitizados que frequentou o evento em 2015 se incomodou com a invasão de mulheres e de negros nos anos subsequentes, talvez hoje o tomem por aliados. À medida que o tempo avança e a política nacional recrudesce em suas posturas de aumento da violência, aumento da desigualdade e desvalorização da diversidade, a FLIP segue em sua tendência de inflexão, tornando-se menos um evento do status quo, do establishment, e mais um evento de contracultura e da valorização da diversidade e da dissidência. É importante ressaltar também que, a cada ano que passa, a identidade do evento depende menos do que quer ou do que pensa a organização da FLIP. Espraiada por cada vez mais casas e mais espaços de convívio e de circulação no Centro Histórico de Paraty, a FLIP é, a cada ano que passa, um evento mais rizomático, com menor controle central. Mesmo a literatura, esteio principal da festa, cada vez cede mais espaço a outras formas de cultura como a música e o cinema. A diversidade segue de vento em popa. Como disse Suely Rolnik, em uma conversa na FLIPEI – Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, a mudança ocorrida na micropolítica, em relação às identidades, é IRREVERSÍVEL. Segundo ela, governos vão e vêm, mas a maneira pela qual grupos historicamente subalternizados como mulheres, gays, trans, favelados e periféricos passam a se organizar e se auto-afirmar nas suas identidades (individuais e coletivas) não tem retorno. Para que tenhamos ideia de como se trata mesmo de um processo irrefreável, entre os cinco autores mais vendidos na FLIP, estão quatro negros e um índio. Por todo o lado, mesas e casas estiveram discutindo as potências e interseccionalidades entre arte e gênero, literatura e raça, produção de saberes e periferia, colonialidade e poder. Mas é preciso lembrar que estamos em 2019 e, bem, o fascismo está na rua. Essa FLIP ficou marcada por um episódio envolvendo o jornalista Glenn Greenwald. Falando em um local aberto (no já citado barco da FLIPEI), Glenn teve sua voz abafada por fogos de artifício e rojões de pessoas que impediram o livre discurso do jornalista (eu não estava no local no momento, mas disseram que a confusão provocada de fato atrapalhou sua fala). Manifestantes do bolsonarismo também fizeram uma espécie de comício em uma pequena praça nas franjas do Centro Histórico. Em outro momento, me deparei com uma marcha para Jesus que serpenteava pelas ruas estreitas do Centro Histórico entoando cânticos de louvor, sob os olhares assombrados de quem se entretinha entre uma loja e outra. Ouvi dizer que esses manifestantes entraram em conflito com índios guaranis que cantavam e pediam dinheiro em uma praça (não tive, contudo, como confirmar a informação). Isto para não falar nas tabuletas de testemunhas de jeová em cada esquina, com homens, mulheres e crianças com as pernas cobertas por calças ou saias longas, ostentando olhares tristes e oferecendo alternativas à danação terrena.

Decerto essa foi, até então, a FLIP mais tensa e mais conflituosa de que participei. Tensão e conflitos esses que estiveram, por vezes, a poucos passos da violência. Por um lado, é positivo que o Centro Histórico tenha sido ocupado por bolsonaristas e religiosos. Isto revela que esses grupos consideram a FLIP um espaço importante. É um evento na rua e, se a rua é de todos, por que não eles? Bolsonaristas e religiosos, tal como mulheres e negros anos antes, reivindicam para si a ocupação deste território, real e simbolicamente. A diferença é que não o pleiteiam para disputar no âmbito da cultura esses espaços. Negros e mulheres queriam ser mais uma voz a falar, queriam que suas vozes fossem ouvidas: eles podem e devem ocupar esses espaços. Bolsonaristas e religiosos querem tomar para si o espaço da rua não para compor o coro da diversidade, mas para impor um pensamento monolítico e calar as vozes que, a despeito das últimas eleições, vejam só, ficaram ainda mais altas.

Fica o recado também para quem pensa que a FLIP é só mais um lugar para curtir um lifestyle bon-vivant tomando um vinho a 15 graus. Será cada vez menos. A edição de 2019 mostrou que as bolhas que permitiam a construção de um evento asséptico foram paulatinamente sendo rompidas. Ao menos por ora, não há e não haverá paz nas ruas; a tensão é a norma.

Nessa guerra entre a diversidade e a burrice, perdemos a batalha eleitoral. Mas, não importa quanto barulho façam, a batalha da narrativa cultural continua pendendo para o nosso lado.

Viva a FLIP, viva a diversidade!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O que aprendi (ou não) lendo um livro acadêmico sobre sadomasoquismo


Acabo de ler ‘A perversão domesticada – BDSM e consentimento sexual’, de Bruno Zilli (Ed. Papéis Selvagens, 2018). Este livro foi escrito por Bruno a partir da sua dissertação em Saúde Coletiva, realizada no Instituto de Medicina Sexual (IMS) da Uerj. Na verdade, trata-se do próprio trabalho acadêmico defendido em 2007, publicado no formato livro em 2018, quase sem alterações.

Bruno é antropólogo, mas seu trabalho de mestrado foi realizado na Saúde Coletiva (ao que consta, o autor torna ao campo das Ciências Sociais no seu programa de doutorado). Para quem não sabe, a sigla BDSM significa Bondage (amarração e técnicas de imobilização), Disciplina e SadoMasoquismo. Isto posto, vamos à discussão do texto.

Basicamente, como a quase totalidade dos trabalhos acadêmicos de mestrado, a estrutura é dividida em revisão de literatura, metodologia, estudo de caso / coleta de dados, e conclusão. Em vez de optar por uma leitura diagonal, focada basicamente em olhar a introdução e a conclusão, me dispus a ler o texto de maneira integral.

A revisão de literatura, que costuma ser a parte mais maçante das dissertações, está um primor. Bruno discute a evolução do BDSM através de um prisma histórico. O sadomasoquismo e outras práticas tidas como ‘perversões sexuais’ ao longo da história, como a homossexualidade, são discutidas no seu enquadramento como transtorno. Descritas como ‘parafilias’ no contexto do surgimento da psicanálise no início do século XX, em pouco tempo estas práticas passam a ser descritas como ‘transtornos parafílicos’ no contexto da psiquiatria e das descrições de doenças contidas nos Manuais DSM (Diagnostic and Statistic Manual, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria), que, atualizados em média a cada década, são um dos principais instrumentos que vêm sendo utilizados para se caracterizar determinado comportamento como doença ou transtorno mental.

Esta revisão de literatura aborda a evolução do DSM, desde sua primeira edição (DSM I), até a sua quinta edição (DSM 5). É apresentada uma discussão muito articulada sobre a gênese desses manuais, de como ele nasce tendo por base a psicanálise e, como ao longo do tempo, a psiquiatria se desvincula do campo epistemológico de Freud (com suas explicações psicologizantes), aproximando-se de uma abordagem médica, técnica, biológica e mais ‘científica’ (com suas soluções farmacológicas). Explica também como a psiquiatria, através do DSM, pensa as parafilias e os transtornos parafílicos à luz dos novos movimentos civis dos anos 1960, especialmente os da afirmação da homossexualidade através de uma óptica de grupo/cultura, reivindicando para si a negação de seu enquadramento como doença/transtorno.

É uma discussão riquíssima e muito bem conduzida (eu, que não sou da área, percebo que aprendi bastante).

Sinto, contudo, que a dissertação deveria ter sido circunscrita a esta bela elucidação, bem feita, articulada, que ensina ao mesmo tempo que engendra novas discussões e pensamentos a quem a lê.

As partes posteriores do trabalho são conduzidas num nível de detalhe e de riqueza de discussão muito menores do que os encontrados na revisão de literatura. Em primeiro lugar, os dados são todos coletados na internet. Embora o próprio autor sinalize que essa tenha sido uma crítica que surgiu algumas vezes ao longo do trabalho, e apesar mesmo dos argumentos utilizados pelo autor para justificar a pesquisa nesse formato, os dados encontrados na internet não são muito interessantes.

Bruno vasculha algumas listas de discussão e sites sobre BDSM, em busca de alguma espécie de referencial normativo para o conjunto destas práticas. Naturalmente, ele encontra com facilidade essas informações. Esses ‘guias para as práticas de BDSM’ são uma certa maneira de homogeneizar o discurso e as práticas BDSM em direção a uma certa normatividade, que justifique a prática como ‘normal’ (e, portanto, não patológica) a partir da categoria do consentimento.

Sinto que essa abordagem, entretanto, ficou meio circular. Ao procurar por um conjunto de normas, é de se esperar que se encontre algo normativo.

O autor se identifica como alguém que não é da comunidade BDSM. Certamente, existe aí uma lacuna de conhecimento do objeto a ser estudado (conjunto de práticas BDSM), que poderia ter sido preenchida por algumas entrevistas. Mas elas não são realizadas. Alguém pode argumentar que isso não faz parte diretamente do escopo do trabalho, mas, especialmente se considerarmos que o autor é antropólogo, faltou uma etnografia mínima. Não é evidenciada no trabalho nenhuma percepção sobre o senso de pertencimento à comunidade BDSM por seus praticantes, sequer uma descrição das práticas. O leitor fica, portanto, apenas com uma conceituação teórica, vaga, sobre o que poderiam ser estas práticas BDSM.

É claro que esta percepção nesta resenha/análise que ora construo é posterior às leituras de trabalhos como ‘Festas de orgias para homens’, de Victor Hugo de Souza Barrreto, e de ‘Manifesto contrassexual’, de Paul B. Preciado, autores que, de certa maneira, habitam em alguma medida o universo que estudam, fazendo uma ponte entre a vida acadêmica e a vida real.

A impressão é a de que Bruno Zilli não mergulha no seu universo de pesquisa, trazendo ao leitor uma visão ‘limpinha’ demais do que se propõe a pesquisar.

Por último, a categoria do consentimento sexual, que está no título, não foi adequadamente problematizada. Há alguma discussão (pouca) do BDSM como jogo/cena, em oposição ao que seria o BDSM real, isto é, aquele no qual o não-consentir entraria como um elemento real da erotização dos corpos.

Mas sinto que faltou uma discussão um pouco mais contemporânea. Frases como o ‘Não é não.’ e ‘Depois do não, tudo é assédio.’, reivindicadas como verdades pela maior parte dos feminismos, podem ser deslocadas em um contexto no qual os jogos eróticos têm no consentimento sexual (real ou encenado) um de seus principais elementos. Que articulações podem ser feitas a partir do avanço dos feminismos no século XXI, que reivindica essas verdades, e das lutas de uma comunidade BDSM que coloca a categoria do consentimento na centralidade mesma de seus jogos eróticos?

É claro que se trata de uma dissertação de mestrado (e não de uma tese), que foi defendida num programa de Saúde Coletiva (e não de antropologia), escrita há quase dez anos (e não hoje). Dou todos os descontos. Mesmo considerando também que o mundo acadêmico talvez não estivesse tão permissivo a voos mais ousados à época, não posso me furtar à constatação de que esta leitura me deixou um pouco frustrado.

O livro chegou às minhas mãos e me despertou interesse pelo título. Dessa forma, tudo o que eu esperava encontrar era uma discussão contemporânea de qualidade sobre as práticas BDSM e o consentimento sexual, possivelmente à luz de alguns estudos de gênero. Não encontrei, fiquei frustrado.

Por outro lado, encontrei uma valiosa e bem-articulada discussão sobre os caminhos discursivos da psicanálise e da psiquiatria ao longo de todo o século XX, perscrutando o movimento das parafilias (ou ‘perversões sexuais’) do patológico em direção à normalidade. Fiquei surpreso.

É isso. Frustração, surpresa: o livro de Bruno Zilli está aí para mostrar que as coisas não são uma coisa só. Mirei no que vi, acertei no que não vi. Quem nunca?