segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Azul é a cor mais quente – Crítica



Como toda crítica que se preze, esta também funciona como o prefácio de um livro: é melhor que se leia após a deglutição da arte.

Quando começaram a subir os créditos, achei que o filme deveria se chamar apenas “Adèle”. Foi com algum espanto que percebi que o nome original do filme é “La vie d’Adèle”, e que nos venderam em terras tupiniquins como “Azul é a cor mais quente”. Achei uma péssima escolha de nome, naquela hora. Porém, ao chegar em casa e pensar com mais calma, acho que foi uma escolha acertada.

Estou com “Azul é a cor mais quente” até agora remoendo na minha cabeça. Vi esse filme há mais de vinte e quatro horas: já fui a uma festa, já trabalhei, já dormi, e o filme não para de ganhar complexidade, a cada vez que me lembro. Por isso, portanto, a necessidade de escrever sobre ele.

O filme conta a história de uma menina chamada Adèle, de 15 anos, que vive uma experiência homossexual com uma mulher mais velha, que está do meio para o final de um curso de Belas Artes, chamada Emma. Há cenas tórridas de sexo entre elas, e imagino que a maior parte das críticas não tenha conseguido sair muito dessa discussão.

Não vou dizer que a cena de sexo entre as duas protagonistas é um detalhe, porque não é. Mas está longe de ser o ápice do filme, como se tem querido apontar. Aliás, é quase um crime querer apontar alguma cena ou algum momento que possa ser definido como o ápice do filme.

“Azul é a cor mais quente” é um filme que dura três horas, e que não tem uma cena sequer de excesso. Aém disso, o roteiro do filme segue uma estrutura de tempo escrutinadamente linear.

Ora, como pode, portanto, um filme longo, linear, e sem clímax definido ser um filme bom? Pois, então: o somatório desses elementos, que tem de tudo para ser algo extremamente chato, é transformado em algo simplesmente maravilhoso pelo diretor Abdellatif Kechiche.

Aponto dez elementos que contribuem, na minha opinião, para tornar este filme uma obra-prima:

  1. a beleza das atrizes; inegavelmente, a protagonista Adéle (Adèle Exarchopoulos) e seu par, Léa Sydoux, são lindas, com destaque para a primeira.

  2. a capacidade de contar uma boa história; o roteiro é simples: a vida e os conflitos de uma jovem, dos seus 15 aos seus 22 (acredito que seja esta a idade final da personagem), mas contada de uma forma que não nos faz querer desgrudar da tela; isso tem um pouco a ver com próximo item.

  3. o efeito Big Brother; Adèle vai se tornando alguém que a gente conhece de forma íntima. A personagem, que é muito tímida no início, vai tendo sua personalidade desvelada de forma simultânea para os espectadores e para os personagens. Esse processo é extremamente bem construído.

  4. a leveza na passagem do tempo; o tempo corre durante uns sete anos, mais ou menos, na vida de Adèle. E isso é feito sem cortes bruscos de temporalidade. A escola aparece, depois começa a aparecer o trabalho. Os personagens vão entrando e saindo da vida da protagonista, de forma muito rápida, mas também muito natural. Esse processo de mudança dos círculos de amigos é muito comum na vida das pessoas, em especial das mais jovens, o que tem a ver com o próximo item.

  5. a verossimilhança; os eventos no filme são extremamente verossímeis. Exceto algumas vezes, em que acontece algum evento maior (conhecer uma pessoa diferente, conseguir um emprego), a maior parte da vida acontece com alguns acontecimentos cotidianos, mas sem grandes sobressaltos. Na maior parte dos filmes, sempre tem muita coisa acontecendo. Esse é um filme que sustenta bem as três horas de duração, sem o excesso e a condensação de grandes eventos amotinados uns sobre os outros, mas com o ritmo de acontecimento dos eventos narrativos suficientes para manter uma história interessante;

  6. o hiperrealismo e a ausência de uma cinematografia fácil; muitos filmes são verossímeis, mas poucos são tão hiperrealistas como “Azul é a cor mais quente”. Acho que consigo explicar esse tópico através de exemplos. Há uma cena em que Adèle fica confusa com sua sexualidade e vai chorar no quarto. Em um filme de cinematografia fácil, rapidamente entraria alguém no quarto perguntando “O que houve?”, ao que a menina responderia “Não, não é nada.” Ou então, contaria o que estava acontecendo. Nesse filme, como muito provavelmente aconteceria na vida real, a menina fica no quarto sozinha no quarto remoendo suas mágoas, e não vem ninguém sequer procurar por ela ou saber se está tudo bem. Em uma outra cena, mais para o final do filme, quando as duas protagonistas terminam o romance, Emma é extremamente agressiva com Adèle e a chama de puta para baixo, expulsando-a de casa. Em uma cena três anos depois, as duas conseguem ter uma conversa em que são cordiais, (Emma está até levemente doce), mas não reatam o relacionamento. Um filme de cinematografia fácil não resistiria a um happy end ou a um revival, ou, por outro lado, teria feito uma cena carregada no rancor e na raiva, o que embora funcionasse como elemento estético e narrativo, estaria distante da realidade. O grau de rancor, de raiva e de melancolia conrresponde de forma exata aos três anos de separação das protagonistas, e exageros para um lado ou para o outro, poderiam dotar o filme de mais ação e mais ‘clima’, mas haveria uma perda grande de realismo.

  7. a estética; a fotografia do filme é linda. E a luz levemente estourada nas cenas ao ar livre, em oposição à nitidez das cenas de sexo, faz com que o filme seja um deslumbre visual. É um filme magistralmente belo.

  8. a naturalidade das cenas de sexo; sexo é bom, todo mundo faz, mas isso não costuma ser mostrado na tela. O diretor, em sua opção pelo realismo, mostra o sexo de forma natural (ok, ainda que exagerada na estética para ser mais bonito do que realmente é) acontecendo várias vezes (como acontece com a maior parte dos jovens). O grande mérito, na minha opinião, além de mostrar as cenas de sexo em si, é colocar na tela o lugar que a nudez e o sexo realmente devem ocupar, que é o da naturalidade.

  9. a repetição não-repetida; muitos podem discordar neste ponto, mas apesar de haver algumas cenas que se repetem, trata-se de uma repetição não-repetida, que contribui para dar fluidez à história. Por exemplo, há dois jantares de família, uma com os pais de cada uma delas. Poderia ter havido apenas um deles, mas a oposição entre os estilos de jantares e a posição de cada uma frente aos seus pais e aos pais da outra é relevante para entender como elas estruturaram sua personalidade. Esse é um caso em que o possível excesso não fica tão evidente. Mas há um conjunto de cenas, perto do fim, em que se mostram pelo menos quatro vezes o trabalho de Adèle com as crianças do jardim de infância. Em duas delas, ela está fazendo ditado com as crianas, em outra ela está na praia em uma espécie de colônia de férias, em outra ela está colocando as crianças para dormir no berçário. Precisa de tantas cenas assim? Na minha opinião, sim. As cenas do trabalho de Adèle servem para mostrar o quanto essa atividade ocupa o seu tempo real e o seu tempo simbólico de forma cada vez mais marcante, à medida que o filme avança. Essa proporcionalidade entre o tempo dado aos espectadores sobre um assunto e o tempo (real e simbólico) desse mesmo assunto na vida de Adèle é muito interessante. Isso não parece ser fácil de manejar, em especial se considerarmos o esforço para que sejam criadas estas repetições não-repetidas.

  10. o pragmatismo e a decadência dos sonhos; é lindo trabalhar com arte: poético, romântico. No filme, Emma sofre muito para conseguir expor, e ter sucesso, apesar de seu talento. Adèle ignora convites para ser escritora (e escolhe ser professora primária), tem dificuldades para opinar e se posicionar em um discurso chatíssimo sobre a arte, diz que vai a Nova Iorque e acaba não indo. Um dos personagens desiste de ser ator e vai para o ramo imobiliário. Muitos diretores (muitos mesmo) teriam optado pela glamourização da arte (até porque vivem este mundo) e teriam transformado Adèle em uma escritora de sucesso em Nova Iorque. Mas como esse é um filme ‘que nem parece filme’ e o diretor é suficientemente corajoso, o misticismo em torno da arte e dos sonhos da juventude vai se desvanecendo entre projetos não-concluídos e o pragmatismo da vida cotidiana.

  11. o título; esse décimo primeiro item vai de lambuja, porque o título em português, acredito, não foi uma escolha do diretor. Mas quando afirmo que os tradutores fizeram uma boa escolha, estou pensando que o azul da cor do cabelo de Emma mantém o filme mais ‘quente’. Tão logo ela pinta o cabelo de loiro, assume uma identidade mais madura. Esse amadurecimento pode simultaneamente ser visto em Adèle. A partir desse momento, o relacionamento das duas começa a degringolar, e o filme começa a caminhar para o seu final mais maduro, mais melancólico, mais ‘frio’, por assim dizer, em oposição à juventude e à possibilidade de se manter o cabelo pintado de azul, como visto na primeira metade do filme.
Bom, por esses 11 motivos, estou até agora digerindo o filme: seus diálogos, seus sentimentos, suas nuances. Há muito tempo, não me sinto tão tocado por alguma obra artística a ponto de sentir uma necessidade grande de escrevê-la (mais ou menos como fiz aqui). Aliás, há muito tempo que não escrevo, e me sinto um pouco renovado com esse texto aqui. Espero que esse azul também lhes provoque de alguma forma;


Azul é a cor mais inquietante. E a mais maravilhosa!


Feliz 2014 a todos!