sexta-feira, 25 de julho de 2008

escrito

Mais uma vez como todas as outras em que eu me deparo com a folha em branco e me questiono incrédulo sobre a matéria escrita próxima, se ficção, se realidade, ou ainda, quem sabe, se alguma coisa que oscila, alguma coisa como que em fragmentos, em pedaços de realidade, ou ainda algum tipo de fantasia em pó porque, no fundo, é essa necessidade inexpugnável de escrever alguma coisa que sirva, ainda, mesmo sabendo que talvez ninguém nunca leia, mesmo que talvez entre pra já quase infinita coleção das cartas que eu nunca irei mandar e que apodrecerão amarelentas dentro de caixas que estarão dentro de gavetas, que estarão dentro de armários, que estarão dentro de cômodos e que, por mais que eu queira negar, sei que sempre estarão lá, me olhando de dentro do fundo da caixa, me mostrando uma passagem, uma nesga de memória, um pedaço entrecortado de algum momento importante, uma nota de rodapé, uma crítica de um livro, uma anotação boba, um carinho, um presente, um marcador de livro, um cartão-postal, uma lembrança, outra lembrança, um envelope selado, uma conta de banco, um artesanato, um cartão de Feliz Natal, algum nada cheio de significado, uma etiqueta de roupa, uma agenda, uma foto, um cheiro, uma folha seca, umas contas de um colar que se assemelham a dois olhos e que sempre olham pra mim quando eu os encaro interrogativo e com violência, esses olhos que não se deixaram fotografar porque eram duas bolotas laranjas cada uma com um círculo mal desenhado e que ficavam assim, exatamente como dois olhos que me fitariam longo, muito embora os olhos de verdade ainda que dulcíssimos, se me recusassem a olhar e é como se tivesse ficado a lembrança, é como se as contas laranjas do colar colorido fossem a lembrança, porque elas me remetem ao olhar, aquele olhar, ao olhar dela que é assim, baixinha, arretada, com uma voz meio esganiçada mas muito senhora-de-si, altiva, inteligente, que sabe se impor, se expressa, conhece, escreve, lê, sabe, guia, muito guia, nos levando pela cidade fora do circuito, pela parte que ficou de fora do roteiro sempre tão mais divertida onde as pessoas fumam apreensivas suas pedras de crack pela calçada e vivem as suas alucinações sem se preocupar sobremaneira com o mundo que aí está e que desmesuradamente os exclui de qualquer coisa que transcenda os próprios limites da sua zona geograficamente delimitada para este fim, da zona que ficou demarcada como o refúgio da cidade, no local, naquele local onde a cidade é tão mais ameaçadoramente verdadeira que é preciso fugir dela a qualquer custo e para isso, sim, os cachimbos de crack aqui, ali, por todos os lados, em todas as calçadas, em todas as pessoas, esta fuga do mundo, este não-estar, este não-ser, este negar que às vezes é tão mais fácil do que encarar o mundo de frente, mesmo que para isso seja preciso enxergar a vida assim, feia, feiíssima, tal como ela é, de forma que reste para nós o desafio de que não sejamos apenas transeuntes e que, por mais que não saibamos contornar essa vida urbana tão cheia de mazelas, por mais que não consigamos mudar o mundo, é preciso que se o percorra, de todos os modos, de todas as maneiras, porque isso é sério, a vida é séria, e por isso é preciso avisar a todos os seus amigos, a todas as pessoas que você conhece que a vida é séria, que a vida séria pra caralho e que por isso, justamente por isso, é preciso que se ria, é preciso que se ria ao máximo e sempre que se possa, rir, sim, rir, rir para o mundo, e rir do mundo ainda, quando isso for possível, dos tropeços, das quedas, da cara das pessoas no elevador quando elas entram sempre com as suas caras de chaminé e você pensa que ainda terá que encará-la por mais uns quarenta segundos, mas vá lá, é definitivamente melhor do que perguntar sobre a chuva, sobre o jogo, sobre a notícia sensacionalista do jornal de anteontem mostrando mais uma vez os episódios folhetinescos das menininhas que são jogadas das janelas, de todas as janelas, todos os dias, de todos os sextos andares, de todos os edifícios London, de todas as São Paulos que existem dentro de cada um de nós com suas contas de colares, casacos perdidos, faculdades, amigos, cafés gelados, festas, ônibus, cracolândias, corridas, dúvidas, hotéis, conversas, pessoas, sim, pessoas, muitas pessoas, aos montes, as que não voltam, as que ficaram, as que foram viver suas aventuras mochileiras mundo afora, as que dão saudade, as que tomaram um chopp comigo por aí algum tempo depois, as que reencontrei e que faço questão de ser amigo e de ser amigo pra caralho e agora é preciso que se faça uma interrupção brusca no que quer que se tenha dito porque a pessoa da qual eu falava de ser amigo, de ser amigo pra caralho, acaba de entrar no msn porque, sim, eu sou desses que se desacostumaram à velocidade lenta, lentíssima da caneta imprimindo sua marca, imaculando a folha de papel, e bem, estamos aí, na Internet, na rede, no mundo e, de vez em quando somos presenteados com uma dessas coincidências tão contemporâneas, do pensar em alguém e o alguém te ligar, aparecer no msn, logar no Orkut, quando eu fico mesmo imaginando do lado de cá que a coincidência mesmo seria receber uma carta de alguém que se gosta quando se passou o dia inteiro pensando nela e chegar na sua caixa de correio e ter lá um envelope com seu nome, sobrenome, endereço, CEP, selo, carimbo, mas bem, já não importa e já não mais é possível porque as cartas são contas, todas, sempre, de forma que abrir a caixa de correio já provoca uma espécie de náusea programada e, bem, ninguém passa mais pensando o dia inteiro numa só pessoa porque acabou esse negócio de amigos, todo mundo sabe, amizade é last week à beça, a onda agora são contatos, pessoas que formam uma rede, o que se chama de networking e aí, aí é o fim da poesia, das ligações de madrugada, do liguei só pra ouvir a sua voz, do ligar pra não dizer nada, do mandar uma carta pra alguém que está longe porque, veja bem, os contatos, diferentemente dos amigos, devem ser gerenciados, sim, gerenciados, como contas, documentos, arquivos, processos, tudo devidamente classificado, catalogado, categorizado, hermeticamente fechado, dentro de uma estrutura virtual, lógica, algo que é construído sistematicamente, isso, por ordem alfabética, você talvez nunca tenha pensado no fato, mas está aí, você tem contatos organizados por ordem alfabética, reflexo de um mundo que faz questão de colocar em ordem todas as suas coisas, em ordem e progresso, destruindo qualquer tentativa vã da poesia, da fotografia, da pintura, da expressão, da vanguarda, da arte, obrigando qualquer manifestação artística a ser linear e taxonômica como os insetos numa aula de entomologia, sem que se possa ousar sem explicar a ousadia, sem que se possa explodir o sentido sem que haja sentido, sem que se possa criar algo que transcenda, de verdade, as malditas classificações, a maldita ordem que aí está e que nunca se configura em progresso, nem em regresso, e que nunca se configura em nada, ainda que as coisas queiram movimentar-se, ganhar vida por si próprias, mas há um gancho, alguma coisa que prende, alguma coisa que não permite, alguma coisa que sufoca, sim, que sufoca, mas é preciso que se saiba que não é preciso sufocar, que sufocar não é preciso, que por mais que a vida seja um sufoco às vezes, e que sufoco, é preciso que não se sufoque pois, pelo contrário, é preciso que se deixem as coisas, todas elas, livres, soltas, fluidas, por aí, meio a esmo e sem controle, como palavras chovendo, como palavras brotando, como palavras em orvalho que jorrariam das pétalas e matariam todas as sedes do mundo, essa sede de arte, de proximidade, de toque, de abraço, de cidades, canções, aventuras, lojas, bolos de chocolate, jogos, sorvetes, cafés, lugares, pessoas, pessoas, pessoas, muitas, todas as pessoas, as sedes de todas as pessoas, até daquelas que estão alucinadas em seus alucinógenos e daquelas que fazem de suas vidas uma estrada muito mais alucinante, que acreditam na paz, no amor, na poesia, numa foto encontrada na rua, na magia de um encontro casual com um desconhecido numa terça-feira às quatro horas da tarde em frente à livraria com um camisa xadrez e uma calça jeans meio surrada e um cabelo loiro com dreadlocks e um piercing no lábio e outro na orelha e outro, e outro, e que perguntava as horas entusiasmado num idioma incognoscível enquanto falava rápido e apontava desesperado pro meu relógio de pulso de ponteiros magníficos e eu teria dito que eram quatro horas, exatamente, quatro e três, quatro horas e três minutos, em português, inglês, espanhol, italiano, alemão, árabe, mandarim, finlandês, turco, romeno, quéchua, sueco, guarani, zulu, húngaro, língua do pê, maspas nãopão hapavipiapa línpínguapa quepe epelepe enpentenpendepessepe, donde eu só pude lamentar profundamente e continuar seguindo a minha trajetória, um tanto quanto desapontado e completamente desorientado porque já não era mais possível saber se eu iria pra direita, pra esquerda, se iria a pé, se tomaria um metrô, um táxi, um ônibus, e eu adoro ônibus, sim, um ônibus, tomaria um ônibus, o primeiro que aparecesse, pra qualquer lugar, um ônibus, um ônibus circular, e a gente ia conversando e rindo, falando mal dos outros a viagem inteira, sem qualquer tipo de pudor, aliás a gente não tinha mesmo nenhum pudor, rotulando as pessoas que passavam e rindo tão deslavadamente da cara delas, mas num riso só nosso e tão entre a gente que as pessoas jamais poderiam saber que comentávamos o seu nariz torto, a sua cara de infelicidade, as suas roupas tão feias, os seus arquétipos de mamãe-quero-ser-indie-parte3, ou ainda de mamãe-não-tenho-marido-parte2 ou ainda de mamãe-acabei-de-descobrir-que-sou-gay-e-estou-doido-pra-dar-parte4 ou ainda outros, aos montes, múltiplos, porque os arquétipos se explodiam, e era sempre uma forma fácil de fazer com que o trajeto valesse a pena dentro daquele ônibus sem que de forma alguma soubéssemos pra onde estávamos indo, sem que isso tivesse qualquer importância até que qualquer de nós dissesse um agora, vamos, e então desceríamos do ônibus ali, lépidos e descompromissados, exercitando sempre por aí o nosso riso solto, fagueiro, nosso e só nosso, sem que tivéssemos que nos preocupar com qualquer outra coisa além de nós mesmos ali, naquele instante, mesmo sabendo que para cada um de nós haveria um cômodo e dentro de cada cômodo haveria uma gaveta, que conteria, cada qual um caixa, e dentro dessa caixa, haveria coisas nossas, umas cartas, uns ecritos, umas recordações, cartões-postais, memórias enevoadas, páginas viradas, olhos perscrutadores, contas de colar, ataques de riso, choros, segredos, artes, improvisos, eu, você, todos nós.