segunda-feira, 26 de abril de 2010

Letônia (Latvia)

Ano passado, eu fiz uma pequena Eurotrip, de umas cinco semanas. Apesar de alguns amigos terem considerado que eu cometi alguns pecados na escolha da minha trajetória (como não ir a Paris, a Londres ou a Berlim; ou de ter ficado duas semanas na Dinamarca sem ter conhecido Copenhague), eu fiz exatamente o trajeto que eu quis fazer; passando por alguns destinos mais badalados como Barcelona e Veneza, e por outros lugares menos conhecidos. Se eu pudesse colocar os oito países em que visitei numa espécie de ranking por interesse, certamente a Letônia seria o oitavo país. Seria o primeiro país a ser cortado se eu tivesse três dias a menos de viagem. Mas eu fui, e de tudo que vivi na Europa, certamente a experiência que eu tive na Letônia foi a mais rica, sem sombra de dúvida.

Pra começo de conversa, o meu vôo de Amsterdã para Riga (capital da Letônia) foi o meu único vôo dentro da Europa que não era da Ryanair. Fui por uma tal de Baltic Airlines, uma verdinha lowfare com cara de Webjet. De passagem nas mãos, a atendente do guichê olhou para minha cara, conferiu tudo e perguntou: “Don’t you need a visa?” e eu, naquela antipatia de quem tem razão: “No, I don’t need a visa. I’m from Brazil and I can travel across all over Europe Union within 90 days.” “Let me check.” E depois de conferir no site, abriu um sorriso: “Yes, you can travel for 90 days. Good trip.” Fiquei com raiva, mas ok. Cheguei em Riga e, surpresa, veio um cachorro cheirar as minhas malas. Não sei se era porque o vôo tinha v indo de Amsterdã ou se o procedimento padrão era esse, mas achei estranho. Não, eu não tinha trazido nenhum hemp gift comigo. =PP

O Couchsurfer que ia me pegar no aeroporto demorou 30 minutos pra aparecer... Fiquei esperando, esperando, e ele chegou. Conversa vai, conversa vem e, ele foi muito sincero ao dizer que “o país dele não gostava de gays, não era muito chegado a estrangeiros e que eles eram todos muito tradicionais”. Achei aquilo tudo muito esquisito, mas admirei a sinceridade. O povo brasileiro nunca vai admitir os seus preconceitos.

Jurijis (Yuri, em bom português) logo me revelou que não morava exatamente em Riga, mas em Ulbroka, um subúrbio de Riga no qual só passava uma única linha de ônibus, o 51 (ou 52, isso já tem quase um ano, eu não lembro bem). Era uma casa dessas de subúrbio norte-americano, onde habita uma família tradicional, cristã e com cachorro.

Ao andar pelas ruas de Riga, sentia que o modo como as pessoas me olhavam eram diferentes. Não eram exatamente xenófobas, mas não eram tão abertas ao estrangeiro quanto os países europeus ocidentais. Tal olhar desconfiado, entendi depois de algum tempo, tinha sua razão de existir. A Letônia, e os países bálticos de forma geral, vinham sendo os queridinhos da retomada do crescimento europeu, além de terem se tornado um must como atração turística. Eu tinha lido na internet e nos guias de viagem que os países bálticos estavam com tudo. Mas, ah, como a Terra gira... Veio a crise de 2008 e, cataploft, a Letônia mergulhou na sua mais profunda crise econômica desde a dissolução da União Soviética, com queda do PIB de 18%.

Eu não sabia, mas eu estava entrando num país muito triste: um país desolado, desconfiado, um país sem fé. Era o auge da crise e o desânimo era generalizado. Havia pouquíssimos turistas. O Yuri me acompanhou durante os dois dias que permaneci na Letônia. Me mostrou que uma das ruas mais bonitas era a Rua das Embaixadas estrangeiras. Me levou a um parque onde vi uma tradição que achei linda: casais que prendiam cadeados numa ponte para selar o amor eterno. (“they lock their love on a bridge”). Me levou para tomar cerveja em dois bares,por duas noites seguidas.

Mas teve uma hora em que eu fiquei sozinho na cidade. Isso porque ele tinha uma festa na qual apenas os letões podiam ir. Eu questionei, perguntei se era sério isso, e mais ainda, se era legal, e ele me disse na maior naturalidade que sim, que havia lugares na cidade que eram exclusivos para os letões. Ele disse que esses lugares existiam porque chegavam todos os finais de semanas hordas de britânicos vindo pela Ryanair interessados apenas em sexo com as garotas letãs. Eles criaram, então, espaços só deles. Eu entendo a lógica deles... Mas as mulheres brasileiras estão entre as mais cobiçadas do mundo, e os gringos vêm, transam com elas e tal... Eles fodem com elas e elas fodem com o bolso deles... =PP Como eu venho de um país muito livre, não acho que as coisas devem ser estigmatizadas desse jeito... Mas não questionei.

Fui ao McDonald’s e comi sozinho um McItaly, as pessoas olhavam pra mim, era muito estranho. Eu era um cara sozinho e com cara de árabe, num país hostil. Eu tinha marcado com o Yuri na volta de a gente se encontrar num bar cubano, o Cuba. Saí do McDonald’s, fui pro Cuba e fiquei esperando na varadinha do lado de fora do bar, bebendo sozinho no bar meio vazio... A polícia passou uma vez e ficou me olhando. Dez minutos depois, passou a mesma viatura mais lentamente, e ficaram me olhando de novo. Quê que eu fiz? Fui pra parte interna do bar, lógico; não ia esperar a polícia passar a terceira vez e pedi meu passaporte. =PP Depois o Yuri chegou e ficamos conversando, até que fomos encontrar a irmã dele (que trabalhava numa espécie de Cinemark de lá, e muito simpática por sinal), até que fomos pra casa.

Eu tinha ido ao Museu da Ocupação mais cedo, que é um dos museus mais importantes da cidade. É um museu sobre a invasão russa nos países bálticos e, em especial na Letônia. A Letônia foi invadida pelos alemães, e depois pelos russos. Aliás, apesar de a Letônia ter entrado na União Européia e ter tentado voltar os olhos para o Ocidente, toda a sociedade é voltada para a Rússia, em vez de para a Europa. A russificação da sociedade e da cultura é visível. Isso explica a repulsa que eles têm pelos estrangeiros, que, em vez de turistas, são sempre vistos como invasores no inconsciente coletivo. Dá pra ver que o povo letão é muito sofrido e isso justifica muita coisa. Além desse lance da repulsa ao estrangeiro, o Yuri estava me falando da fuga em massa do país. Segundo ele, lá existe o sonho norte-americano. Quase todos têm vontade de sair do país para ir pros EUA ou pro Canadá, onde as oportunidades são muito maiores. A irmã dele iria para os EUA no mês seguinte e, ele iria pro Canadá no final do ano. Aliás, foi bastante interessante pra mim perceber os russos como os grandes filhos-da-puta da História. Estamos acostumados por aqui a demonizar nossos colonizadores diretos, a meter o pau nos norte-americanos e no capitalismo selvagem, certos de que o bondoso sistema comunista seria muito melhor. Lá, o ponto de vista é outro: “um dia os russos vieram, tomaram todas as nossas terras e disseram que era tudo do Estado.” O sonho deles era a democracia, o direito de propriedade, o direito de comprar e vender.

Mas nessa última noite que passei lá, eu e Yuri ficamos conversando sobre muita coisa. Ele falou sobre essa questão da ocupação e da questão lingüística: ele é fluente em letão, russo, alemão e inglês. E eles têm que saber, porque a língua deles é praticamente uma língua isolada, só tendo parentesco com o lituano. De tudo, o que ele me falou, o que mais me marcou foi a seguinte declaração: “Our language is very poor, we have just a few words to say. Sometimes it’s easier to think in Russian.” Cara, isso me marcou profundamente. Eu não consigo imaginar uma lingua pobre, o português é tão rico e tão bonito. Não estou acostumado a ter uma língua que não seja motivo de orgulho...

Mas nesse dia ainda falamos sobre várias coisas. Eu falei pra ele que, definitivamente o “Caipiranha” é o nome de bar mais engraçado que eu já vi, mesmo no Brasil e expliquei pra ele o porquê. Ele ficou muitíssimo surpreso com o fato de as estações do ano no Brasil serem trocadas em relação à Europa (como assim, vocês não têm neve no inverno?), no que considerei como uma grave falha do sistema educacional letão. Ele faz arquitetura e o que ele sabe sobre o Brasil é Oscar Niemeyer. Me mostrou um livro sobre o Oscar Niemeyer escrito em russo, me mostrou imagens de Brasília e da Igrejinha da Pampulha em BH, perguntou se eu conhecia essas coisas. Me mostrou uns vinis seus também, tinha muita coisa legal. Ele estava se desfazendo deles e eu sinto qu e poderia ter conseguido um, mas ele iria quebrar dentro da minha mala, sem dúvida. Ele tinha uma músicas brasileiras no MP3. Me mostrou “Bala com Bala”, da Elis Regina, que eu não conhecia muito (e ainda hoje não conheço quase nada). Essa música é uma que ela canta “bala com bala bala com bala” muito rápido. Ele falou que ele e os amigos dele morriam de rir ouvindo essa música porque “bala” em russo tem o mesmo significado de “pussy” em inglês. Dei dois cartões-postais pra ele.

No dia seguinte, eu ia pegar o ônibus das 08:00h na rodoviária, no Centro de Riga. Yuri foi pontual. Me acordou às 5:00h, sua mãe me preparou um café e veio me chamar pra comer mesmo sem saber uma palavra em inglês. A única palavra que aprendi em letão foi “Paldies”, que significa “obrigado”. Mesmo assim, quando saí de casa, agradeci à mãe dele com um “Thank you”. Achei que um Paldies seria muito forçado, algo meio clichê, e eu sei que ela entenderia o meu “thank you”.

Agradeci muito ao Yuri e peguei meu ônibus para Tallinn, na Estônia. Fiquei pensando na Letônia dentro do ônibus. Teve um dia que teve um “Free Hugs” no centro de Riga. Passei ao largo. Decidi não abraçar um povo que não me abraçou. Escrevi uma referência no CouchSurfing para o Yuri depois. Ele deixou lá um “Will write soon” pra mim. Está lá até hoje. Nunca soube se ele gostou de mim, se me achou estranho, diferente; se teve medo, como todo o povo letão. Mas eu tenho certeza, que dentro das possibilidades dele, ele foi o melhor que pôde; e independentemente do que ele pense sobre mim, eu gosto dele e o perdôo.

Não gosto e nem desgosto da Letônia. Mas foi lá que eu tive contato com o diferente, é lá que a Europa é menos Europa. Foi a experiência mais rica que eu tive lá fora, como já disse e torno a dizer: o lugar onde eu mais aprendi.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Polícia para quem precisa



Na sexta-feira santa, eu fui a um churrasco no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro: um lugar bem bacana, mas naquela parte da cidade onde a chapa esquenta. Saímos às 4:00h, e tomamos um táxi em direção à Zona Sul, onde eu e uns amigos moramos, e onde a chapa esquenta menos, por assim dizer. Veio uma blitz e parou nosso táxi. O policial nos mandou descer do táxi. Nos revistou. Perguntou se tínhamos algum baseado conosco. Até aí, ok. É desconfortável, mas é o trabalho dele. Mas ele cheirou nossas mãos para verificar se nós tínhamos fumado maconha. Ele perguntou de onde a gente estava vindo, ao passo em que eu respondi que estávamos vindo de um churrasco de um amigo nosso no Méier. Ele perguntou se não estávamos no baile da Mangueira, ao que respondi que não. Perguntou de novo, ao que reiterei a negativa. Ele nos liberou dizendo “Salvos pelo taxímetro.”

Depois eu fiquei pensando. Cara, isso está errado. isso está MUITO errado. O policial tem o direito de parar nosso carro e nos revistar. Mas ELE NÃO PEDIU NOSSOS DOCUMENTOS! Ele cheirou a minha mão (nem a minha mãe cheira a minha mão!). E qual o sentido de ele dizer que fomos “salvos pelo taxímetro?” Por que, qual o problema haveria de estarmos curtindo o baile funk na Mangueira? É proibido? E se eu tivesse fumado e minha mão tivesse com cheiro de maconha e eu não tivesse nada comigo? Se eu tivesse fumado no Méier, o quê que ia acontecer? A sensação que passou foi a de que os policiais queriam que nós tivéssemos qualquer erro (qualquer!) pra conseguirem um dinheiro de propina e garantir os ovos de páscoa dos seus filhos no domingo. Com o perdão da expressão chula: se fuderam.

Teve uma outra vez, em que eu estava andando sozinho na Lapa, e quando passou a viatura, eu acabei, coincidentemente, dando meia-volta. Eu tinha percebido que a rua em que eu acabara de passar me levaria mais depressa ao meu destino. Mas daí, veio a viatura e me tomou como suspeito. Perguntaram da onde eu vinha, e eu estava bem nervoso por outras razões. Me revistaram, eu fiquei nu, dessa vez eu me senti bastante humilhado. Viram que eu não tinha nada (eu não sou usuário de drogas), mas me disseram um “Olha só, fica esperto.”

Eu fico pensando que essas coisas ocorreram comigo, que sou um cara estudado, de classe média. Nessas horas, você vê como é complicado negociar com um policial, com alguém que tem uma arma na mão e um poder instituído. Talvez seja mais difícil do que negociar com um bandido, porque eles se sentem poderosos mesmo. Afinal de contas, o que eu poderei fazer, chamar a polícia?

Eu confesso que eu sou um ferrenho defensor das UPPs, as tais Unidades de Polícia Pacificadora. Acredito neles não como um modelo de enfrentamento puro e simples (como é o caso do Bope e seus “caveirões”, que eu abomino), mas sim, como uma política pública de longo prazo. Mas algumas reflexões posteriores me levaram a um tipo de medo. Eu confesso que eu tenho medo do aumento súbito do efetivo e do poder da polícia. Porque são pessoas que, verdade seja dita, não são treinadas para lidar com seres humanos. São treinados para não negociar, e para tratar as pessoas como animais.

Fico pensando no que acontece por aí afora, na Baixada Fluminense, onde a chapa esquenta mais ainda. Eu tenho a sensação de que a truculência policial não tem limites. Porque, no fundo, não há NADA que me garanta que se eu tentar entrar numa discussão de negociação com um policial e entrar na viatura, ele não vai me matar e jogar meu corpo no caminho em vez de me levar pra delegacia. Às vezes, eu tenho medo da polícia, e eu não sei se é certo. Eu não sou culpado de nada e eles, em tese, estão ali pra me proteger dos outros. Mas e deles, quem me protege? Confesso, tenho medo.

E a verdade nua e crua é que a questão da truculência policial e da falta de critério para a abordagem policial não entram em discussão porque a classe média não está nem aí; porque uma blitz como essa, na qual TODOS os carros eram parados, sem distinção, não vai nunca ocorrer nas ruas tranqüilas e pacatas do Leblon, por onde circulam os bacanas e seus filhos. Esse tipo de coisa não entra em discussão nunca e nem vai entrar porque a classe média (e o Jornal O Globo, que monopoliza a mídia impressa no Estado do Rio e faz reverberar o pensamento da elite do Leblon por todo o Rio de Janeiro), porque estão todos eles encantados com a valorização dos seus imóveis, encantados com a polícia e seu poder de fogo legalmente instituído.

Eu pensei em escrever pro jornal, contar o que aconteceu, dizer pra polícia que não dou a NINGUÉM o direito de cheirar a minha mão. Mas eu não anotei a placa das viaturas. Na delegacia, iriam fazer chacota, dizer que é assim mesmo. O jornal talvez nem publicasse. A gente vai acreditando mesmo que tudo isso é muito normal.

Mas lá fora, longe das UPPs, d’O Globo, e da Zona Sul, lá onde a chapa esquenta, a polícia age e vai continuar agindo como se não houvesse lei que a regulasse, mais ou menos da mesma forma que os bandidos.